Flávio Bolsonaro

Jurisprudência entende que Coaf só pode repassar dados não sigilosos ao MP

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22 de janeiro de 2019, 16h49

O senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) vem alegando que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) quebrou seu sigilo bancário ilegalmente ao repassar dados de suas operações financeiras ao Ministério Público fluminense. O procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Eduardo Gussem, afirma que não houve ilicitude na transferência. Contudo, os tribunais superiores não têm um posicionamento definitivo sobre o assunto. O entendimento predominante é que o Coaf pode encaminhar informações, mas só as que não estejam protegidas pelo sigilo.

Fotos Públicas/Vitor Soares
Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, reclama de um procedimento de investigação criminal (PIC) aberto pelo MP do Rio contra um de seus ex-assessores na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), Fabrício Queiroz. Os promotores consideram suspeitas movimentações financeiras de R$ 7 milhões de Queiroz em três anos. Ele acumulava salários da Alerj e da Polícia Militar, e recebia cerca de R$ 23 mil por mês. Os dados foram enviados ao MP pelo Coaf.

A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) estabelece que o Coaf tem a função de monitorar todas as transações bancárias do país. Quando concluir que houve crime nessas movimentações, o órgão pode pedir que o MP, a polícia ou outras entidades instaurem investigações.

A Lei Complementar 105/2001, em seu artigo 6º, determinou que as autoridades fiscais podem ter acesso direto a dados de instituições financeiras quando eles forem indispensáveis para as apurações e houver processo administrativo em curso. E essas informações devem ser mantidas em sigilo. Além disso, a norma fixou que, quando o Banco Central ou a Comissão de Valores Mobiliários verificarem indícios ou a prática de crime, terão que informar o MP e entregar os documentos que baseiam suas conclusões.

Em entrevista à ConJur em 2013, o então procurador-geral do Banco Central, Isaac Sidney Menezes Ferreira, afirmou que a entidade deve preservar o sigilo dos dados obtidos de instituições financeiras. “Mas há exceções, dentre as quais a determinação legal prevista na própria LC 105 e outros diplomas legais extravagantes que obrigam o BC a comunicar indícios de crimes ao MP, ao Coaf e à Receita Federal, com os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos”, disse Ferreira na ocasião.

Na mesma época, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio opinou que esse repasse de dados viola o sigilo bancário. “Eu não concebo que dados bancários de um cidadão sejam acessados por um órgão do Ministério da Fazenda que os repassa a outros órgãos administrativos. Como fica a reserva do Judiciário e a garantia de que a suspensão do sigilo só se implementa com ordem judicial?”, questionou em entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura. A medida também foi criticada por advogados.

Sem violação
Em fevereiro de 2016, o Plenário do Supremo declarou a constitucionalidade do artigo 6º da LC 105/2001, que permite aos órgãos da administração tributária acessar dados bancários de contribuintes sem autorização judicial. Nove dos 11 ministros concluíram que a norma não configura quebra de sigilo bancário, mas sim transferência de informações entre bancos e o Fisco, ambos protegidos contra o acesso de terceiros.

Segundo o STF, como bancos e Fisco têm o dever de preservar o sigilo dos dados, não há ofensa à Constituição Federal. Na decisão também foi destacado que estados e municípios devem regulamentar, assim como fez a União no Decreto 3.724/2001, a necessidade de haver processo administrativo para obter as informações bancárias dos contribuintes.

Os contribuintes também deverão ser notificados previamente sobre a abertura do processo e ter amplo acesso aos autos, inclusive com possibilidade de obter cópia das peças. Além disso, os entes federativos deverão adotar sistemas certificados de segurança e registro de acesso do agente público para evitar a manipulação indevida das informações e desvio de finalidade.

Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. O primeiro destacou em seu voto que “no Brasil pressupõe-se que todos sejam salafrários, até que se prove o contrário”. “A quebra de sigilo não pode ser manipulada de forma arbitrária pelo poder público”, reclamou.

Marco Aurélio criticou os colegas pela virada na jurisprudência, já que, em 2010, seguindo voto dele, o tribunal entendeu ser inconstitucional a quebra de sigilo pelo Fisco sem autorização judicial. O ministro reputou o novo resultado à nova composição do Plenário, “talvez colocando-se em segundo plano o princípio da impessoalidade”.

Isso porque, como ele observou, “ante o mesmo texto constitucional”, mudou-se diametralmente de entendimento. “Embora não pareça, a nossa Constituição Federal é um documento rígido a gerar essa adjetivação, a supremacia. É ela que está no ápice da pirâmide das normas jurídicas.”

Em seu voto, Marco Aurélio fez referência ao inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “é inviolável o sigilo de dados”. A única exceção para a violação desse dispositivo é se houver ordem judicial, mas “uma exceção que não é tão exceção assim”, segundo o ministro.

“A regra é a privacidade”, continuou o vice-decano. Quem detém a prerrogativa de quebrar o sigilo bancário é o Judiciário, explicou o ministro, e que mesmo assim é limitada pela Constituição. “A se reconhecer essa prerrogativa ilimitada da Receita, ter-se-ia uma atuação política para garantir a arrecadação.”

“Vulnera a privacidade do cidadão, irmã gêmea da dignidade, concluir que é possível ter-se a quebra do sigilo de dado bancários de forma linear mediante comunicações automáticas, como ocorre segundo instrução da Receita.”

Já Celso de Mello declarou que, com essa decisão e a que permitiu a execução da pena após condenação em segunda instância, também de fevereiro de 2016, o STF deu uma guinada “conservadora e regressista” à sua jurisprudência e interrompeu a tendência de assegurar liberdades fundamentais aos brasileiros.

Transferência validada
No fim de 2017, a 1ª Turma do Supremo, por maioria, negou agravo que buscava anular investigação do MP baseada em informações bancárias obtidas diretamente do Coaf. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, disse que a solicitação de dados para apurações é compatível com as atribuições constitucionais do Ministério Público. Como a Lei de Lavagem de Dinheiro determina que o Coaf deve avisar o MP da existência de crimes, “seria contraditório” impedir esta entidade de requerer informações ao conselho, avaliou Moraes.

O relator ressaltou que as instâncias inferiores verificaram que os dados compartilhados não eram protegidos pelo sigilo bancário. Como a Súmula 279 proíbe o STF de reexaminar provas, Moraes votou por negar o recurso. Ele foi seguido pelos ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber.

Ao divergir, Marco Aurélio voltou a ressaltar a necessidade de aval judicial para o compartilhamento de dados bancários. “Entendo que há reserva do Judiciário e que esse convênio é insubsistente, já que desnuda os dados do cidadão”. O ministro referiu-se à Recomendação 4/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, que estabelece diretrizes para o uso de dados do Coaf.

Jurisprudência do STJ
O Superior Tribunal de Justiça foi mais a fundo na discussão. Em novembro de 2016, a 6ª Turma entendeu que, como as informações prestadas ao Coaf ficam à disposição de interessados, a Polícia Federal pode usá-las em investigações sem que isso caracterize quebra de sigilo. Dessa forma, o órgão não precisa pedir autorização judicial para usar tais dados.

A decisão foi na contramão do que o colegiado havia decidido na operação faktor, que apurou suspeitas de lavagem de dinheiro e crimes contra a ordem tributária no Maranhão. Na ocasião, em 2011, a 6ª Turma entendeu que o único fator que motivou a quebra de sigilo dos investigados foi um relatório de movimentações atípicas fornecido pelo Coaf. Para os ministros, seriam necessárias outras diligências e mais provas para justificar a quebra de sigilo, e não apenas o relatório do Coaf. Assim, a operação foi considerada ilegal desde o início.

Em seguida, a mesma seção concluiu que a quebra de sigilo bancário e fiscal fundada em relatório do Coaf não é ilegal. Isso porque as informações do órgão são confiáveis e justificam a medida.

Porém, no mês seguinte o ministro Rogerio Schietti Cruz avaliou que, embora o Fisco possa acessar diretamente dados de contribuintes, ele não pode usar tais informações para basear inquérito ou ação penal sem autorização judicial. Isso porque a Receita não tem autorização para compartilhar esses elementos com terceiros. O magistrado concedeu a ordem em Habeas Corpus para desentranhar de uma ação penal todos os dados de um contribuinte que foram usados pelo Fisco sem ordem da Justiça.

A 5ª Turma do STJ decidiu, em 2017, que o Coaf pode informar o Ministério Público sobre movimentações suspeitas de dinheiro sem autorização judicial – este é o caso que terminou validado pela 1ª Turma do STF. Mas não pode divulgar o conteúdo de seus relatórios, já que eles contêm informações protegidas por sigilo.

A seção seguiu o voto do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Segundo ele, as informações detalhadas inscritas nos relatórios de informações financeiras do Coaf são protegidas por sigilo fiscal e bancário. Mas a mera informação sobre a existência de atividades suspeitas, não.

De acordo com o ministro, a mera informação de movimentações suspeitas não é suficiente para acusar ninguém de nada. Tanto é, explicou, que ela pode servir de base para pedir a quebra de sigilo bancário e fiscal ao Judiciário.

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