Opinião

Legisladores precisam rever altas indenizações por danos morais na aviação

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27 de janeiro de 2019, 5h20

Todo mundo sabe que uma viagem de avião está sujeita a inúmeros riscos, que vão desde panes mecânicas até eventos climáticos dramáticos, como tempestades e furacões, passando pela previsível falha humana nos controles da aeronave e no monitoramento dos serviços aeroportuários. Risco, portanto, é o que não falta na aviação. Apesar de tudo, paradoxalmente, as estatísticas de acidentes mostram que o avião é o meio de transporte mais seguro do mundo, só perdendo para o elevador — isso mesmo!

Tal proeza só foi possível porque o homem conseguiu identificar e gerenciar as situações que oferecem risco para as aeronaves nos espaços de navegação, isso além de criar e aperfeiçoar tecnologias visando à segurança e conforto de passageiros. Tem sido assim, num continuum, desde 7 de janeiro de 1910, quando, em Osasco (SP), foi dado o pontapé inicial da aviação civil no Brasil.

Passados mais de 100 anos, o setor se consolidou como negócio e já é o terceiro maior mercado doméstico do mundo, só perdendo para a China e o líder Estados Unidos. Em 2017, segundo levantamento da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a aviação brasileira transportou 112,5 milhões de passageiros pagos no país, sendo 90,6 milhões em voos domésticos e 21,8 milhões em voos internacionais. O setor contribui com US$ 32,9 bilhões para o PIB nacional (1,4% no total) e emprega 1,1 milhão de pessoas.

Decididamente, a aviação comercial brasileira não é mais refém de riscos técnicos, que poderiam inviabilizar a própria atividade, mas se depara com novos desafios administrativos. Um deles é saber como lidar com o ‘‘empoderamento do cliente-consumidor’’, que começa a ameaçar a viabilidade comercial do negócio. Não, não se trata de demonizar o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que representou grande avanço na proteção jurídica dos ‘‘hipossuficientes’’, mas de questionar a ‘‘dose do remédio’’. Afinal, como dizia a escritora francesa Simone Weil (1909-1943), o direito de alguém é obrigação de outrem. E, hoje, esses ‘‘direitos’’ crescem desmesuradamente, onerando os que têm obrigação de satisfazê-los — os prestadores de serviços ‘‘violadores de direitos fundamentais’’.

O nível de proteção legal e jurisprudencial conferido ao consumidor-passageiro no mercado doméstico brasileiro chegou a tal nível a ponto de estimular o ajuizamento de ações de reparação na Justiça por contratempos como atrasos de voos, remarcações de bilhetes ou por outras pequenas intercorrências previsíveis na cadeia de procedimentos no curso da complexa logística de embarque-desembarque.

Dados disponibilizados pela Anac revelam que, em 2017, as condenações judiciais decorrentes de mais de 60 mil ações representaram cerca de 1% dos custos e despesas operacionais das companhias aéreas nacionais — o equivalente a R$ 311 milhões. À primeira vista, pode parecer pouco, mas é preciso considerar que as margens de lucro no setor são baixíssimas, menos de US$ 4 por passageiro, segundo calcula a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata).

Só para ter uma ideia do grau de litigiosidade judicial, uma empresa norte-americana, operando cerca de 5 mil voos nos EUA, em 2017, responde por apenas 130 processos naquele país. No mercado brasileiro, com cerca de cinco voos diários no mesmo período, a mesma empresa teve ajuizados 1.200 processos judiciais, segundo levantamento da Junta das Companhias Aéreas Internacionais no Brasil (Jurcaib). Assinale-se que lá fora, tal como no ambiente doméstico, as companhias associadas à Jurcaib oferecem a seus clientes o mesmo padrão de serviços, seguindo protocolos similares de operação e atendimento. Aqui, pelo jeito, o arranjo judicial ‘‘empodera’’ mais o consumidor.

Ao alto grau de litigiosidade soma-se, ainda, o expressivo montante arbitrado para as indenizações decorrentes de falhas na prestação desse serviço, em grande parte por dano moral presumido (in re ipsa). Não existe uma tabela que padronize o quantum indenizatório por condenação em danos morais, mas, nas condições do Rio Grande do Sul, falhas como negativação indevida em bancos de restrição de crédito (SPC, Serasa), cobrança abusiva, falta de energia/telefonia ou a venda de produtos em desconformidade com o anunciado rendem condenações que oscilam entre R$ 1 mil e R$ 10 mil, sendo que a maior parte é estabelecida num patamar entre R$ 3 mil e R$ 5 mil. Já os atrasos/cancelamentos de voos, extravios de bagagem e perda de conexão, dentre outros, vêm sendo penalizados num grau muito maior pela Justiça — de R$ 5 mil a R$ 40 mil, segundo constatação empírica. O Judiciário deve achar que todas as companhias áreas brasileiras são portentos econômicos como a American Airlines ou a Lufthansa, ignorando a baixa lucratividade do setor e a alta carga de impostos.

Quando o Estado sofre condenação por dano moral, pelo menos no RS, o Judiciário é mais equilibrado, mais ‘‘sóbrio’’, para não onerar em demasia os cofres públicos. A 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça gaúcho, por exemplo, construiu um ‘‘parâmetro norteador’’ para reparar presos que cumprem pena no Presídio Central de Porto Alegre, o pior da América: R$ 500 a cada ano ou fração de ano de efetivo cumprimento da pena em regime fechado.

Será que o abalo moral de um homem deixado às moscas, num presídio degradado pela incúria do Estado, é menor do que o daquele executivo que perdeu o seu voo, mas tinha chances de pegar o próximo? Ou de alguém que teve a frustração de receber suas malas depois de dois ou três dias? Quem são os vulneráveis dignos de receber a proteção estatal pelas violações dos direitos de personalidade assegurados no inciso X do artigo 5º da Constituição?

Portanto, é hora de os legisladores reverem alguns aspectos do CDC, para que a vantagem competitiva dos consumidores não se traduza numa guerra aberta contra os fornecedores de produtos e serviços, pelo risco da inviabilidade comercial do negócio.

O Judiciário brasileiro, por seu turno, precisa investir cada vez mais nas câmaras especializadas e juizados de conciliação, como faz o Judiciário gaúcho em parceria com a ferramenta virtual consumidor.gov.br, monitorada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Ministério da Justiça), Procons, Defensorias, Ministérios Públicos e também por toda a sociedade. Neste ambiente, com diálogo, boa-fé e transparência, são resolvidas cerca de 80% das reclamações registradas nessa plataforma. E o melhor: num prazo médio de sete dias.

Sem dúvida, seria uma sinalização positiva para motivar a entrada das companhias de ‘‘ultrabaixo custo’’ (ultra low cost) no mercado doméstico. Como se sabe, o preço competitivo dessas empresas está lastreado nas condições mais enxutas na entrega do serviço de transporte, o que, certamente, têm o potencial de acirrar as demandas consumeristas, porque o consumidor brasileiro é o mais exigente do mundo. Quanto menor a judicialização dos conflitos, maior a segurança jurídica. Resultado final: mais investimentos.

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