Opinião

Uma decisão paradigmática para a proteção da vegetação nativa em áreas urbanas

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22 de janeiro de 2019, 5h42

Em outubro de 2018, o Superior Tribunal de Justiça publicou acórdão relativo ao Recurso Especial 1.518.490/SC, decisão que deve ser considerada paradigmática por assentar discussão há muito debatida pelos juristas ambientais: se caberia ao Código Florestal, norma federal, regular as áreas de preservação permanente (APP) localizadas em áreas urbanas.

No acórdão, a 2ª Turma do STJ deu parcial provimento ao recurso interposto pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para que seja respeitado o limite de 50 m de APP previsto no antigo Código Florestal (Lei Federal 4.771/1965), vigente à época dos fatos, objetivando recuperar uma área de Mata Atlântica ocupada ilegalmente. O acórdão reformou a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que havia mantido a sentença de origem, a qual delimitava a recuperação da APP ao limite de 15 m a contar do curso de água, justificando a metragem com base na Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano (Lei Federal 6.766/1979).

Como se sabe, a Lei Federal 6.766/1979 obriga, em seu artigo 4º, inciso III, que os loteadores observem faixa não edificável de 15 m de cada lado ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, salvo maiores exigências da legislação específica.

No caso, a legislação específica era o antigo Código Florestal, que na redação original não distinguia as APP em área urbana ou rural. Posteriormente, a Lei Federal 7.803/1989 introduziu no antigo Código Florestal a previsão expressa das APP em áreas urbanas, as quais deveriam observar os limites dos planos diretores e leis de uso e ocupação do solo, embora, concomitantemente, contemplasse expressamente a proteção das faixas marginais de qualquer curso de água em metragem superior àquela prevista na Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano[1], como, por exemplo, a largura mínima de 50 m para cursos de água com largura entre 10 e 50 m (artigo 2º, A, item 2 — redação estabelecida pela Lei Federal 7.803/1989).

Nesse aparente conflito normativo, parte da doutrina especializada[2] defendia a aplicação das regras do direito urbanístico às APP localizadas em zonas urbanas, considerando a coexistência de dois sistemas: (i) o primeiro, voltado à generalidade dos ecossistemas e biomas, expresso principalmente na Lei Federal 12.651/2012 (novo Código Florestal); e (ii) o segundo, relativo à proteção ambiental das áreas urbanas que se relacionam com as regras de ocupação do solo urbano e à implantação de políticas urbanas aptas a materializar a chamada função social da cidade.

Nessa linha de raciocínio, o antigo Código Florestal seria a norma geral e aplicável genericamente aos locais que não estivessem submetidos a regime especial de tutela, como, por exemplo, a vegetação do bioma Mata Atlântica, protegida por meio da Lei Federal 11.428/2008. Para esta corrente, a vegetação nas áreas urbanas estaria sob a tutela específica da Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano (Lei Federal 6.766/1979), do Plano Diretor e o do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001).

Isto porque a Constituição Federal estabelece que compete ao município promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (artigo 30, VIII), bem como promover a política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (artigo 182).

Assim, cada município poderia dispor, em seu Plano Diretor, a metragem das faixas de proteção das APP ao longo dos corpos hídricos localizados em seu território, o que, em tese, possibilitaria a diversificação de metragens das APP nos mais de 5 mil municípios brasileiros. De um lado, esse entendimento seria benéfico ao refletir a realidade local de cada ecossistema, conforme as áreas já estivessem mais ou menos antropizadas, mas, por outro, agravaria a ineficiência da fiscalização ambiental de intervenções antrópicas nestas áreas.

O debate em torno da aplicabilidade do antigo Código Florestal às zonas urbanas prosseguiu mesmo com o advento do novo Código Florestal, que faz remissão expressa à caracterização das APP em áreas rurais e urbanas[3] no caput do artigo 4º, momento em que parte da doutrina especializada[4], na qual se filia este autor, passou a defender sua aplicabilidade irrestrita às zonas urbanas, observando as medidas definidas no novo Código Florestal. Ora, a mencionada Lei Florestal não visa somente proteger as florestas, mas toda e qualquer formação vegetal[5] de qualquer ecossistema, razão pela qual o novo Código Florestal merece ser aplicado também às vegetações da cidade, seja na zona rural ou urbana.

Esse conflito aparente de normas federais tende a ser sepultado de uma só vez com a publicação do acórdão do REsp 1.518.490/SC.

Conforme se pode depreender do voto do ministro Og Fernandes, relator daquela decisão, esse conflito não merece prosperar, uma vez que a Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano fortalece a aplicação do novo Código Florestal e, por conseguinte, a proteção ambiental:

“(…) Mediante análise teleológica, compreendo que a Lei de Parcelamento Urbano impingiu reforço normativo à proibição de construção nas margens dos cursos de água, uma vez que indica uma mínima proteção à margem imediata, delegando a legislação específica a possibilidade de *ampliar os limites de proteção. Ademais, sob o vértice da especificidade, percebo que a própria Lei n. 6.766/1979 – cuja finalidade é estabelecer critérios para o loteamento urbano – reconhece não ser a sua especificidade a proteção ambiental dos cursos de água, razão pela qual indica a possibilidade da legislação específica impor maior restrição do que a referida norma. (…)Dessa forma, considero que o Código Florestal é mais específico, no que atine à proteção dos cursos de água, do que a Lei de Parcelamento de Solo Urbano. Assim sendo, restou interpretar o parágrafo único do art. 2º do referido Código Florestal. É inegável que o dispositivo supracitado indica, nos casos de áreas urbanas, a observância das leis de uso do solo. Entretanto, mediante leitura atenta do diploma legal percebe-se que, ao excepcionar a tutela das edificações, a norma impôs essencial observância aos princípios e limites insculpidos no Código Florestal. Logo, cuida-se de permissão para impor mais restrições ambientais, jamais de salvo-conduto para redução do patamar protetivo (…) reduzir o tamanho da área de preservação permanente, com base na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, afastando a aplicação do Código Florestal, implicaria verdadeiro retrocesso em matéria ambiental”.

Com esse posicionamento, o STJ tende a firmar entendimento pela inaplicabilidade da Lei de Uso e Parcelamento do Solo Urbano em detrimento do Código Florestal, norma especial e mais restritiva, que deverá ser respeitada para a proteção das faixas marginais de cursos de água em áreas urbanas, homenageando, assim, o princípio in dubio pro natura.

Deve-se ponderar, contudo, que, se não for bem contextualizado e circunstanciado, esse entendimento poderá trazer, em larga medida, insegurança jurídica quando da aplicação da legislação ambiental em áreas já antropizadas e que foram objeto de intervenções e edificações sob o manto da Lei de Parcelamento e Uso do Solo Urbano, observando, à época, a faixa de proteção de 15 m e mediante prévia aprovação e autorização dos entes públicos competentes.

Nesses casos, torna-se imperativo identificar a existência ou não da função ambiental[6] da APP urbana por meio de estudos técnicos que apontem para esta ou aquela direção e se foram previamente obtidas as devidas aprovações e autorizações junto aos entes públicos competentes. Caso se constate que, de fato, a função ambiental existente não se equipara àquela legalmente atribuída a uma APP, consequentemente, a área em questão deverá perder o status de APP e, nesta condição, poderá ser considerada área urbana consolidada e poderão ser mantidas as intervenções antrópicas que tiverem sido legalmente implantadas, respeitando-se inclusive o ato jurídico perfeito e a boa-fé dos administrados.

Pelo exposto, podemos afirmar que o acórdão do STJ no âmbito do REsp 1.518.490/SC, depois do julgamento conjunto da Ação Declaratória de Constitucionalidade 42 e das ações diretas de inconstitucionalidade 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a constitucionalidade de diversos dispositivos da Lei Federal 12.651/2012, que teve um alcance mais abrangente, está entre as tutelas jurisdicionais mais importantes que se teve no país nos últimos tempos, direcionadas à proteção da vegetação nativa em áreas urbanas.


[1] "Sempre houve controvérsia a respeito da configuração de uma área como de preservação permanente, quando se tratar de área localizada em zona urbana. Pela redação original do Código Florestal de 1965, não se fazia distinção entre áreas urbanas e rurais. (…) Um ano depois, a Lei 6.766, de 19.12.1979, estabeleceu diretrizes básicas para o parcelamento do solo urbano, estipulando no art. 4.º, III que, "ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não- edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica". A parte final desse dispositivo ajudou a alimentar divergências doutrinárias a respeito da aplicação do Código Florestal em área urbana – posto se tratar de legislação específica — o que ensejaria maiores restrições daquela faixa de 15 metros ao longo da faixa marginal dos cursos de água, prevista na Lei 6.766/1979” (MILARÉ, Édis; Direito do Ambiente. 8ª ed. rev., atual. e ampl. – SP; Ed. Revista dos Tribunais, 2013; pp. 1266/1267).
[2] ANTUNES, Paulo de Bessa. Áreas de Preservação Permanente Urbanas: O Novo Código Florestal e o Judiciário. Revista de Informação Legislativa. Ano 52, Número 206, abr./jun. 2015. pp. 90-91.
[3] “Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei(…)”.
[4] “Não obstante a controvérsia outrora existente, é certo que o novo Código Florestal Brasileiro, a Lei 12.651/2012, determina expressamente que as áreas de preservação permanente existem em zonas rurais ou urbanas (art. 4º, caput), retirando assim qualquer dúvida quanto à aplicabilidade desta restrição em áreas urbanas (…)” (grifo nosso) (MILARÉ, Édis; Direito do Ambiente. 8ª ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013. pg. 1266/1267).
[5] “(…) o espaço ecológico em que recai o Código vai da densa floresta amazônica à vegetação rasteira das bordas do mar, da mata rala e retorcida do Cerrado e da Caatinga aos campos de altitude – p. ex., os encontrados no Rio Grande do Sul, cujas gramíneas, às vezes endêmicas e raras, não passam, ao olhar do leigo, de “grama” vulgar que, como tal, é perfeitamente fungível, ou seja, substituível por espécies exóticas e invasoras, como o capim braquiária (Brachiaria decumbens)” (BENJAMIN, Antônio Herman. Hermenêutica Do Novo Código Florestal; Superior Tribunal de Justiça – Doutrina – Edição Comemorativa – 25 anos. p. 167).
[6] Lei Federal 12.651/2012: “Art. 3º (…). (…) II – Área de Preservação Permanente – APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (…)”.

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