Opinião

Por que os magistrados precisam estudar administração pública

Autor

  • Ronaldo Bastos

    é doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) professor universitário e pesquisador da Universidad Nacional de Rosario (Argentina).

22 de janeiro de 2019, 6h07

O modo como hoje se administra a prestação dos serviços estatais está ultrapassado, em particular os serviços judiciais. As causas podem ser várias e de difícil identificação. O certo é que a sociedade mudou e, com ela, também mudaram as necessidades materiais, culturais e até “espirituais” dos homens, o que não quer dizer que são “melhores” ou mais “progressistas”, são simplesmente diferentes.

E se as necessidades não são as mesmas, também não são as expectativas dos cidadãos sobre a atuação do Estado, que, hoje, deve interferir em certas matérias até então intocáveis, seja por dizerem respeito à iniciativa privada (como a discussão acerca da função social do contrato, dentro do que os constitucionalistas chamam de eficácia horizontal dos direitos fundamentais), seja por não dizerem respeito a ninguém em particular (como a questão da preservação do meio ambiente).

Assim, devemos indagar quais são as novas funções atribuídas ao Poder Judiciário na sociedade contemporânea. Em outras palavras, interessa-nos saber como uma instituição tradicional poderia modificar a sua estrutura organizacional para se adaptar às novas exigências sociais e, ao mesmo tempo, preservar a tradição que lhe é inerente. Trata-se de estudar o equilíbrio instável existente entre duas tendências: de um lado, a modernização das técnicas de decisão e da administração dos quadros funcionais e, de outro, a manutenção da identidade judiciária.

É preciso dizer que quando eu proponho “mudança” ou “evolução” do Judiciário não significa que todas as técnicas atualmente utilizadas devem ser jogadas no lixo. O que se deve evitar, a meu juízo, é a confusão — importante de ser debatida — entre a aplicação de princípios empresariais à administração pública (o que é o ideal) e a transformação do poder público em uma empresa privada (o que deve ser evitado), porque existem certos procedimentos, tachados de “burocráticos”, que são imprescindíveis para a preservação do interesse público, pressupostos que a iniciativa privada não precisa seguir, mas que o Estado é obrigado a respeitar, sob pena de desvio de finalidade.

Na verdade, o Judiciário não precisa de uma revolução, mas, sim, de uma reformulação, um arejamento, uma abertura a novas ideias. O mundo mudou e, com ele, também foi modificado o modo de administrar a coisa pública e a forma de proferir os julgamentos. Neste contexto, os cartórios judiciais têm um papel relevante, porque não é mais admissível, em sociedades dinâmicas como a nossa, a tramitação de processos com duração “irrazoável”, porque a demora prejudica os negócios, a economia e os cidadãos, que precisam de um instrumento mais célere de resolução de controvérsias.

Registre-se, porém, que a demora na tramitação dos processos não é um problema exclusivamente brasileiro ou latino-americano, mas mundial, só que ocorre de forma mais profunda nos países em desenvolvimento. Nesse sentido, é notável a pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça do Brasil, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, onde foi constatado que mais de 80% do tempo de um processo corresponde à espera por diligências dos funcionários[1], chamados de “tempos mortos”, o que revela desorganização e falta de planejamento.

Mas não cabe somente aos cartórios a responsabilidade pelos problemas do Judiciário, a magistratura também tem a sua parcela de culpa, haja vista que, segundo a mesma pesquisa, os juízes se utilizam de mais servidores do que os regimentalmente designados para os auxiliarem em suas atividades[2], o que contribui sobremaneira para este tempo de espera.

Por isso, e para dar conta da responsabilidade pública inerente ao cargo que ocupa, é que é necessário que o magistrado se qualifique, adquirindo conhecimentos muito mais profundos, práticos e atuais do que os que lhes são proporcionados pelas bancadas acadêmicas, além de outros não propriamente jurídicos, como os da ciência da administração e da gestão de pessoas, pois o juiz, além de ter que “adquirir saberes e competências que lhe permitam distribuir justiça”, após ser aprovado no concurso público terá que “administrar comarcas, varas, gabinetes, seções, foros e tribunais”[3].

Neste intuito, as escolas judiciais — núcleos de preparação dos novos magistrados para o exercício da judicatura — desempenham um papel importantíssimo (principalmente a contar de que os editais de concurso para a magistratura só muito recentemente passaram a cobrar matérias administrativas nos seus certames), devendo oferecer disciplinas ligadas à administração judiciária no curso de formação inicial, com o objetivo de propiciar o contato do magistrado, ainda que elementar, com as tecnologias da informação e com os dados fundamentais da ciência da administração, “ofertando conhecimento em planejamento e gestão estratégica, gestão de projetos, gestão de pessoas, gestão de processos de trabalho e gestão de informação”[4].

Capacitações deste tipo se fazem necessárias porque com o crescimento contínuo das demandas (cada vez mais complexas e exigentes de uma rápida solução) a prestação judicial ganha muita importância, pois cabe ao Estado o oferecimento e a manutenção de serviços públicos de qualidade, que são obtidos com a capacitação contínua dos juízes e tem por fundamento, conforme estabelece o artigo 28 do Código Ibero-americano de Ética Judicial, “o direito das partes e da sociedade em geral em obter um serviço de qualidade na administração da justiça”.

Por isso, o Poder Judiciário, além de ter como meta a elaboração e o aprimoramento dos métodos de interpretação e aplicação do Direito, deve se preocupar com a eficiência administrativa, definida por Hely Lopes Meirelles como o dever “que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional”[5], o que revela dois aspectos, sendo um subjetivo e outro objetivo.

O primeiro aspecto diz respeito ao modo de atuação do agente público, que se amálgama à expectativa social que existe em torno do servidor para que ele execute as suas atividades com o melhor desempenho possível[6]. O segundo se refere ao modo de organizar, estruturar e disciplinar a administração pública, que tem o mesmo objetivo, qual seja, o de proporcionar à população os melhores resultados na prestação do serviço público[7], só que este é visto a partir de uma ótica institucional, enquanto o primeiro é analisado sob uma tônica nitidamente pessoal.

Uma administração pública de qualidade é aquela atenta tanto ao controle de resultado quanto ao sistema de mérito[8], devendo-se evitar apadrinhamentos e companheirismos, bem como a lentidão, a morosidade, a negligência e o descaso[9], que revelam uma tenebrosa falta de comprometimento com os interesses da comunidade, que exige honestidade de todos os profissionais envolvidos com a gestão da coisa pública, sendo certo que “a honestidade da conduta do juiz é necessária para fortalecer a confiança dos cidadãos na justiça e contribui, consequentemente, para o seu respectivo prestígio” (Código de Ética Judicial, artigo 79).

De fato, todo aquele que ingressa no serviço público tem que ter em mente que as suas atividades excedem a esfera puramente individual; elas se expandem, pois, para além do espectro unitário do ser humano ocupante do cargo público, que além de ter por dever funcional bem representar a instituição que o remunera, deve zelar pelos bens públicos. É por isso que foi formulado o artigo 37 do Estatuto do Juiz Ibero-Americano, que estabelece que “os juízes têm o dever de transcender o âmbito do exercício da dita função”, e mais, têm que buscar fazer com que a justiça “seja feita em condições de eficiência, qualidade, acessibilidade e transparência, com respeito à dignidade da pessoa que venha a demandar o serviço”.

Para alcançar esses objetivos, indicativos da excelência da prestação judicial, o juiz tem que exercer duas atividades administrativas: a principal, denominada de administração jurisdicional, consiste no conhecimento das técnicas de decisão de conflitos, e a outra, não menos importante, objeto deste texto, chamada de administração judiciária, diz respeito às relações de “planejamento, organização, direção e controle dos serviços administrativos necessários para operacionalizar a prestação jurisdicional”[10].

O mundo moderno necessita de um juiz com multifacetadas habilidades, que não seja só jurista mas também administrador, preocupado com a delegação de atividades, a definição de rotinas e a organização do trabalho, “todas atividades-meio que são essenciais ao atendimento de sua atividade-fim, a prestação jurisdicional”[11].

Neste sentido, há quem aponte um decálogo a ser seguido pelo juiz-administrador, in verbis:

Ao administrar, cumpre-lhe deixar a toga de lado devendo: a) obrigação à lei e não à jurisprudência; b) inteirar-se das técnicas modernas de administração pública e empresarial; c) adaptar-se aos recursos tecnológicos; d) decidir de maneira ágil e direta, sem a burocracia dos processos políticos; e) manter o bom e corrigir o ruim; f) delegar, se tiver confiança; g) atender a imprensa; h) lembrar que não existe unidade judiciária ruim, mas sim mal administrada[12].

De outra banda, há ainda quem defenda a necessidade de mais duas características inerentes a um bom magistrado, além das versões acima discutidas, conforme o trecho abaixo:

O mundo contemporâneo necessita do juiz-jurista (o técnico com boa formação profissional, capaz de resolver a causa com propriedade e adequação), do juiz-cidadão (com percepção do mundo que o circunda, de onde veio a causa que vai julgar e para onde retornarão os efeitos da sua decisão), do juiz-moral (com a ideia de que a preservação dos valores éticos é indispensável para a legitimidade de sua ação), do juiz-administrador (que deve dar efetividade aos procedimentos em que está envolvido, com supervisão escalonada sobre os assuntos da sua vara, do foro, do tribunal, dos serviços judiciários como um todo)[13].

O juiz moderno não pode se circunscrever às atividades específicas do seu cargo, devendo assumir tarefas que possam contribuir para o melhoramento do Poder Judiciário[14], pois se, por um lado, nos Estados democráticos os magistrados não são eleitos pelo povo, eles devem de alguma forma prestar contas aos titulares últimos do poder, conferindo, assim, legitimidade à jurisdição. Neste sentido, “o juiz”, afirma o artigo 34 do citado Código de Ética, “deve esforçar-se para contribuir, com os seus conhecimentos teóricos e práticos, para o melhor desenvolvimento do Direito e da administração de justiça”.

Isso é importante porque, como já disse, só muito recentemente os editais de concurso de magistrados passaram a prever disciplinas que exijam conhecimentos da ciência da administração e de gestão de pessoas, ignorando o fato — é necessário repetir — de que, além de “adquirir saberes e competências que lhe permitam distribuir justiça”, o juiz, depois de aprovado no concurso, “terá que administrar comarcas, varas, gabinetes, seções, foros e tribunais”[15].

Então, magistrados e tribunais, vocês devem começar a estudar administração pública. Para ontem.


Referências
[1] Ministério da Justiça. Análise da gestão e funcionamento dos cartórios judiciais. Disponível em: http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/pesquisacartorios.pdf. Acesso em: 20.jun.2008.
[2] Idem.
[3] KOURY, Suzy Cavalcante. Planejamento estratégico do poder judiciário: o papel das escolas judiciais. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, a. 35, n. 64, jan./jun. Curitiba: s/ed., 2010. Disponível em: <http://www.enamat.gov.br/wp-content/uploads/2010/02/TD06_SuzyKouryCorrigido_8_PLANEJAMENTOESTRAT%C3%89GICO-DO-PODER-JUDICI%C3%81RIO-O-PAPEL-DAS-ESCOLAS-JUDICIAIS.pdf>. Acesso em: 6.ago.2011, p. 2.
[4] Idem.
[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 90.
[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2007, 20. ed., p. 75.
[7] Idem, p. 75.
[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, op. cit., p. 90.
[9] OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 276.
[10] SILVA, Cláudia Dantas Ferreira da. Administração judiciária: planejamento estratégico e a reforma do judiciário brasileiro. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id-8062. Acesso em: 5.ago.2011.
[11] KOURY, Suzy Cavalcante. Planejamento estratégico do poder judiciário, op. cit., pp. 3-4.
[12] FREITAS, Vladimir Passos de. Os dez mandamentos do juiz administrador. Disponível em: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=8. Acesso em: 6.ago.2011.
[13] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. A função jurisdicional no mundo contemporâneo e o papel das escolas judiciais. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Coord.). Jurisdição e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 350.
[14] VIGO, Rodolfo L. Ética judicial: su especificidad y responsabilidad. In: Revista CEJ, V. 10 n. 32 jan./mar. 2006.
[15] KOURY, Suzy Cavalcante. Planejamento estratégico do poder judiciário, op. cit., p. 2.

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    é doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor de Direito Constitucional do Centro Universitário Maurício de Nassau e pesquisador da Universidad Nacional de Rosario (Argentina).

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