Anuário da Justiça

"Entre a boa intenção do constituinte e a realidade há uma distância muito grande"

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26 de janeiro de 2019, 8h33

Spacca
Trinta anos depois da promulgação de uma Constituição pródiga em garantir direitos, o Brasil ainda não conseguiu alcançar o patamar esperado, o que faz com que o Judiciário seja o responsável por tutelar essas diferenças. É por causa desse cenário, segundo o ministro Og Fernandes, que o Superior Tribunal de Justiça não consegue se dedicar adequadamente à sua função primordial: tratar da uniformização dos textos infraconstitucionais.

“Entre o largo gesto de boa intenção do legislador constituinte e a realidade brasileira há uma distância muito grande. Esse trabalho que deveria ser uma nobre função de tribunal somente abaixo da suprema corte brasileira termina por atingir temas que, ao meu ver, não deveriam integrar o rol das preocupações do STJ”, avalia o ministro, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2019, com lançamento previsto para abril.

Og Fernandes destaca que essa “vertigem de direitos” determinados após anos de legislação autoritária passaram por um processo de interpretação que ainda não se completou. A consequência não é só o aumento do número de casos – o STJ julgou mais de meio milhão de processos em 2018 —, mas também a imposição ao Judiciário de um protagonismo.

O ministro não considera a popularidade um fator negativo, no entanto. Avalia que as mudanças criam uma nova cultura, em que a sociedade começa a compreender melhor as instituições. “Há uma preocupação de se legitimar perante a sociedade como um poder que a represente”, diz.

Leia a entrevista:

ConJur — O STJ completa 30 anos de sua instalação ainda sem conseguir se dedicar adequadamente à definição de teses jurídicas. Por que esse cenário?
Og Fernandes —
Entre o largo gesto de boa intenção do legislador constituinte e a realidade brasileira há uma distância muito grande. Esse trabalho que deveria ser uma nobre função de tribunal somente abaixo da suprema corte brasileira termina por atingir temas que, ao meu ver, não deveriam integrar o rol das preocupações do STJ. Precisa cada vez mais ter olhos críticos em torno disso, na busca de alcançar a mens legis de 30 anos atrás.

ConJur — Qual deve ser o filtro?
Og Fernandes — 
Vou começar pelo contrário. O que nós devemos julgar: toda causa que reflita um anseio, uma preocupação nacional. No Direito Público, as grandes questões da área tributária, os grandes temas do meio ambiente, que é, ao meu ver, uma das preocupações do século que vivemos. Não faltam temas. Temos hoje mil temas de repetitivos. A essência do Direito infraconstitucional como reflexo das preocupações em resolver a grande crise da jurisdição postergada no país em face dos dramas todos conhecidos. Então essa é que é a grande causa do STJ e que às vezes chega a esta jurisdição, às vezes não. Às vezes chegam causas que, ao meu ver, deveriam ter sido estancadas na jurisdição dos estados ou no colegiado dos TRFs. 

ConJur — Os mecanismos atuais conseguem coibir de forma adequada a chegada de ações que não atendem a esses requisitos?
Og Fernandes —
O processo, tanto na seara cível quanto penal, carece de algumas definições mais atreladas a essa ótica. É preciso ressaltar o esforço que o legislador brasileiro prestou, por exemplo, quando votou o CPC recente. Mas agora estamos aqui nos debruçando sobre alguns temas do CPC para tentar dar aquela interpretação adequada. O CPC e as reformas ainda pontuais do CPP são instrumentos que vão ao encontro dessa tentativa. Estamos avançando. Mas é um trabalho de construção diária para que haja espírito do juiz na interpretação da lei que se ajuste às efetivas necessidades do país. Sou otimista com os pés no chão. Acho que estamos caminhando. Obviamente esse andar ainda não é no passo que a sociedade brasileira deseja.

ConJur — Ainda nesse sentido, os recursos repetitivos cumprem seu papel de forma consistente?
Og Fernandes — 
Aquilo que já foi definido, sim. A questão é que temos ainda repetitivo, como temos no Supremo alguns recursos de repercussão geral, em que não houve tempo hábil para apreciação. Ele atende bem às funções. Temos que pescar essa pérola num turbilhão de questões, num mar revolto. Essa pesca não se faz com a eficácia que gostaríamos por conta do acervo. Você está julgando repetitivo e ao mesmo tempo tem 'n' causas que atormentam o dia a dia da jurisdição. A pauta sempre cheia, sempre congestionada. Isso, em um sentido muito claro, atrapalha a missão mais pura desses tribunais.

ConJur — Nesses 30 anos, qual foi a principal contribuição do STJ para a sociedade?
Og Fernandes —
Essa missão, no momento em que foi destacada no papel pelo constituinte de 88, é uma missão importantíssima. A nossa missão está valendo a pena. O tribunal tem apenas 30 anos. Isso, na história de uma corte de Justiça, principalmente com as caraterísticas que foram dotadas a este tribunal, é apenas um sopro de vida. Embora para cada um que tem sua questão aqui possa parecer uma eternidade. Mas na história da Justiça é um sopro de vida. Só para comparação, o Supremo está instalado desde 1891. Não há por que ter desesperança. Ainda precisamos ter a paciência do jurisdicionado.

ConJur — O Brasil vive um momento de ascensão de uma autointitulada nova política e de popularidade do Poder Judiciário. Quais são os efeitos disso?
Og Fernandes —
Se você for pegar, por exemplo, a corte constitucional americana, você há de ver que o cidadão conhece seu ministro. Aqui temos algumas peculiaridades, porque temos que a principal corte do país não é só uma corte constitucional. E o Brasil é talvez o único país do mundo que transmite suas sessões em tempo real. Esse é um modelo, quando se fala de transparência na atividade-fim do Judiciário, impossível de ver em algum outro país exemplo maior. Inclusive lá [nos EUA] a reunião é secreta, depois sai apenas uma decisão, que vai dar parâmetros ao caso concreto. O cidadão nem sabe o que houve de discussão. Aqui as sessões transmitidas em tempo real. O Judiciário vai para o meio da rua ou para dentro das casas. 

ConJur — Quais outros motivos fazem do Judiciário tão popular?
Og Fernandes —
Temos um cenário no Brasil em que a Constituição de 88, que foi moldada por uma vertigem de direitos daqueles anos todos de legislação autoritária, que precisavam ser interpretados. Alguns até hoje não tiveram interpretação adequada, ou pelo menos normas de regulamentação. Isso requer protagonismo do Judiciário muito maior. O Judiciário não deseja, não aspira tomar o lugar do Legislativo muito menos do Executivo. Na busca de cumprir sua missão, aqui e ali, tem que decidir causas que às vezes não têm norma infraconstitucional. Às vezes tem apenas um princípio constitucional e em cima dele você tem que trabalhar. 

ConJur — É um processo natural, então.
Og Fernandes —
Saímos dos anos de 1980 com um Judiciário intramuros. Se você pegar os jornais da época, vai ler que precisávamos 'abrir a caixa-preta do Judiciário'. Hoje temos um cenário em que o Judiciário escancarou seu modo de agir, talvez como nenhum outro país possa fazer. E também aprendeu a conviver com a crítica, com esses anseios da sociedade, criou instrumentos inclusive para encaminhar e formar anseios, como a própria ouvidoria do Judiciário — é um instrumento de aproximação com a sociedade. Há uma preocupação de se legitimar perante a sociedade como um poder que a represente. No mais, porque escancarado e totalmente devassado pela sua própria decisão de assim ser, às vezes o cidadão se depara entre choques decorrentes das crenças de cada julgador. 

ConJur — O senhor acredita que essa popularidade vai se manter?
Og Fernandes —
Ninguém ama o que não conhece. Com as instituições é a mesma coisa. Vamos formando esse caldo de cultura. É interessante perceber que as cortes de Justiça brasileiras têm sido muito criticadas já faz algum tempo. Porém em todas as críticas, quando por mero exercício delirante se pensou em uma possibilidade de 'encaixotar' o Judiciário brasileiro, mesmo aqueles que foram contra esse perfil disseram: 'epa, tudo menos isso'. Porque a suprema corte é o último bastião da democracia, da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, de algo que queremos manter acima de qualquer outro bem jurídico. A imprensa, como porta voz dessa relação entre cidadão e o poder público, reverberou isso com muita clareza: tudo menos isso ['encaixotar' o Judiciário]. Eu não quero perder espaço de liberdade, de democracia, que a tanto sacrifício nós conquistamos. 

ConJur — O Judiciário muitas vezes é criticado por estar mais presente do que deveria na sociedade. O senhor concorda?
Og Fernandes — 
Isso tem que ser feto de forma moderada. É próprio do Judiciário um atuar provocado. Ele não dá o primeiro tiro. Ele atua como revisor do sentimento do legislador — revisor no bom sentido — e reexaminador do sentimento popular, do Legislativo, do Executivo. E é um atuar sempre parceiro. Não é atuar excluindo os demais. É incluindo como alguém que pode ser útil à nação. 

ConJur — O senhor lançou, recentemente, o livro Cabeça de Juiz. Acredita que a mentalidade do magistrado mudou muito?
Og Fernandes — 
Tem mudado. Eu sou de uma geração em que parecia menos comprometida com a opinião pública, mais corporativa e também porque vivia, do ponto de vista administrativo, sobre a chancela do Executivo, menos responsável com seus resultados. Nesses 37 anos, mudou. Temos o juiz mais preocupado com a legitimação da sua função, menos voltado para seu próprio umbigo e mais para a sociedade, atento a seus erros, e isso faz uma diferença enorme. Temos cerca de 17 mil juízes no país. É preciso que essa mensagem, esses compromissos fluam a partir da própria escola da magistratura, para essa sociedade judicante de maneira geral. Nisso aí também tenho o pé no chão.

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