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O povo indígena warao: um caso de imigração para o Brasil

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21 de janeiro de 2019, 14h12

Já é fato conhecido dos brasileiros o drama do crescente fluxo migratório da população venezuelana para o Brasil, fugindo de um estado de caos, miséria, escassez de alimentos e remédios, inflação de muitos dígitos, insegurança absoluta etc.

Entretanto, na imigração venezuelana há um grupo étnico peculiar, de indígenas destacados no ambiente urbano, com grandes habilidades de artesanato e mulheres com roupas coloridas: o povo indígena warao.

São índios oriundos da região norte da Venezuela, que habitam há séculos o delta do rio Orinoco, no estado Delta Amacuro e regiões adjacentes dos estados Bolívar e Sucre, naquele país[1]. Warao, na língua nativa, significa “povo da canoa”, pois a relação deste grupo com a água é íntima: são, tradicionalmente, pescadores e coletores, há cerca de 70 anos convertidos em horticultores, e vivem em comunidades de palafitas localizadas nas zonas ribeirinhas fluviais e marítimas, além de pântanos e bosques inundáveis da região de origem[2].

Diversos fatores, tais como a tragédia ambiental do represamento do rio Manamo[3], a deterioração das condições de subsistência e a invasão progressiva de suas terras por agricultores e pecuaristas causaram, desde a década de 1970, o êxodo territorial dessa etnia para os centros urbanos da Venezuela, intensificado nos últimos anos. Interessante notar, porém, que mesmo vivendo no ambiente urbano, os indígenas warao tentam manter muitos aspectos de sua cultura e a coesão do grupo, retornando quanto conveniente ao lugar de origem[4].

O deslocamento para as cidades se deu para o setor laboral de mão de obra não qualificada e a mendicância. Neste último caso, alguns autores como Garcia Castro[5] afirmam que houve um reforço cultural, já que o mecanismo de inter-relação étnica no contexto urbano pelos warao não é totalmente alheio à sua condição e valores culturais, havendo a aplicação de técnicas tradicionais de coletas, feitas por mulheres e crianças, transportadas para o contexto urbano. Portanto, a coleta de esmolas nas ruas seria, para tal corrente, análoga à coleta de frutos e pequenos animais em seu habitat natural.

Como toda a população do país vizinho, o povo indígena warao também foi atingido pelo caos venezuelano. Como estratégia de sobrevivência, muitos migraram para o Brasil, num trajeto de cerca de 1.000 km, e há um abrigo[6] na cidade de Pacaraima (fronteira) e outro em Boa Vista (230 km a partir da fronteira), com população oscilante, cada um com aproximadamente 500 pessoas. Havia outro em Manaus, porém muitos indígenas migraram para Santarém e Belém, o que reduziu a população warao naquela capital.

Em Boa Vista, os indígenas warao vivem num abrigo urbano, com a gestão da ONG Fraternidade Internacional, em parceria com o Acnur e o Exército Brasileiro, através da operação acolhida. Durante algum tempo as mulheres e crianças eram vistas com frequência nos semáforos, pedindo dinheiro, hábito que gerou resistência local e os próprios indígenas foram desestimulados a fazê-lo. Contribuiu muito o fato de receberem apoio para a produção do seu belíssimo artesanato, incluindo cestarias, mantas e redes tecidas à mão.

Os indígenas warao representam um desafio jurídico, sociológico e político. Isto porque transcendem a condição imigrante e demandam proteção jurídica específica como indígenas.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), embora seja a instituição que executa e coordena políticas públicas voltadas para os povos indígenas, até o momento não atua perante os warao em Boa Vista e Pacaraima, e, conforme Yamada e Torelly (2018)[7], aguarda orientações administrativas sobre o assunto. A propósito, destacam estes autores que, embora trabalhe com 305 povos indígenas, a atuação da Funai com indígenas urbanos é bastante limitada, seja por restrições orçamentárias, seja pela invisibilidade das demandas desses povos.

Entretanto, isto não se justifica. A Constituição Federal, no artigo 231, reconhece aos indígenas o direito à organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e também à terra tradicionalmente ocupada. Apesar de os warao não terem terra tradicionalmente ocupada no Brasil, isto não impede o exercício dos demais direitos, já que estes não são condicionados ao locus físico. Além disso, a Lei 5.371/67, que criou a Funai, e o Decreto 9.010/2017, que regulamenta seu estatuto, não restringem sua atuação a índios brasileiros ou transfronteiriços.

Especificamente acerca dessa questão, há que se ter em mente que os abrigos são uma solução paliativa e transitória. Se não há expectativas de mudanças no cenário venezuelano a curto e médio prazo, e os warao vieram ao Brasil com ânimo definitivo, há que se pensar numa alocação que lhes facilite a reprodução física e cultural.

Em que pese não haver direito à demarcação de terras, há uma solução legal, mas que depende de atuação política: o artigo 25, alínea “a” e artigo 27 da Lei 6.001/73, a figura da reserva indígena.

Conforme Vitorelli (2013)[8], aqui o legislador não trata das terras tradicionalmente ocupadas, mas daquelas que a União adquiriu especialmente para os indígenas, não se confundindo com aquelas mencionadas no artigo 231 da Constituição Federal. Entretanto, uma vez destinadas aos indígenas, estarão debaixo do mesmo regime jurídico daquelas tradicionais.

Em outras palavras, há a possibilidade jurídica de a União reservar, através de ato político, certa parcela de terras e entregá-las aos indígenas warao, para uso exclusivo, embora não seja tradicionalmente ocupada. A ressalva que se faz é o direito à consulta prévia e o respeito à autodeterminação do povo indígenas warao no Brasil.

Por fim, há que se considerar que a imigração para o Brasil do povo indígena warao é um fato com forte repercussão no Direito brasileiro, que demanda novos desafios jurídicos. É preciso um olhar diferenciado, que os acolha não apenas como estrangeiros, mas como índios orgulhosos de sê-lo, com rica história, cultura e tradições.


[1] GARCIA CASTRO, Alvaro A. Mendicidad indígena: Los Warao Urbanos Boletín Antropológico Nº 48. Enero-Abril, 2000, ISSN: 1325-2610. Centro de Investigaciones Etnológicas – Museo Arqueológico – Universidad de Los Andes. Mérida.
[2] Garcia Castro, 2000, idem.
[3] GARCIA CASTRO, Alvaro; HEINEN, Dieter. PLANIFICANDO EL DESASTRE ECOLÓGICO: Impacto del cierre del caño Manamo para las comunidades indígenas y criollas del Delta Occidental (Delta del Orinoco, Venezuela). ANTROPOLÓGICA. 91, 1999: (31-56). Caracas, Fundación La Salle de Ciencias Naturales.
[4] Garcia Castro, 2000, idem.
[5] Garcia Castro, 2000, idem.
[6] O abrigo de Pacaraima, teoricamente, é uma “casa de passagem”, porém com nítidas características de abrigo humanitário.
[7] YAMADA, Erika; TORELLY, Marcelo, organizadores. Aspectos jurídicos da atenção aos indígenas migrantes da Venezuela para o Brasil – Brasília : Organização Internacional para as Migrações (OIM), Agência das Nações Unidas para as Migrações, 2018.
[8] VITORELLI. Edilson. Estatuto do Índio. Salvador: Editora Juspodium, 2013.

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