Opinião

Corte de recursos do Sistema S fere a CF e o princípio do não retrocesso social

Autor

  • Francisco Soares Campelo Filho

    é advogado e professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (Esmepi). Doutorando em Direito e Políticas Publicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

22 de janeiro de 2019, 5h16

O corte de recursos destinados ao denominado Sistema S[1] tem sido defendido pelo atual ministro da Economia, Paulo Guedes, como uma das fontes para se diminuir o déficit orçamentário no Brasil[2]. Como efeito, também governos anteriores já manifestaram essa intenção, ainda que com o apoio de membros do próprio Poder Legislativo, a exemplo do Projeto de Lei 10.372/18[3].

Há, porém, alguns aspectos que deveriam ser observados, especialmente agora pelo atual governo, antes de se buscar atentar contra esses recursos. Vou tratar aqui apenas de dois, ambos de foro constitucional, em que pese existirem muitos mais, mas que deixarei para abordar em outra oportunidade.

Antes de adentrar na matéria constitucional, urge que se faça breve análise histórica considerando que esta tem importância fundamental para a compreensão da sociedade e do Direito[4].

O Brasil, na efervescência do Estado social, com o fim da Segunda Guerra Mundial, pós-revolução de 1930, vivia o surgimento da nova classe média profissional, “formada por uma imensa gama de profissões, incluindo profissionais liberais, a burocracia pública, e ampla tecnoburocracia privada formada por técnicos, administradores de empresas, assessores, empregados de escritório, empregados de empresas de serviços auxiliares da indústria e do comércio, vendedores, operários especializados e uma infinidade de outras profissões”[5].

Nesse contexto é que o governo, incapacitado de atender as demandas sociais emergentes, mas pressionado pela situação político-econômico-financeira, foi buscar na inciativa privada, na classe empresarial, o apoio necessário à consecução desses almejados fins sociais. A partir da década de 1940, então, os Serviços Sociais Autônomos passaram a ser criados.

A criação do Sistema S supriria diversas das obrigações constitucionais sociais do Estado, que ainda diminuía a pressão sobre si, permitindo também a aplicação de recursos em outras demandas, uma vez que as empresas criadas zelariam pela vida dos trabalhadores e de seus familiares, nos aspectos voltados à educação, cultura, lazer e saúde, dentre outros.

Tomando como base a história do Serviço Social do Comércio (Sesc), que pode servir de modelo de análise do Sistema S como um todo, guardadas as peculiaridades de cada um dos entes que o compõe, tem-se o Decreto-lei 9.853, de 13 de setembro de 1946[6], o qual atribuiu à Confederação Nacional do Comércio (CNC) a missão de criá-lo. O referido decreto-lei chama a atenção em dois pontos que o fundamentam. O primeiro é que o então presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, reconhece que a oportunidade de “organização de um serviço social em benefício dos empregados no comércio e das respectivas famílias” decorreu de “reunião de entidades sindicais do comércio e associações comerciais de todo o Brasil”.

O segundo ponto é que o presidente Eurico Gaspar Dutra também aduz em seus considerandos, que servem de fundamentação para o decreto em comento, que a “Confederação Nacional do Comércio, órgão máximo sindical da sua categoria, representativo da classe dos comerciantes, oferece sua colaboração”, “dispondo-se a empreender essa iniciativa com recursos proporcionados pelos empregadores”.

Ora, resta evidente que o que respaldou o mencionado decreto-lei foi justamente a iniciativa e o custeio por parte das entidades sindicais, capitaneadas pelas respectivas confederações, as quais deliberaram livremente pela consecução do projeto de criação e organização dos serviços sociais com recursos, ressalte-se, dos empregadores.

Não por menos, o artigo 1º do Regulamento do Sesc, aprovado pelo Decreto 61.836[7], de 5 de dezembro de 1967, reconhece expressamente a sua criação “pela Confederação Nacional do Comércio, nos termos do Decreto-lei nº 9.853, de 13 de setembro de 1946”.

Assim, após essa digressão histórica que culminou com a criação do Sistema S, deve ser ressaltado que a sua criação decorreu da vontade dos empresários que, sensibilizados com as necessidades sociais dos trabalhadores e com a incapacidade do governo em atender a contento os anseios de um novo Estado dito social, engendraram esforços na consecução de um fim social (o bem-estar de seus empregados e familiares), em respeito à própria função social das empresas.

Forçoso concluir, pois, que o Sistema S pertence aos empresários, posto que, indubitavelmente, criado e mantido por eles, conforme se comprova pelo contexto histórico delineado e pela legislação alhures referida.

Por sua vez, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 240[8], é cristalina ao estabelecer que as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários são destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, não podendo haver qualquer outra destinação, sob pena de ferir o estatuído no referido artigo.

Ora, a força normativa da Constituição só tem valor se for de fato implementada em toda a sua inteireza na prática social[9]. Querer dar outra destinação aos recursos dos empresários para os Serviços Sociais Autônomos (Sistema S) é desconhecer a própria origem desses recursos, bem como a vinculação estabelecida pelo referido artigo 240 da Constituição Federal, elementos que o Supremo Tribunal Federal também já reconheceu por ocasião do julgamento do RE 789.874/DF[10].

Como já apontado, os Serviços Sociais Autônomos desempenham uma importante e essencial função social, tanto para os trabalhadores e seus familiares quanto para o próprio empresariado que o financia, considerando que são oferecidos serviços de educação, inclusive de qualificação profissional, saúde, cultura, esporte, lazer, assistência, dentre outros, beneficiando milhões de pessoas e gerando milhares de empregos diretos e indiretos. São ações de relevantíssima utilidade social e pública e que contribuem para o implemento de direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal. Por isso se diz que essas empresas do Sistema S trabalham em colaboração com o Estado.

Observe-se que o artigo 197 da CF/88 reconhece, como não poderia ser diferente, a relevância das ações e serviços de saúde, enquanto o artigo 205 aduz que a educação é um direito de todos. No tangente ao esporte, o artigo 217 aduz como direito de cada um a prática do desporto. Vários outros artigos de índole constitucional poderiam ser aqui invocados para demonstrar a relevância social dos serviços que são prestados pelas empresas que formam o Sistema S.

É sabido ainda que o artigo 6º da Constituição estabelece que a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados são direitos sociais, e se tem reconhecido a inserção desses direitos no corpo constitucional como um avanço que não se pode retroceder.

O grande jurista português J. J. Gomes Canotilho ensina que o princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social, indicando que os direitos sociais e econômicos, como o direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação, à saúde etc., uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. Dá conta o autor português que o princípio que veda o retrocesso social “limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana” e que “a violação no núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da chamada justiça social”[11].

O Sistema S, presente em todos os estados e em centenas de municípios espalhados pelo Brasil, representa a própria corporificação do desejo do legislador constituinte estampado no artigo 6º da Magna Carta de 1988[12]. A diminuição de seus recursos, seja de que forma se tentar implementar, configurar-se-á em verdadeiro confisco público e num retrocesso social sem precedentes na história do Brasil, quiçá da humanidade.

Querer retirar recursos do Sistema S como um delinquente com uma faca, na calada da noite, é apunhalar a Constituição da República, é usurpar direitos já conquistados e inseridos no patrimônio jurídico de milhões de cidadãos diariamente beneficiados com as ações sociais que são desenvolvidas.

É preciso lembrar, todavia, que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, tendo no Poder Judiciário o seu escudeiro-mor, responsável pela manutenção da ordem e do direito, freando e reprimindo excessos ou abusos que eventualmente possam ser perpetrados pelos demais poderes constituídos: Executivo e Legislativo. Felizmente, tem-se no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, inciso XXXV, o estabelecimento de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito.


[1] Em que pese ter restrições à denominação Sistema S, a adotarei nesse texto para facilitar a compreensão do leitor. Também por questão didática utilizarei a expressão Serviços Sociais Autônomos como sinônimo de Sistema S.
[2] https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/12/17/futuro-ministro-da-economia-defende-cortes-no-sistema-s.ghtml
[3] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170
[4] Jürgen Habermas, na obra Más allá del Estado nacional, ao tratar da importância de se aprender através da história, salienta que “el acontecer histórico cobra un núcleo de validez que antecede a toda reflexión (…) pero ‘la’ historia solo sigue siendo fuente de algo digno de saberse porque de ella podemos seguir tomando, según parece, criterios y valores (…)” e “sin embargo, la justificación hermenéutica de la historia como una inteligente magistra vitae tiene para los filósofos y escritores, y en general para los intelectuales y científicos de espíritu, algo que resulta prima facie convincente” (Más allá del Estado nacional. Trad. Manuel Jiménez Redondo. México: FCE., 2000, p. 46-48).
[5] BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A Construção Política do Brasil. Sociedade, economia a e Estado desde a independência. Editora 34. 2ª ed. 2015. São Paulo. p. 126.
[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del9853.htm
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D61836.htm
[8] Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.
[9] De fato, a existência de uma Ordem Constitucional expressa uma condição de possibilidade para que a Constituição converta-se “na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida”, tal como expressa Konrad Hesse ao discorrer sobre a força normativa da Constituição. É que o autor alemão defende que, para que a força normativa de que trata possua eficácia, a Constituição deve transformar-se em uma força ativa, mas para tanto urge que ela seja capaz de “orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida” e possa também “identificar a vontade de se concretizar essa ordem”, devendo existir não apenas a “vontade de poder”, mas também a “vontade de Constituição”[9]. Nesse toar, Hesse aponta que para “um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição” é preciso que ela seja praticada, não podendo depender tão-só do seu conteúdo.
Hesse reconhece, todavia, estar na interpretação da Constituição o ponto nevrálgico para a “consolidação e preservação da força normativa”, considerando-se que “a interpretação constitucional está submetida a princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm)”, sugerindo que para que haja uma interpretação adequada, faz-se necessário “concretizar de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação”. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes. Fabris, Porto Alegre. 1991, pp. 18-19.
[10] http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo759.htm
[11] Para Canotilho, “o reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da chamada justiça social. (…) A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1998, Almedina, p. 320/321, item n. 3.).
[12] O Senac, por exemplo, está presente em mais de 2.200 municípios, de Norte a Sul do Brasil, onde mantém infraestrutura de ponta composta de mais de 600 unidades escolares, empresas pedagógicas e unidades móveis, constituindo-se no maior centro de qualificação profissional do Brasil. http://www.senac.br; O Sesc possui 391 Unidades no Brasil, sendo 79 Centro Educacionais e 50 Unidades de Turismo e Lazer.
http://www.sesc.com.br/portal/sesc/unidades/unidades?WCM_Page.ResetAll=TRUE&tipo&estado

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