Opinião

A impunidade estatal também precisa deixar de existir

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29 de janeiro de 2019, 6h47

É auspicioso testemunhar o fim da impunidade daqueles que sempre abusaram da posição privilegiada que, merecida ou imerecidamente, alçaram.

Mas a procura descomedida do combate à criminalidade não confere, a qualquer um, permissão para violar a Constituição Federal e às leis, já tão maltratadas.

Nesse quase meio século de intensa militância, o que não se assinala como mérito ou vantagem, mas como simples parâmetro de experiência, jamais havíamos nos deparado com tantos e tão graves descuidos com os direitos e as garantias fundamentais, expressos na Constituição Federal, mediante atos de força estatal francamente ilegítimos, desproporcionais, desnecessários e o que é pior, com amplo e deliberado escárnio público.

Ninguém, por mais qualificado que seja, independentemente da relevância do cargo ou função pública que exerça, pode julgar-se imune à submissão aos regramentos de regência, o que significaria mais impunidade, ainda sob a capa protetora do Estado.

Todo cidadão é inocente até prova em contrário, essa é a premissa básica dos sistemas republicanos. Uma garantia fundamental do Estado de Direito. Também é verdade que ninguém está acima de qualquer suspeita.

Presencia-se, sem muito alarde — o que preocupa — a vulgarização das prisões cautelares, as devassas generalizadas, a expiação pública, uma distorção em que se transita entre a “ilegalidade e a desumanidade”, como advertiu o ministro Gilmar Mendes.

Por afetar com antecipação a liberdade e a dignidade do cidadão, a prisão cautelar, seja temporária ou preventiva, como exceção à regra da liberdade, só deveria ser admitida em situações específicas, nas quais restasse concretamente comprovada a sua real necessidade. Além disso, o cumprimento dos mandados judiciais desse tipo de aprisionamento deveria se dar com absoluto sigilo, impedindo-se um prejulgamento público, antes da colheita de provas e de um julgamento imparcial.

No entanto, não é o que se tem assistido, de forma recorrente.

Prisões cautelares francamente inadmissíveis, tendo em conta o standard da doutrina e o magistério jurisprudencial dos tribunais, têm sido decretadas de forma extravagante e açodada.

Mandados judiciais têm sido cumpridos de maneira espetaculosa, com transmissão ao vivo, em tempo real, patrocinada pelos órgãos de imprensa, os quais, previamente informados, acompanham as diligências que culminam com a prisão do investigado ou denunciado e apreensão de seus bens, num verdadeiro linchamento moral.

Invadindo e devastando a vida privada do cidadão, sem qualquer preocupação com a preservação de sua imagem, repentinamente exposta a divulgação pública numa situação bastante humilhante, tomam-lhe a liberdade, às vezes com o uso arbitrário de algemas, apossam-se de seus bens, devassam sua casa, maculam o seu bom nome, estiolam a sua dignidade, o seu respeito próprio e da família, levando-o definitivamente à ruína pessoal e profissional,  até mesmo ao suicídio, como se deu com Luiz Carlos Cancellier, então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina.

Mesmo que depois o cidadão ferido pelo ato de força estatal, exercida de forma ruidosa, obtenha a sua liberdade física e que após longos anos, encerrada a ação penal, seja inocentado, seguirá na prisão da opinião pública, permanecerá marcado para toda vida. Sua absolvição, quando muito, será publicada em uma nota de rodapé. 

São alguns dos incontáveis resquícios da vexatória, sistemática e violenta exposição midiática — não de regular instauração e tramitação de ação penal — a depressão, o alcoolismo, o desemprego, a falência, o esfacelamento de lares. Mas dessa gama imensa de injustiças ninguém fala, ninguém trata, esse “carma” o cidadão purga solitariamente, no recôndito de sua alma.

Essa impunidade estatal também precisa deixar de existir.

Num período em que os acusados – ou suspeitos – são desde logo presumidamente culpados e que a ilegalidade é perigosamente tolerada e até louvada, corajoso é o magistrado que tem firmeza para contrariar a opinião pública, que, desinformada, exige e vibra por justiçamentos, não por justiça.

Conta-nos Evandro Lins e Silva que, na França, dois grandes advogados, Vicent Moro Giaferri e Cesar Campinchi, ambos de ascendência italiana, debatiam certa vez uma grande causa, quando Campinchi, atuando na acusação invocou a opinião pública em seu favor, ocasião em que Giaferri explodiu em argumentos e ganhou na réplica: “Maître Campinchi vos dizia a toda hora que a opinião pública estava sentada entre vós. Expulsai-a, essa intrusa. É ela que ao pé da cruz gritava: 'Crucificai-o'. Ela, com um gesto de mão, imolava o gladiador agonizante na arena. É ela que aplaudia aos autos da fé da Espanha, como ao suplício de Calas. É ela enfim que desonrou a revolução francesa pelos massacres de setembro, quando a farândola ignóbil acompanhava a rainha ao pé do cadafalso. A opinião pública está entre vós, expulsai-a, essa intrusa… Sim, a opinião pública, esta prostituta, é quem segura o juiz pela manga”.

Inexiste poder que atue tão absolutamente sobre o cidadão, atingindo-o em sua honra, dignidade e bom nome, quanto o Poder Judiciário. Por isso, a atuação do juiz não pode transbordar do ordinário verificado no dia a dia forense, com o cumprimento de deveres básicos, a exemplo da imparcialidade, transparência, cautela, fundamentação adequada, atuação independente e com observância das disposições legais, que conduzam a um julgamento justo. Nenhuma decisão que pronuncie pode vir estribada em singelas e enganosas suspeitas, em desconfianças ou deduções cerebrinas.

O respeito à civilidade se faz obedecendo, à risca, a Constituição Federal e as leis, independentemente da opinião pública.      

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