Direito Civil Atual

Caracterização do condomínio de lotes e distinção de semelhantes (parte 2)

Autor

  • Gustavo de Revorêdo Pugsley

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.

4 de fevereiro de 2019, 9h26

ConJur
Em 21 de janeiro, nesta coluna, publicou-se um escrito introdutório sobre o condomínio de lotes, voltado à sua definição e diferenciação em relação a figuras semelhantes, como o condomínio edilício de casas e o loteamento de acesso controlado. Nesta segunda parte, após uma breve retomada do tema, serão apresentadas as discussões existentes antes da Lei 13.465/2017, passando-se, então, às perspectivas para o futuro.

“O condomínio de lotes, em suma, é um condomínio edilício sem edificação”[1]: bastam as obras de infraestrutura que marcam a noção de “lote” (unidade edificável, com infraestrutura básica — Lei 6.766/79, artigo 2º, parágrafo 4º). Em um primeiro olhar sobre a figura, a desconfiança surge: se o empreendedor deseja repartir uma gleba formando lotes, destinados à alienação, o caminho correto não seria o do loteamento? Antes de responder a esta questão, se é que ela poderá ser respondida neste curto artigo, cabe analisar os diferentes interesses que estão por trás desta nova figura.

1. Interesses contrapostos
Do ponto de vista dos empreendedores que atuam no mercado imobiliário, o condomínio edilício de casas, regulado pelo sucinto artigo 8º da Lei 4.591/64, teria um grande problema: como ele exigiria a construção prévia das casas, ou pelo menos o seu projeto, ele não seria vocacionado a empreendimentos de grande porte. Assim, foram surgindo os loteamentos de acesso controlado, dando aos adquirentes dos lotes maior liberdade para a construção de suas casas, além da segurança proporcionada pelo fechamento do local com muros e pelo controle de acesso.

Porém, tais loteamentos também apresentaram diversos problemas: necessidade de criação de uma associação de moradores, diante da falta de regulamentação legal de assembleias, de cobrança de cotas condominiais, dentre outros assuntos típicos dos condomínios. Além disso, no loteamento o município continua sendo o proprietário das áreas públicas, fazendo uma concessão de tais áreas, a título precário, para a associação de moradores. É certo que a simples recomendação doutrinária de aplicação analógica das regras sobre condomínio, quando compatíveis (Enunciado 89, I Jornada de Direito Civil do CJF), não resolveu tais problemas.

Assim, a ideia de um “condomínio de lotes” satisfaz o interesse dos empreendedores e dos possíveis adquirentes dos lotes, por reunir três fatores principais: (i) a maior liberdade na construção das casas; (ii) a segurança jurídica do condomínio edilício; e (iii) a segurança fática própria dos empreendimentos “fechados” (condomínio fechado e loteamento de acesso controlado).

Por outro lado, a figura gera preocupações relacionadas ao interesse público. Alguns entenderam que o condomínio de lotes poderia possibilitar a fraude à lei do parcelamento do solo. Pergunta-se: a forma apropriada para a divisão de uma gleba em lotes não seria o loteamento ou o desmembramento? É possível instituir um condomínio de lotes desrespeitando as diversas disposições da Lei 6.766/79 (LPSU)?

Além disso, haveria o risco de formação de gigantescos “guetos privados” em meio às cidades, prejudicando a mobilidade urbana (e, ainda que tais empreendimentos sejam feitos em regiões mais afastadas, podem acabar atingidos pela tendência expansiva das cidades).

2. Discussão antes da Lei 13.465/2017
Por trás da discussão jurídica que passou a ser travada, era possível vislumbrar estes pontos de vista contrapostos. Mencionou-se que o artigo 8º da Lei 4.591/64 permite que casas sejam unidades autônomas. Os defensores do condomínio de lotes sustentavam que as obras de infraestrutura, exigidas nos loteamentos (para transformar a gleba em lotes, sendo que lote é o terreno edificável, servido de infraestrutura básica — Lei 6.766/79, artigo 2º, parágrafos 4º e 5º), já serviriam como “construção”, a autorizar a instituição de um condomínio de lotes.

Argumentava-se, essencialmente, que o artigo 3º do Decreto-Lei 271/1967 não havia sido derrogado pela Lei 6.766/79. Extrai-se do dispositivo mencionado: “Art. 3º – Aplica-se aos loteamentos a Lei 4.591/64, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infraestrutura à construção da edificação” (sem o destaque no original)[2]. Por vezes, mencionava-se também o artigo 68 da Lei 4.591/64[3].

Diante da Lei 13.465/17, não há mais dúvida quanto à possibilidade de instituição do condomínio de lotes. Parece desnecessário, também, discutir sua natureza de condomínio edilício, que tem o lote como unidade autônoma, sem que se possa negar o caráter inovador da figura (formar-se-iam lotes dentro de um imóvel único, propriedade particular dos condôminos; a gleba não se “dissolve” em lotes, como ocorre nos casos comuns de parcelamento).

3. Aplicação da Lei 6.766/79
Afirmou-se, nas palavras de José Afonso da Silva, que os lotes são “unidades edificáveis”. O lote é “o terreno servido de infraestrutura básica” (artigo 2º, parágrafo 4º, LPSU), portanto, é o produto do parcelamento, o seu resultado. Diante disso, entende-se que o condomínio de lotes precisa respeitar as normas sobre parcelamento do solo, desde que haja compatibilidade. Em sentido semelhante posiciona-se Vitor Kümpel[4], e é o que indicam diversos dispositivos legais (Lei 6.766/79, artigo 2º, parágrafos 4º e 7º, e artigo 4º, parágrafo 4º; CC/02, artigo 1.358-A, parágrafo 2º, parte final).

Há quem defenda a inaplicabilidade da Lei 6.766/79 aos condomínios de lotes[5]. Porém, o fato de haver algumas regras da LPSU que são claramente inaplicáveis à nova categoria, não pode, de modo algum, afastar por completo a sua incidência. De fato, há normas que não devem incidir, por sua incompatibilidade, como aquelas do artigo 4º, I, e do artigo 22, que dizem respeito à transferência de “áreas públicas” ao Município. A conciliação das diversas leis aplicáveis, para a construção do regime próprio do condomínio de lotes, porém, não será tarefa fácil[6].

4. Considerações finais
Com isso, parece possível dar algumas respostas aos questionamentos que foram suscitados ao longo deste breve escrito. Os magistrados ligados às corregedorias dos tribunais de Justiça, acostumados a combater as mais diversas tentativas de fraude à Lei do Parcelamento do Solo, olharam para o condomínio de lotes com compreensível desconfiança. Agora, com a previsão expressa da figura na Lei 13.465/17, a atenção dos juristas deve se voltar ao seu regime jurídico e à sua implementação.

Considerando-se que o lote é o produto do parcelamento, entende-se que a Lei 6.766/79 (LPSU) será aplicável, salvo nos casos de incompatibilidade. Assim, a primeira preocupação apontada, relacionada a uma possível fraude às regras sobre parcelamento, ficaria afastada. Não será lícito ao empreendedor ignorar as exigências da LPSU, simplesmente instituindo um “condomínio de lotes” em qualquer gleba[7]. As normas locais, assim, ganham importância.

Quanto ao possível embaraço em relação à mobilidade urbana (Constituição, artigo 144, parágrafo 10, I), não se trata de problema exclusivo dos condomínios de lotes. É algo que também se aplica aos grandes condomínios de casas (embora estes empreendimentos costumem ser menores, justamente pela exigência de construção) e aos loteamentos de acesso controlado (embora estes tenham um título precário concedido pelo município). O problema pode ser mitigado pelo artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 6.766/79, bem como por normas locais, como aquelas que limitam, de alguma forma, o tamanho destes empreendimentos[8].

Espera-se que a “desconfiança” em relação à nova figura, seja ela justificada ou não, resulte em uma participação mais ativa dos juristas na criação das normas locais, e que isto leve a uma mitigação dos riscos apontados, através da regulamentação adequada.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio. Condomínio de lotes e a Lei 13.465/2017: breve apreciação. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2017/08/15/condominio-de-lotes-e-lei-1346517-breve-apreciacao>. Consulta em 07/12/2018.
[2] Neste sentido: SILVA, Gilberto Valente da. Condomínio sem construção. In. JACOMINO, Sérgio (Coord.). Estudos de direito registral imobiliário – XXII Encontro dos oficiais de registro de imóveis do Brasil – 1995. Porto Alegre: SAFE, 1997, p. 222 et seq.; RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, n. 20. No Processo CG n. 2014/00141294, da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, afirma-se, ao proibir a instituição do condomínio de lotes: “A temeridade é realçada por dois expoentes no estudo da matéria, os Magistrados Francisco Eduardo Loureiro e Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Concordes em afirmar, no plano jurídico, que o Dec. Lei 271/67 foi revogado, apontam para os riscos urbanísticos (…)” (fl. 309-verso).
[3] GAETTI, Wanderli Acillo. Condomínio de lotes: viabilidade, benefícios e restrições. In. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 70, ano 34, jan.-jun./2011.
[4] KÜMPEL, Vitor Frederico. Condomínio de lotes: regime jurídico e aspectos registrais. Consulta em 06/12/2018. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI269493,71043-Condominio+de+lotes+regime+juridico+e+aspectos+registrais>. Em artigo anterior na mesma coluna, o autor já sustentava: “não se está a dizer que não possa haver lotes sem formação condominial, isto é, sem atribuição de fração ideal e incidência das regras do condomínio edilício. Isso continua a ser possível. Mas, não exclui o ‘filtro’ da legislação de parcelamento do solo urbano quando da constituição da modalidade específica de condomínio de lotes. Essa dualidade fica evidente pela leitura atenta do novo §7º do art. 2º da lei 6.766/79”. Consulta em 06/12/2018: <https://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI266901,21048-A+positivacao+do+condominio+de+lotes+Mais+uma+importante+novidade+da>. No mesmo sentido, por exemplo, posiciona-se Marco Aurélio Bezerra de Melo (artigo citado na nota 1, acima).
[5] FIGUEIREDO, Luiz Augusto Haddad. Condomínio de lotes: o novo regime jurídico da lei 13.465/2017. In. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 85, ano 41, São Paulo: RT, jul.-dez./2018. Admitindo a aplicação como exceção: LOBO JUNIOR, Helio. A L. 13.465, de 11.07.2017, e o condomínio de lotes. In. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 83, ano 40, São Paulo: RT, jul.-dez. 2017, item 4.2.
[6] O autor referido na nota anterior (nota 5) utiliza a inaplicabilidade do art. 4º, I, como um argumento para sustentar a não incidência da Lei 6.766/79. Quanto à área mínima dos lotes, por exemplo, Figueiredo sustenta a inaplicabilidade, enquanto Kümpel defende a necessidade de aplicação. Tem razão Figueiredo ao destacar o papel importante que será desempenhado pelas normas locais; e tem razão, igualmente, Kümpel, ao criticar a Lei 13.465/17 por não ter estabelecido com mais clareza o regime jurídico dos condomínios de lotes.
[7] Por exemplo, terá de respeitar o parágrafo único do art. 3º da Lei 6.766/79, que impede o parcelamento em terrenos sujeitos a inundações; aterrados com material nocivo à saúde pública; com declividade superior a 30%, etc.
[8] Pode-se referir a Lei 10.116/1994 do Rio Grande do Sul, artigo 25: “Na instituição de condomínios por unidades autônomas será observado o limite máximo de 30.000m2 de área e testada para logradouro público não superior a 200m”. Cf. também o Dec. 57.558/16 da cidade de São Paulo, art. 5º.

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    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Especialista em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral.

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