Opinião

Manifestações de membros do MP: liberdade de expressão x respeito ao cargo

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26 de janeiro de 2019, 12h52

A garantia da liberdade de expressão para o cidadão é uma conquista civilizatória de nossa sociedade, que há muito vem buscando a concretização de tão importante direito fundamental.

Na sociedade moderna, levando-se em consideração os novos modais de difusão da informação, se expressar também significa informar. A maior quantidade de conteúdo absorvido por todos nós, inevitavelmente, vem de opiniões públicas ou particulares, ainda que estas, muitas vezes, seja o mero compartilhamento de notícias produzidas por terceiros.

Se manifestar também significa influir na realidade política, social e nos costumes de nossa localidade e de nosso país. Manifestações públicas se tornam, portanto, um importante elemento de transformação e funcionam, também, como fundamental instrumento de aperfeiçoamento da democracia direta, pois o conjunto delas molda o sentimento coletivo que finda por influir decisivamente nos pleitos eleitorais.

Dito isso, e ressalvado os efeitos nefastos relativos à difusão das fake news e atentados à honra e à dignidade da pessoa humana, a regra deve ser a da completa e absoluta proibição de qualquer embargo ao direito à livre manifestação, devendo qualquer tipo de controle sancionatório, seja na esfera civil, penal ou disciplinar, sempre ser efetivado a posteriori.

Não se pode olvidar também que o exercício de qualquer função pública traz consigo uma carga de responsabilidade que extrapola o simples dever de decoro. Isto ocorre porque, quando uma autoridade pública emite uma opinião, o faz não apenas expressando um sentimento pessoal, mas, também, inevitavelmente, carrega uma carga de simbolismo oriundo de sua honorável atividade. Um advogado, um magistrado ou um membro do MP não se despe de sua função quando emite uma opinião.

Já os advogados, que no exercício de sua atividade privada exercem múnus público, têm a inviolabilidade por manifestações como um dos principais caracteres, mas que encontra limitações na responsabilização ético-profissional daquele que trata desrespeitosamente autoridades e colegas, eis que o próprio EOAB, em seu artigo 6º, prevê a obrigação de tratar a todos com consideração e respeito recíprocos.

Da mesma forma, o EOAB também pune, nos termos do artigo 34, XXV, o advogado que mantém conduta incompatível com a advocacia, incluída aí a “incontinência pública e escandalosa”, enquadrando-se, neste conceito, aquele que, deliberadamente, ofende ou desrespeita outrem.

Não é diferente na magistratura e no Ministério Público.

A Loman, em seu artigo 36, III, prescreve que é vedado ao magistrado: "manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério".

Também existem restrições quanto a expressões que denotem atividade político-partidária, tanto na Constituição Federal quanto na CF/1988, artigo 95, parágrafo único, e artigo 2º do Provimento 71/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça[1].

No caso dos membros do Ministério Público, tais restrições estão positivadas no artigo 236, inciso X, da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal 75, de 20 de maio de 1993) e no artigo 43, inciso I, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625, de 12 de fevereiro de 1993), que prescrevem a obrigação de o membro guardar decoro pessoal e manter ilibada conduta pública e particular.

Além disso, a liberdade de manifestação é igualmente limitada entre os membros do parquet pelo disposto no artigo 128, parágrafo 5º, inciso II, alínea “e”, da CR/1988, assim como o estabelecido no artigo 237, inciso V, da Lei Complementar Federal 75, de 20 de maio de 1993, e no artigo 44, inciso V, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625, de 12 de fevereiro de 1993).

Estabelecidas tais premissas, fica evidente que é vedado ao membro manifestação quando esta contiver opinião política ou que, de forma desrespeitosa, critique a atuação de autoridades, partes, entidades ou tribunais.

Importante ressalvar manifestações de natureza acadêmica, sem adjetivações ou palavras de baixo calão, sendo estas permitidas, ainda que de certa maneira critiquem postura pública de determinada pessoa ou autoridade ou tragam opinião negativa a respeito de determinada conduta ou política pública.

Não pode ser exigido de um membro do MP em peça acusatória, por exemplo, que não use a palavra “criminoso” àquele que está sendo acusado de crime, bem como deve-se ter certo grau de tolerância com a forma enérgica por vezes usada por membros do parquet que caracteriza o embate entre acusação e defesa no processo judicial.

Já no tocante à atividade político-partidária, deve-se levar em conta que nem toda manifestação de membro, ainda que pública e em rede social, pode ser qualificada como tal. Na minha opinião pessoal, que sei que difere da de alguns colegas do CNMP, a simples declaração pública de admiração por um político, ou a desaprovação de outro, não caracteriza atividade político-partidária, estando, ao meu sentir, albergada pelo direito à manifestação de pensamento e a liberdade de como direitos fundamentais constitucionais do cidadão (incisos IV, VI e IX, do artigo 5º, da CR/1988). Obviamente tal manifestação deve ser eventual, e sua habitualidade traria consigo a incidência das proibições descritas.

Atividade político-partidária se caracteriza pela ativa e contumaz demonstração pública de preferência por um político, ideologia política, candidato ou sigla, além de participação em atos de campanha, tanto presencialmente quanto nos meios de comunicação e nas redes sociais.

Já as teses de manifestação que configuram crimes (inclusive contra a honra) encontram limitação, de ordem geral, aplicável a todos os cidadãos, tanto no âmbito doutrinário quanto na jurisprudência, no sentido de que “a liberdade de expressão, incluindo a liberdade de informação e de imprensa, (comunicação social), não é absoluta e encontra limites no exercício de outros direitos fundamentais e salvaguarda, mesmo na dimensão objetiva (por via dos deveres de proteção estatal)”[2]. O Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido:

“O direito à livre manifestação do pensamento, embora reconhecido e assegurado em sede constitucional, não se reveste de caráter absoluto nem ilimitado, expondo-se, por isso mesmo, às restrições que emergem do próprio texto da Constituição, destacando-se, entre essas, aquela que consagra a intangibilidade do patrimônio moral de terceiros, que compreende a preservação do direito à honra e o respeito à integridade da reputação pessoal.

A Constituição da República não protege nem ampara opiniões, escritos ou palavras cuja exteriorização ou divulgação configure hipótese de ilicitude penal, tal como sucede nas situações que caracterizem crimes contra a honra (calúnia, difamação e/ou injúria), pois a liberdade de expressão não traduz franquia constitucional que autorize o exercício abusivo desse direito fundamental. Doutrina. Precedentes” (STF – EDcl no RE com Ag 891.647 – 2.ª Turma – j. 15/9/2015 – rel. Min. Celso de Mello).

Todavia, em se tratando de membros do Ministério público, não há a exigência de que os autores das manifestações públicas estejam incidindo em conduta criminosa para que seja aplicado o tipo disciplinar. Neste viés, há de se mencionar que estes cidadãos da república, pela importância constitucional a eles atribuída, devem se distinguir no seu comportamento do cidadão comum, devendo ter cuidado redobrado com o decoro em suas manifestações.

Importante asseverar que a quebra do dever funcional de manter ilibada sua vida pública e particular atinge não só a imagem do eventual ofendido, mas, sobretudo, a dignidade do cargo exercido pelo membro. O valor jurídico a ser resguardado, portanto, é a respeitabilidade da instituição que se manifesta pela conduta de seus membros. Por essa razão é que também entendo desnecessária a representação do ofendido para apreciação pelas instâncias correcionais.

Nesse sentido, tenho me posicionado em vários julgamentos no Plenário do CNMP pela independência das instâncias disciplinar, penal e civil, de maneira que um excesso de linguagem, punível disciplinarmente, não necessariamente precisa coincidir com expressão que se configura como crime contra a honra ou que enseje responsabilização na esfera civil.

As leis orgânicas dos ministérios públicos (Lei 8.625/93, artigos 43 e 44, e Lei Complementar 75/93, artigos 236 e 237) reservam capítulos específicos para tratar dos deveres e vedações dos seus membros, ou seja, além da limitação já mencionada, relacionada aos crimes advindos de manifestações públicas (contra a honra etc.), o membro do parquet tem diversos deveres éticos relacionados aos excessos cometidos no exercício do direito à livre expressão e da sua imunidade profissional.

Da mesma forma, em diversas oportunidades já exarei manifestação no sentido de que o membro do Ministério Público não pode usar expressões de baixo calão em suas manifestações públicas, devendo resguardar o decoro de sua linguagem e o respeito às pessoas e instituições.

Infelizmente, a mídia vem sendo utilizada, excessivamente, como estratagema processual ou mecanismo de promoção pessoal, afastando a regra de que o membro do parquet deve se manifestar substancialmente nos autos quando se trata de processo judicial. O uso dos meios de comunicação certamente pode contribuir com o dever de informação e transparência, mas não deve ser usado como forma de pressionar o julgador ou seduzir a opinião pública sob pena de se desnaturar a função republicana de alguém que busca a concretização de sua função constitucionalmente atribuída, e não a mera vitória em uma demanda por vias heterodoxas.

Não se pode entender que a justiça é feita com o convencimento daqueles que não possuem participação no processo judicial ou conhecimento técnico da demanda em curso. Isso por vezes faz com que o populismo judiciário entre por uma das portas dos tribunais, e a justiça saia pela outra[3]. E quando isso ocorre, a concretização do direito vira uma ficção, não diferente da pós-verdade, tão infelizmente cotidiana das páginas de Facebook.


[1] “Art 95 (…)
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
III – dedicar-se à atividade político-partidária.”
“2º A vedação de atividade político-partidária aos magistrados não os impede de exercer o direito de expressar convicções pessoais sobre a matéria prevista no caput deste artigo, desde que não seja objeto de manifestação pública que caracterize, ainda que de modo informal, atividade com viés político-partidário.”
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais em espécie. In SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 466.
[3] Usando uma pequena corruptela da frase de François Guizot.

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