Opinião

Implantação do plea bargain requer intensa discussão de cunho criminológico

Autor

  • Amaury Silva

    é juiz de Direito em Minas Gerais e professor de Direito Penal e Processual Penal. Doutorando em Ciências da Comunicação mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos) e especialista em Direito Penal e Processual Penal.

23 de janeiro de 2019, 5h05

As estratégias da política criminal devem ser conduzidas pela dicotomia de que o Estado não pode fornecer uma proteção deficiente, mas se orientar por um respeito à proibição do excesso. A proposta para a introdução no Brasil do instituto do plea bargain — originário dos países que adotam o sistema common law — enseja reflexão sob a ótica desse equilíbrio.

Se não se mostra salutar um preconceito sem elementos fundantes, que resultem na produção de uma ojeriza ao novo só pelo fato de a mudança sacudir nossa zona de conforto, não se recomenda ingenuidade em criminologia. Mesmo que de boa-fé, a premissa de que o óbvio esteve sempre à nossa frente e fora ignorado circunstancialmente não pode ser prestigiada como uma epifania redentora.

A problemática do crime é intrincada e, em razão dessa complexidade, as soluções para seu controle e proteção aos bens jurídicos não são singelas. Não há solução linear, duradoura ou generalista. As elaborações criminológicas exigem permanentes diagnósticos e abordagens específicas. Santos (2007) rejeita uma perspectiva mágica para a questão criminal, tanto quando se fala em Direito Penal mínimo ou tolerância zero[1].

Compreender o fenômeno exige a identificação do ethos criminológico, variáveis temporais, culturais e espaciais. Esses parâmetros da fenomenologia do crime são elementos estruturantes para a ação criminológica. No dizer de Molina e Gomes (2011), a criminologia terá como função central a aferição indicativa da resposta social e legal ao delito[2].

A mudança de paradigma para uma Justiça consensual, com aplicação de pena articulada por acordo entre órgão acusador, réu e órgão defensivo, é a essência do plea bargain. As virtuais vantagens de celeridade, economia de recursos humanos e materiais não significam de forma automática nenhum choque ou impacto nas causas do fenômeno criminal.

O conceito de delito para a criminologia tem uma sofisticação que transcende a repressão e faz uma abertura que a posiciona como campo de conhecimento voltado à prevenção, em grau de superioridade ao Direito Penal, conforme sintetiza Calhau[3].

A aplicação do plea bargain nos EUA, conforme Amaral (2005), resolve 90% dos processos criminais naquele país[4]. São feitos ajustes entre acusação e defesa para o reconhecimento de culpa, com redução de pena, em comparação com uma possível condenação pelo órgão judiciário competente. O percentual é impressionante em termos estatísticos, mas não traz qualquer outro fator dissuasório criminológico do que um evidente reforço da função simbólica da reação estatal ao crime, como explica Rodrigues (1998)[5].

Perde-se ainda a oportunidade de efetivação da terceira via no Direito Penal, com a despenalização pela reparação de danos como concebida por Roxin (1992)[6], já que os acordos apenas de modo contingente abordam reparações ao ofendido. Quanto mais rápida for a pena e mais próxima do crime cometido, tanto mais será ela justa e tanto mais útil — o consagrado e atual ensinamento de Becaria (2006) é a vantagem principal que pode ser extraída do plea bargain[7].

Mas não sem riscos ou suficiência como mecanismo criminológico. Apenas um dos seus vetores, o efeito simbólico da pena, é que se aciona com ênfase. Vários outros relacionados à aplicação transdisciplinar da criminologia não são convocados. A pressão, chantagem ou inibição para a consecução dos ajustes são elementos deletérios que conspiram contra uma ideia de assepsia do plea bargain e afastam sua concepção como panaceia.

Eliminar formal e estatisticamente processos das unidades criminais de delegacias e juízos é relevante, mas não implica necessariamente em êxito no combate à criminalidade. Precisamos de muito mais energia criminológica, posicionando esse campo do saber em ambiente de centralidade nas tarefas do Estado naquilo que se refira à lógica da defesa preventiva e defesa repressiva, dispositivos que orientam o agir criminológico desde Ferri (2003)[8].

Se é para ser efetivada a experiência brasileira com o plea bargain, que seja acautelada quanto aos seus riscos inatos e inserida no contexto do constitucionalismo e do processo penal brasileiros. Construção que deve observar ainda o perfil do nosso sistema penal, as características das instituições que militam no meio, as vulnerabilidades das liberdades individuais quando expostas ao poder estatal, sobretudo, em épocas de indisfarçável adesão ao punitivismo.

Não há antídoto ou sistema perfeito, isento de erros em nenhuma parte do mundo, quanto à atuação falha das agências penais, nem mesmo nos EUA, de onde parece estar sendo importado o modelo plea bargain. Ali foi produzido um dos mais dramáticos casos de injustiça penal — o erro judiciário contra Rubin Carter, que se transformou no hino antológico contra a injustiça e o racismo com a poética Hurricane de Bob Dylan.

Para essa tutela, mesmo que não se tenham garantias plenas a priori, indispensável que o plea bargain tupiniquim se submeta ao devido processo legal, contraditório, ampla defesa e à cláusula de reserva da jurisdição. O modelo acusatório deve ser observado, mesmo que de forma residual, para reservar à jurisdição penal o controle quanto às homologações dos acordos, acatando-os ou rejeitando-os, modificando-os ou ajustando-os com a participação dos polos, preservando assim a proposição garantista sublinhada por Ferrajoli (2006)[9] pela expressão do princípio da jurisdicionariedade, previsto no Brasil em vários dispositivos constitucionais (artigo 5º, XXXV, LIII, LIV, LV, LVII, CF).

É nessa perspectiva que a adoção do plea bargain resultaria em maior racionalidade se observado o critério das velocidades do Direito Penal como concepção de Silva Sánchez (1999)[10]. Com esse propósito, busca-se o meridiano entre vários formatos do Direito Penal. Para situações menos graves, quando o risco de um erro judiciário não provocar danos ou situações de maior severidade, utilizamos de uma flexibilidade moderada quanto às garantias e elevando-se o tom das garantias para as hipóteses delituosas de aplicação de penas mais graves, notadamente a privativa da liberdade.

O plea bargain à brasileira poderia ser funcionalista e garantista, se provido de três velocidades, cujo critério orientador fosse a gravidade das sanções penais. Em uma primeira velocidade, a opção de lege ferenda consistiria em uma alteração no conceito de infração penal de menor potencial ofensivo (artigo 61, Lei 9.099/95 – Juizados Especiais Criminais).

Atualmente, as infrações penais com penas máximas cominadas até 2 anos de privação da liberdade ou multa recebem o rótulo de infração penal de menor potencial ofensivo. Para essa hipótese, temos o utilitário da transação penal, que é uma modalidade de acordo entre o Ministério Público, o autor dos fatos e sua defesa, com homologação judicial. Aceito o ajuste para a imposição de pena consensual (restritiva de direito ou multa), seu cumprimento leva à extinção da punibilidade (artigo 84, parágrafo único, Lei 9.099/95).

Em contrapartida, o artigo 44, I, CP permite a substituição da pena privativa da liberdade (objeto da condenação) por restritivas de direito, se aplicada aquela até o patamar de 4 anos e se o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, não houver reincidência em crime doloso e estampada a suficiência da substituição (artigo 44, II e III, CP). Ora, a simetria entre a não adoção da privativa da liberdade deflagra uma premissa de que se pode elevar o teto do quantitativo modular para a sua configuração como de menor potencial ofensivo. Dessa forma, o artigo 61, Lei 9.099/95 pode ser alterado para dizer que o máximo da pena privativa da liberdade é de 4 anos para ser tratada em regra como infração de menor potencial ofensivo, salvo se houver enquadramento nas restrições dos incisos II e II, artigo 44, CP.

Nessa primeira velocidade do plea bargain, aproveita-se para dispensar a realização do inquérito policial ou outra investigação, inserindo-se a proposta no procedimento adotado pela Lei 9.099/95. E com um outro acréscimo substancial: se aplicado inicialmente o regime aberto em razão do acordo entre Ministério Público, autor dos fatos e defesa, devidamente homologado pelo juiz, o procedimento é idêntico à autuação sumária da Lei dos Juizados Especiais Criminais.

Essa alteração legislativa seria excelente oportunidade para se atribuir legitimidade e eficácia às transações penais, inserindo-se normas no artigo 76, Lei 9.099/95, impondo a obrigatoriedade do seu cumprimento, sob pena de instaurar-se a execução penal e a modificação do artigo 116, CP, para não se computar o prazo prescricional durante o período destinado ao cumprimento da pena originária da transação penal. A transação penal, e agora o plea bargain de primeira velocidade, se libertaria das amarras da Súmula Vinculante, 35 do STF[11], pois receberia o tratamento de coisa julgada material.

Na segunda velocidade do plea bargain, o controle quanto à flexibilização das garantias sobe algumas camadas. Quando o ajuste é a partir da cominação legal das penas e as negociações tratadas entre o órgão acusador, o réu e seu defensor estabelecessem privação da liberdade com cumprimento inicial no regime semiaberto, a homologação não pode ser precedida apenas de uma autuação sumária.

É que o risco da privativa da liberdade aplicada erroneamente nessa hipótese resultaria em erro judiciário grave, como prisão indevida. A elevação dos níveis de garantia produziria um contraponto com outros filtros para se minimizar esse quadro. Apresenta-se, assim, razoável que o procedimento envolva na persecução penal a fase de investigação, salvo se for o caso de formação da opinio delict com outros elementos, com a formalização da denúncia contendo os elementos da imputação. Em etapa seguinte, o réu e sua defesa avaliam a pertinência da aceitação da pena consensual. Ocorrendo a aceitação, a homologação judicial seria indispensável.

A terceira velocidade do plea bargain é aquela destinada ao tratamento com os casos que resultar na imposição de regime fechado inicialmente para o cumprimento da pena privativa da liberdade. Deve ocorrer nesses casos uma agudez das garantias. Nesse regime, o tempo de recolhimento ao cárcere é mais elevado. Logo, o gravame no caso de erro é mais drástico. Dessa forma, pensamos ser indispensável que as tratativas do acordo só podem ser viabilizadas se presente a justa causa para a ação penal, a pertinência técnica e probatória para se conjeturar uma possível condenação. Desse modo, o momento processual para que haja o encontro ou audiência entre os polos do processo penal para ajustarem o acordo deve ser posterior ao exaurimento da instrução probatória, antes das postulações finais.

Se estabelecido o acordo, submete-se à apreciação judicial para a homologação. Caso contrário, o episódio é objeto de julgamento orientado pela dialética ordinária.

A implantação no Brasil do plea bargain é sem dúvida a principal modificação no processo penal brasileiro, desde a vigência do atual CPP (na década de 1940). Se for realizada sem qualquer diretriz ou planejamento normativo que controle seus vícios e desvantagens, criaremos um instrumento frontalmente dissipador das garantias constitucionais e processuais penais brasileiras. A sua adaptação à tradição e ao sistema acusatório brasileiro com os freios e ponderações tratadas nessas sugestões, que são apenas convocações para uma reflexão mais ampla, contribuiria para uma maior racionalidade dessa experiência, que não deve ser formalizada sem uma intensificação dos debates e das discussões de cunho criminológico.


[1] SANTOS, Alberto Marques dos. Criminalidade – Causas e Soluções, Juruá, 2007, Curitiba.
[2] MOLINA, Antonio García-Pablos e GOMES, Luiz Flávio. Criminologia, Editora Revista dos Tribunais, 2011, São Paulo.
[3] CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. Impetus, 2006, Niterói.
[4] AMARAL, Cláudio do Prado. Despenalização pela reparação de danos. JH Mizuno, 2005, Leme.
[5] RODRIGUES, Anabela Miranda. A Celeridade no Processo Penal – Uma Visão de Direito Comparado, Revista Portuguesa de Direito Criminal, ano 08, fascículo 2º, Coimbra, Ed. Coimbra, abril / junho 1998.
[6] ROXIN, Claus. Fines de la Pena y Reparación del Daño, De los Delitos y de las Víctimas, 1ª ed., Buenos Aires, Ad Hoc, 1992.
[7] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006.
[8] FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal – O Criminoso e o Crime. Russel, Campinas, 2003.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal (trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes), Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006.
[10] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal em las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999.
[11] Súmula Vinculante 35, STF: A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.

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    é juiz em Minas Gerais e professor de Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos) e doutorando em Ciências da Comunicação.

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