Opinião

Representação processual do produtor rural pela sua cooperativa traz benefícios

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23 de janeiro de 2019, 11h55

Foi o legislador brasileiro, na verdade, que protagonizou, de modo muito mais profundo e mais rico do que nos países da civil law, a “revolução” mencionada por Cappeletti e Garth, em prol da criação de instrumentos de tutela coletiva.”
(Teori Zavascki)

Preservando este protagonismo tão bem referido pelo saudoso ministro Teori Zavascki[1], entrou em vigor a Lei Federal 13.806, de 11 de janeiro de 2019, cuja epígrafe informa que o novel diploma atribui às cooperativas a possibilidade de agirem como substitutas processuais de seus associados. A lei em referência acrescenta ao artigo 21, da lei 5.764/71 (LCOOP), o inciso XI, estabelecendo a possibilidade de o estatuto da cooperativa prever “poder para agir como substituta processual de seus associados”.

Além disso, e mais importante, acrescenta à LCOOP o artigo 88-A:

A cooperativa poderá ser dotada de legitimidade extraordinária autônoma concorrente para agir como substituta processual em defesa dos direitos coletivos de seus associados quando a causa de pedir versar sobre atos de interesse direto dos associados que tenham relação com as operações de mercado da cooperativa, desde que isso seja previsto em seu estatuto e haja, de forma expressa, autorização manifestada individualmente pelo associado ou por meio de assembleia geral que delibere sobre a propositura da medida judicial.

A medida é positiva e enriquece o Direito Processual coletivo brasileiro, conforme será defendido mais adiante, mas não é possível deixar de observar que mesmo após 30 anos da promulgação da Constituição de 1988 o legislador continua ignorando o exaustivo trabalho da doutrina, e da jurisprudência, na consolidação de conceitos jurídicos fundamentais e básicos da dogmática jurídica que são justamente a representação, a substituição processual e a legitimação extraordinária autônoma.

Representação processual, não custa recordar, é o instituto de Direito Processual coletivo que explica a intervenção no processo de pessoa que defende, em juízo, em nome próprio, direito alheio. Encontra substrato no disposto no artigo 5, inciso XXI, da CF/88, além do que dispõe o artigo 18 do Código de Processo Civil e outras normas específicas.

Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal, em regime de repercussão geral (RE 573.232/SC):

REPRESENTAÇÃO – ASSOCIADOS – ARTIGO 5º, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ALCANCE. O disposto no artigo 5º, inciso XXI, da Carta da República encerra representação específica, não alcançando previsão genérica do estatuto da associação a revelar a defesa dos interesses dos associados. TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL – ASSOCIAÇÃO – BENEFICIÁRIOS. As balizas subjetivas do título judicial, formalizado em ação proposta por associação, é definida pela representação no processo de conhecimento, presente a autorização expressa dos associados e a lista destes juntada à inicial.
(RE 573232, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2014, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-182 DIVULG 18-09-2014 PUBLIC 19-09-2014 EMENT VOL-02743-01 PP-00001) – sem grifos e subscritos no original

Confirmando tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal, também em repercussão geral, limitou a extensão subjetiva dos efeitos da coisa julgada coletiva, em demanda proposta por associação, tão somente aos filiados que ostentavam tal condição na data do ajuizamento da ação. Vide:

EXECUÇÃO – AÇÃO COLETIVA – RITO ORDINÁRIO – ASSOCIAÇÃO – BENEFICIÁRIOS. Beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles que, residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram da lista apresentada com a peça inicial.
(RE 612043, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-229 DIVULG 05-10-2017 PUBLIC 06-10-2017) – sem grifos e subscritos no original

Outrossim, é preciso que se esclareça que não se confunde a representação processual coletiva tratada no presente artigo, que, como visto, possui contornos próprios, com aquelas previstas em determinadas situações específicas ao longo da legislação processual, como, por exemplo, os casos da representação processual dos pais em relação aos bens e interesses dos filhos, ou, ainda, a dos sucessores enquanto não se designa inventariante, e a extensa lista do artigo 75 do CPC. Aqui, repita-se, o foco é o Direito Processual Civil coletivo.

Por outro lado, e ainda tendo por base o mesmo precedente do Supremo Tribunal Federal, a substituição processual é o instituto de Direito Processual Civil que também permite a defesa, em juízo, de direito alheio, em nome próprio (?!). Neste sentido, é de perguntar: qual a diferença da substituição para a representação processual coletiva se ambas, como se disse, permitem a defesa de direito alheio em nome próprio através de legitimado estabelecido em lei?

A diferença fundamental diz respeito à extensão dos efeitos da coisa julgada coletiva.

Quando se tratar de representação processual, como se viu, a coisa julgada somente alcança os filiados, que ostentavam tal condição, na data do ajuizamento da ação de conhecimento, entendimento que ocasiona inúmeros inconvenientes, como, por exemplo, a necessidade de ajuizamentos sucessivos quando a violação de direitos coletivos se protrai no tempo.

Já no caso da substituição processual, os efeitos da coisa julgada coletiva alcançam a classe ou categoria representada pelo ente coletivo, independentemente de filiação, bastando ao potencial beneficiário, na fase de liquidação do julgado, comprovar seu enquadramento no título (pertencer à classe ou categoria substituída).

Como exemplo de substituição processual, podem ser citadas as demandas coletivas ajuizadas pelos sindicatos, que contam com autorização constitucional expressa para tal regime de atuação, nos termos do artigo 8, inciso III, do texto magno. Ainda, é possível citar o artigo 3, da Lei 8.073/90, que é explícito: As entidades sindicais poderão atuar como substitutos processuais dos integrantes da categoria.

Deste modo, quando se trata de substituição processual, o ente legitimado atua em juízo na defesa de interesses de toda uma classe, ou categoria, independentemente de filiação. A coisa julgada, neste caso, se estende a todos os integrantes da classe ou categoria, filiados ou não, ressalvada a manifestação prevista no artigo 104 da Lei Federal 8.078/90 (CDC), ou seja, não alcança as ações individuais das quais os interessados não requeiram suspensão, no prazo de 30 dias, com vistas à adesão à sorte da demanda coletiva.

Por fim, e sem desmerecer outros desdobramentos que este instigante assunto da teoria geral do processo civil enseja (e são muitos!), é preciso, antes de prosseguir, esclarecer que legitimação extraordinária autônoma concorrente nada mais é do que espécie do gênero substituição processual. Segundo Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery[2],

quando aquele que tem legitimidade para estar no processo como parte não é o que se afirma titular do direito material discutido em juízo, diz-se que há legitimação extraordinária.

Os termos “autônoma” e “concorrente”, dados pela Lei 13.806/2019, significam que a legitimação extraordinária das cooperativas, na LCOOP, pretende ser, do ponto de vista processual, de direito próprio, ou seja, podendo a entidade decidir, per si, porém mediante autorização dos filiados interessados ou da assembleia, defender os interesses em juízo, independentemente das decisões individuais dos associados.

Postas as distinções necessárias, ainda que de forma não exaustiva, é preciso observar que a LCOOP, com a alteração legislativa em discussão, confunde os institutos jurídicos retro mencionados ao limitar aos associados aquilo que denomina de “substituição processual” e sua espécie, “legitimação extraordinária”.

Ora, se se de substituição processual se trata, não há sentido em limitar a defesa dos “associados” da entidade, vez que tal forma de intervenção do ente coletivo não exige, segundo a jurisprudência do STF, a filiação, ou, até mesmo, a autorização individual para o ajuizamento de ação coletiva.

Na verdade, a lei, ainda que de forma confusa, criou nova hipótese de representação processual. A limitação aos filiados (artigo 88-A, da LCOOP), a necessidade de autorização individual e/ou assemblear, além da autorização estatutária (artigo 21, XI, da LCOOP), estão como que a dizer que de representação processual se trata, muito embora se refira, de forma equivocada, à figura da substituição.

É isso: lei malfeita, ou, no mínimo, mal escrita. E não se deve justificar o lapso ao pretenso desconhecimento do legislador, dada a heterogeneidade do parlamento. A experiência de pelo menos 33 anos desde a publicação da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 (LACP), está a indicar que não se aproveitou na feitura do novel diploma os avanços doutrinários e jurisprudenciais na matéria.

A utilização de termos equivocados, do ponto de vista técnico, poderá dar ensejo à má aplicação da lei, frustrando os objetivos do próprio legislador, enquanto criador da norma, e dos seus destinatários, em especial dos cooperados brasileiros que aguardavam a normatização deste importante tema.

Recomendável, então, aos operadores jurídicos, cautela no ajuizamento de demandas coletivas por cooperativas com fundamento na lei 13.806/2019, devendo ser dispensado tratamento de representação processual no momento da propositura da ação (sobretudo: autorizações estatutária, individual e assemblear; observância dos requisitos da Lei 9.494/97 quando se tratar de ente público no polo passivo; limites da coisa julgada coletiva, nos termos dos artigos 95 e seguintes do CDC etc.).

De uma maneira geral, o Supremo Tribunal Federal vem, ao longo dos anos, limitando o uso do processo civil coletivo, ao contrário, por exemplo, do Superior Tribunal de Justiça, que, antes dos precedentes do STF, acima citados, entendia invariavelmente pela quase equivalência dos institutos, notadamente quanto à extensão subjetiva da sentença coletiva que, inclusive, segundo alguns acórdãos, alcançaria os não filiados de entidade associativa mesmo que não fosse sindicato.

Vide,

Processual. Agravo no recurso especial. Ação de execução. Prequestionamento. Título executivo judicial. Sentença proferida em ação civil pública contra empresa pública, favoravelmente aos poupadores do Estado. Extensão da coisa julgada. Comprovação da legitimidade ativa do credor. Demonstração de vínculo associativo. Apresentação de relação nominal e de endereço dos associados. Desnecessidade.
– O prequestionamento dos dispositivos legais tidos por violados constitui requisito específico de admissibilidade do recurso especial.
– Porquanto a sentença proferida na ação civil pública estendeu os seus efeitos a todos os poupadores do Estado do Paraná que mantiveram contas de caderneta de poupança iniciadas ou renovadas até 15/6/87 e 15/1/89, a eles devem ser estendidos os efeitos da coisa julgada, e não somente aos poupadores vinculados à associação proponente da ação.
Para a comprovação da legitimidade ativa de credor-poupador que propõe ação de execução com lastro no título executivo judicial exarado na ação civil pública, despicienda se mostra a comprovação de vínculo com a associação proponente da ação ou a apresentação de relação nominal e de endereço dos associados. Precedentes.
Agravo no recurso especial desprovido.
(AgRg no REsp 641.066/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/09/2004, DJ 04/10/2004, p. 296) – sem grifos e subscritos no original

Digno de nota, entretanto, é o REsp 1.554.821/RS, também relatado pela ministra Nancy Andrighi, de recente publicação (4/10/2018), que lança novas luzes na matéria, reacendendo o debate:

Por se tratar do regime de substituição processual, a autorização para a defesa do interesse coletivo em sentido amplo é estabelecida na definição dos objetivos institucionais, no próprio ato de criação da associação, sendo desnecessária nova autorização ou deliberação assemblear – sem grifos e subscritos no original

De todo modo, e tendo em vista o quadro e a quadra atuais, e, ainda, tendo em vista o risco de frustração nos momentos da liquidação ou do próprio cumprimento da sentença coletiva, com arguição de inúmeros óbices na fase de impugnação, é preciso, repita-se, cautela por parte das cooperativas no ajuizamento de demandas coletivas no regime de representação descrito no presente artigo.

A imprecisão do legislador, aliada à instabilidade jurisprudencial, pode transformar uma decisão coletiva favorável numa promessa não cumprida. Numa vitória de Pirro no exato momento em que o juízo for analisar a extensão subjetiva do julgado coletivo. Como exemplo, cito o caso do Plano Collor, onde, após a fase de adesão aos acordos com a Advocacia-Geral da União (até 18/3/2019, a depender da idade do aderente, dentre outros critérios), certamente advirão milhares de decisões extintivas de execuções ajuizadas, há mais de 25 anos, por poupadores que não eram filiados às suas respectivas associações e que não aderiam na esperança de receber um valor maior.

Por fim, não deixa de ser alvissareira a iniciativa de se criar, no diploma legal em epígrafe, hipótese de representação processual em sociedade simples, ou seja, em favor de entidade de direito privado que desenvolve atividade econômica, com fins lucrativos, e agora pode atuar na defesa de interesses dos seus associados quando a causa de pedir versar sobre atos de interesse direto dos associados que tenham relação com as operações de mercado da cooperativa.

Cumpre observar que o artigo 982, parágrafo único, do Código Civil estabelece que as cooperativas independentemente de seu objeto consideram-se sociedades simples. Portanto, são sociedades simples, por força de lei, ainda que o objeto social desenvolvido seja empresarial (o que é muito comum, diga-se).

Legitimidade ativa em ação coletiva para pessoa jurídica de direito privado não é novidade no Direito brasileiro. As empresas públicas e sociedades de economia mista ostentam tal legitimidade, sobretudo para a defesa dos interesses públicos pertinentes ao desenvolvimento de suas atividades. Como exemplo, vejam-se os artigos 6, parágrafo 3, da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular – LAP) e 5, inciso IV, da LACP. O mesmo se diz das associações, nos termos dos artigos 5, inciso V, da LACP e 82, inciso IV, do CDC.

No caso da lei em estudo, entretanto, verifica-se que o legislador concedeu legitimidade para pessoa jurídica de direito privado exclusivamente vocacionada a desenvolver atividades econômicas, com intuito lucrativo, organizada na forma de sociedade simples, ainda que possa objeto social de natureza empresarial como, por exemplo, as milhares de cooperativas agrícolas existentes em todo o território nacional.

Tal medida poderá beneficiar milhares de produtores rurais cooperados em inúmeras matérias relacionadas com o desenvolvimento de suas atividades econômicas, em inúmeras cadeias produtivas do agronegócio, como, por exemplo, meio ambiente, crédito e em questões trabalhistas, desafogando o Poder Judiciário através do uso da tutela molecular, na dicção de Kazuo Watanabe.

A princípio não há qualquer óbice constitucional quanto ao fato de o legitimado coletivo (cooperativa) exercer atividade econômica com fins lucrativos. Sociedades de economia mista e empresas públicas, por ostentarem regime jurídico de direito privado, também buscam o lucro no desenvolvimento de suas atividades econômicas.

Os próprios sindicatos e associações, ainda que sem fins lucrativos, não possuem óbices quanto ao desempenho de atividades econômicas, não havendo que se confundir superávit com lucros, sendo estes, como se sabe, a parcela que sobeja após finalizado o exercício social e que pode ser distribuída aos sócios.

Cooperativas são sociedades simples, com intuito lucrativo e, doravante, contam com importante mecanismo de defesa de seus cooperados. Trata-se de mais um importante reflexo da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), que extinguiu a contribuição sindical obrigatória, inclusive a patronal, e abriu novas perspectivas na defesa coletiva do produtor rural.


[1] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 6. ed. rev. atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2014, p. 30.
[2] Comentários ao Código de Processo Civil /Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 254.

Autores

  • Brave

    é procurador do Distrito Federal, advogado, professor do Iesb, mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e especialista em Gestão do Agronegócio pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro da American Agriculture Law Association e da União Brasileira dos Agraristas Universitários e ex-secretário-geral da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB-DF.

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