Opinião

Questões sobre a nova Autoridade Nacional de Proteção de Dados da MP 869/2018

Autores

  • Sergio Paulo Gomes Gallindo

    é presidente da Brasscom advogado mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Ciência da Computação pela University of Texas at Austin.

  • Daniel T. Stivelberg

    é gerente de Relações Governamentais da Brasscom advogado pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP e em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba.

24 de janeiro de 2019, 5h39

Economia intensiva em dados e a Lei 13.709/18
O uso de dados gera efeitos práticos de crescente significância socioeconômica, com efeitos no bem-estar de indivíduos e crescimento. Yuval Harari entende que os dados podem, com grau de cientificidade, estabelecer conceitos de “certo” e “errado”[1]. Não sem razão a necessidade de se atribuir a eles relevância no mundo das normas jurídicas. Neste contexto, a liberdade de fluxo das informações passa a ser considerada novo bem jurídico tutelável, cuja análise merece artigo específico.

A convergência entre o mundo físico e biológico no espaço digital, habilitada pela tecnologia, potencializa a nova era digital intensiva em dados, na qual a coleta e o tratamento de dados ganham significância econômica, abrangendo diferentes campos do conhecimento. As transformações impactam a prestação de serviços ao cidadão, tais como educação, segurança e saúde, e no aprimoramento da democracia. Disrupções na agricultura, na indústria e nos serviços pelo uso de algoritmos e inteligência artificial já são perceptíveis. Reside aí a relevância de marcos legais de dados pessoais e da independência das autoridades de dados para normatizar e fiscalizar tais fenômenos, em respeito às garantias fundamentais das pessoas e pelo bom funcionamento da economia.

Análise crítica da ANPD na forma da Medida Provisória 869/18
A Lei 13.709/18, chamada de Lei de Proteção de Dados Pessoais (LPDP), é moderna e principiológica. Endereça os desafios da era digital, balanceando a proteção dos direitos da pessoa natural à privacidade e à intimidade e segurança jurídica para agentes econômicos que tratam dados pessoais. Espera-se da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) que harmonize, por meio da regulação, a centralidade protetiva com o desenvolvimento da economia de dados, aprimorando o arcabouço institucional pela via da ação educativa; da orientação no cumprimento da lei; da transparência democrática; da interação com seus regulados, públicos e privados; e da indução da inovação e de novos modelos de negócio.

A MP 869 representa o louvável cumprimento pelo presidente Michel Temer do compromisso assumido quando da sanção da LPDP, de enviar ao Congresso um diploma que suprisse os, então considerados, imperiosos vetos de suposto vício de iniciativa. Constata-se, no entanto, que a MP 869 empreende uma reforma mais ampla do que se antevia, tornando-a merecedora de alentadas ponderações. Impende-nos, porém, apreciar apenas o delineamento da “nova” ANPD, cotejando nossa visão sobre a natureza jurídica que faz jus à estatura funcional do órgão com a disposta na MP 869. Teceremos, ainda, considerações sobre as latitudes do parlamento para alterar o texto à luz da jurisprudência do STF e do precedente interpretativo que levou ao veto dos artigos 55 a 59 do Projeto de Lei da Câmara 53/18 (PLC 53).

Um órgão que esteja à altura da missão erigida precisa ser dotado de atributos essenciais, a saber: qualificação técnica, para lidar com a multidisciplinariedade da proteção de dados pessoais; de independência funcional; autonomia financeira por meio de orçamento próprio; e competência normativa, exercida com transparência e participação multissetorial. Tais características são mais arrojadas que as previstas na MP 869. Com efeito, a avaliação dos novos artigos 55-A a 55-I, à luz da justificativa trazida no Projeto de Lei 5.276/16, dos sobejos exemplos pátrios e da doutrina de escol, apontam para o cabimento de uma agência reguladora, com as caraterísticas típicas listadas por Marco Aurelio Santos, em referência à Maria Sylvia De Pietro:

“[…] (1) serem constituídas como autarquias de regime especial, afastando-se da estrutura hierárquica dos Ministérios e da …influência política do Governo, com acentuado grau de independência; (2) …dotadas de autonomia financeira, administrativa e … de poderes normativos complementares à legislação … do setor; (3) …poderes amplos de fiscalização, operar como instância administrativa final nos litígios … de sua competência; … (5) possuírem direção colegiada, sendo os membros nomeados pelo Presidente…, com a aprovações do Senado …; (6) seus dirigentes possuírem mandato com prazo de duração determinado; (7) após … mandato … dirigentes ficarem impedidos, por um prazo certo … de atuar no setor …”[2].

O processo legislativo, lastreado em amplo diálogo democrático com a sociedade civil, a academia e setores empresariais, já aperfeiçoara os dispositivos do PL 5.276, delineando, com correição, o órgão genericamente referido no prototexto e que acabou vetado. Assim, o artigo 55 do PLC 53 dispõe a criação da ANPD como órgão da administração pública federal indireta, submetido a regime autárquico especial, regido pela Lei 9.986/00 (Lei das Agências Reguladoras). Dispõe ainda que a autoridade possui um conselho diretor, sua máxima instância, de três conselheiros com mandato de quatro anos. O artigo 55, parágrafo 3º, estabelece as características da ANPD, a saber: (a) independência administrativa, (b) ausência de subordinação hierárquica, (c) mandato fixo, (d) estabilidade dos dirigentes e (f) autonomia financeira. Esse figurino do PLC 53 é congruente com o da autoridade europeia, conforme artigos 52 a 60 do GDPR[3].

A nova ANPD, nos contornos do artigos 55-A da MP 869, é órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República. Para José dos Santos Carvalho Filho[4], a subordinação enseja efeitos jurídicos inafastáveis, a saber, a prerrogativa de comando do órgão superior e o dever de obediência dos agentes públicos, sujeição imposta inclusive aos cinco membros do conselho diretor, seu órgão máximo (artigo 55-D), a despeito da autonomia técnica prevista no artigo 55-B.

Dessa relação decorrem os efeitos: (i) executar as diretrizes nos termos das decisões superiores; (ii) submeterem-se à fiscalização e à revisão de seus atos pelo órgão supervisor; e (iii) terem suas atribuições e competências avocadas pelo chefe superior eis que não há previsão legal em contrário.

A autonomia funcional tampouco é preservada, em função da dicção do parágrafo 2º do artigo 55-E, que atribui ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de determinar o afastamento preventivo dos diretores, em que pese a instituição de mandato, artigo 55-D, parágrafo 3º, e a estabilidade no transcurso do desempenho de suas funções, artigo 55-E. Acrescente-se que a designação de DAS-5 para os membros do conselho diretor, além de desestimular a atração de talentos, posiciona diretores o órgão máximo em grau hierárquico inferior aos demais altos oficiais da administração federal, solapando a efetividade do exercício de suas competências quando do tratamento de dados por pessoa jurídica de direito público, na forma do artigo 3º da LPDP. Destaque-se, ainda, a prerrogativa do ministro da Casa Civil para instaurar processo administrativo disciplinar em face aos membros do conselho diretor, artigo 55-E, parágrafo 1º, reforçando a subordinação da ANPD.

Conclui-se que o forte vínculo hierárquico com a Presidência da República, em oposição à noção de independência, fragiliza o exercício das competências previstas no artigo 55-J, na medida em que torna a ANPD sujeita a influências e pressões alheias à sua função, com potencial de macular ou até mesmo reverter suas decisões. A falta de independência suprime a autonomia financeira e abre espaço para nomeação lastreada em critérios não objetivos, pondo em risco o grau de especialização requerido para lidar com a complexidade dos temas. Ademais, a debilidade da ANPD erigida pela MP 869 prejudica sua participação em fóruns de cooperação internacional, tendo em vista seu baixo grau de independência, em contraste com o da autoridade europeia, equiparada no GDPR, artigo 54 (1), ao nível de desembargador, e com as agências regulatórias norte-americanas.

Tramitação da MP 869, vício de iniciativa e (in)segurança jurídica
À luz do exposto, faz-se imperioso que Congresso Nacional reforme o delineamento da ANPD disposto da MP 869 para conferir-lhe lastro jurídico à altura do mandato e das expectativas.

Todavia, os vetos aos artigos 55 e 56 do PLC 53 foram motivados justamente pela irresignação presidencial com o aperfeiçoamento do texto do PL 5.276, empreendido e aprovado pelo Legislativo. Como, então, modificar o texto no bojo tramitação da MP 869 sem incorrer em nova arguição de vício de iniciativa?

Logo após a aprovação do PLC 53 pelo Senado, manifestamo-nos rejeitando, com base na jurisprudência do STF, a noção de que teria havido usurpação de prerrogativa legislativa, expressão. Os fundamentos abaixo sumarizam o posicionamento:

Se é fato que a discussão sobre proteção de dados pessoais foi iniciada noPoder Legislativo, …, também o é que o encaminhamento do PL 5.276/16, se deu por iniciativa da então Presidente da República. […]

A comparação dos projetos de lei de iniciativa do Executivo e do Legislativo realça … a relevância do prototexto presidencial na moldagem do substitutivo … fruto, também, de ourivesaria democrática com grau de participação sem precedentes …. Agrega-se, portanto, ao reconhecimento da iniciativa presidencial no âmbito formal, a sua retumbante prevalência[5]. (grifamos)

O legislador assim o fez com base na CF/88, artigo 48, XI, que lhe atribui competência para criação e extinção de órgãos da administração pública por meio de emenda sem aumento de despesa, observada a reserva legal, artigo 37, XIX, e prerrogativa de iniciativa do chefe do Executivo para propostas de lei que alterem a estrutura da administração direta e autárquica, artigo 61, parágrafo 1º, alíneas ‘a’, ‘b’, e ‘e’.

Assim caminham o ministro Ilmar Galvão e o professor Jorge Lavocat Galvão, que, compulsando a jurisprudência do STF, elaboram sobre as latitudes constitucionais ao poder de emenda parlamentar a projetos de iniciativa do Poder Executivo. Para os juristas, uma vez deflagrada a iniciativa legislativa pelo presidente, o Legislativo detém margem para aperfeiçoar a forma atinente à órgãos da administração, in verbis:

“[…] não haveria se falar em inconstitucionalidade formal se, … um projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo prevendo a criação de uma autarquia …fosse aprovado pelo Congresso Nacional, com a modificação da figura administrativa, criando-se uma empresa pública, por melhor se adequar às necessidades concretas da atividade a ser desempenhada […].

[…] a vedação constitucional é de iniciativa parlamentar com escopo de criar …nova entidade estatal, …uma vez instaurado o processo legislativo por parte do Poder Executivo, proibir a deliberação sobre qual a melhor figura administrativa para desempenhar a atividade, seria o mesmo que embargar os canais legislativos, transformando o Parlamento em mero órgão de chancela das decisões presidenciais”[6].

O Supremo estabelece as duas condições do poder de emenda do Legislativo nas iniciativas de lei deflagradas pelo Poder Executivo[7]. O excerto da ADI 3.114/SP sumariza:

“Às normas constitucionais de processo legislativo não impossibilitam …a modificação, por meio de emendas parlamentares, dos projetos de lei enviados pelo Chefe do Poder Executivo no exercício de sua iniciativa privativa. Essa atribuição do poder legislativo …esbarra …em duas limitações: a) a impossibilidade de o parlamento veicular matérias diferentes das versadas no projeto de lei, de modo a desfigurá-lo; e b) a impossibilidade de as emendas …implicarem aumento de despesa pública (inciso I do art. 63 da CF)”[8].

Reiteramos, assim, o entendimento de que o Congresso goza da prerrogativa para aperfeiçoar a MP 869 por via de projeto de lei de conversão. Tanto porque a temática é a aduzida no próprio texto da MP 869 quanto por conta do artigo 55-A, que determina a criação da ANPD sem aumento de despesa, a ser preservado.

Infelizmente, o debate que se seguiu aos vetos apostos ao PLC 53 estabeleceu precedente negativo. A tese do vício de iniciativa pode voltar à tona constrangendo o Poder Legislativo. Pior, caso o Congresso Nacional aperfeiçoe a natureza jurídica da ANPD, respeitando os limites da jurisprudência suprema, ainda assim não se escapa da insatisfação de outrem que venha a provocar o pretório excelso. Não gozaremos, portanto, de segurança jurídica perfeita. Porém, se a tramitação da MP 869 for orientada pelo melhor interesse do país e marcada pelo diálogo entre os poderes, alcançaremos segurança jurídica substantiva. Em assim sendo, há que, com confiança nas instituições, construamos arcabouço compatível com papel de regulador independente, à altura da fenomenologia da era digital.

*Este texto expressa exclusivamente a posição acadêmica dos autores.


[1] HARARI, YUVAL NOAH. Homo Deus, a brief history of tomorrow. Harvill Secker, 2016, p. 444.
[2] DE PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2004 in DOS SANTOS, Marco Aurelio Moura. Agências Reguladoras: Natureza Jurídica e Poder Normativo. São Paulo: Kindle Edition, 2015.
[3] REGULAMENTO (UE) 2018/1725 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 23/10/2018, relativo à proteção das pessoas singulares… e que revoga o Regulamento (CE) 45/01 e a decisão 1247/02/CE. Disponível em https://bit.ly/2DpaRyD. Acesso em 16/1/2019.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 67-68
[5] GALLINDO, Sergio Paulo; STIVELBERG, Daniel .T. Constitucionalidade da criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Tramitação legislativa e ausência de usurpação de prerrogativa. Publicado por JOTA
[6] GALVÃO, Ilmar Nascimento; GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. Parecer à consulta de Laura Schertel Mendes e Danilo Doneda publicado por JOTA. Disponível em https://bit.ly/2v1E25U. Acesso em 13/1/2019.
[7] ADI 1.834, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 8/3/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-099 PUBLIC 22/5/2018 e RE 257.163.
[8] ADI 3.114/SP, Rel. Min Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJ 7/4/2002

Autores

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    é presidente executivo da Brasscom, advogado, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Ciência da Computação pela University of Texas at Austin, com apoio do Fulbright Intl. Fellowship Program. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e engenheiro eletrônico pela (Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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    é gerente de Relações Governamentais da Brasscom, advogado, pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP e em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba e em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba.

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