Opinião

Causa de pedir e narrativa: uma solução para o excesso de litigiosidade

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20 de janeiro de 2019, 5h41

Há um momento em que o advogado civilista deve encarar a verdade de frente, com um olhar desapaixonado de juiz. É o momento em que, chamado pelo cliente a aconselhá-lo sobre a oportunidade de intentar uma ação, tem o dever de examinar imparcialmente, levando em conta as razões do eventual adversário, se pode ser útil à justiça a obra de parcialidade que lhe é pedida. Assim, em matéria Cível, o advogado deve ser o juiz instrutor de seus clientes, e sua utilidade social será tanto maior quanto menor for o número de sentenças de improcedência pronunciadas em seu escritório.”
(Eles, os juízes, vistos por um advogado, de Piero Calamandrei)

A causa de pedir é essencial para qualquer processo. Sem ela, o pedido fica oco, vazio e sem concretude. Não fosse só isso, ela é essencial para que a contraparte exerça, amplamente, os direitos ao contraditório e à ampla defesa. Sua importância, contudo, não para por aí.

Como já disse em diversos artigos, todo processo é um duelo de narrativas. Mas onde estão essas narrativas? Justamente na causa de pedir. Assim, para que a dialética processual seja realizada e exercida em toda sua amplitude e lealdade, há um ônus fundamental para a parte que ingressa com uma demanda: apresentar sua causa petendi de forma pormenorizada, clara e contemplando todos os fatos que fundamentam e substanciam o pleito formulado.

Nesse passo, não custa lembrar a precisa lição do professor Cândido Dinamarco: “Entre os ônus processuais, o primeiro e de maior peso é o ônus de afirmar, especificamente considerado nos termos do ônus de demandar. E como quem pede há de justificar o petitum alinhando uma causa petendi, só demanda adequadamente quem fundamenta de modo adequado. Daí a inépcia da petição inicial à qual falte, entre outros elementos essenciais, a causa de pedir deduzida de modo claro e com inteireza com relação aos fatos relevantes para a constituição do direito que alega”[1]. Aliás, não custa lembrar que, segundo superior lição de Francesco Carnelutti, para o juiz, “fato não afirmado vale como fato inexistente”[2].

Dito isso, uma das formas de buscar eficiência na prestação jurisdicional consiste, exatamente, no rigor quanto a esse requisito essencial da petição inicial. Se o processo é uma sucessão de atos destinados a um fim –– a sentença, que busca a pacificação do conflito de interesses ––, logo, a sua estruturação em fases (postulatória, probatória e decisória) exige o respeito e o compromisso ético de quem postula em juízo.

Não é razoável nem producente deixar que a causa de pedir flutue após a apresentação da defesa, tampouco transformar o réu em algoz de si próprio, tentando adivinhar os fundamentos do pedido deduzido. Isso acaba, na melhor das hipóteses, eternizando a fase postulatória e, por vezes, adentrando na probatória, o que cria uma confusão processual dos diabos.

Sublinhe-se, por oportuno, que o momento de estabilização da lide, com a natural fixação dos pontos controvertidos, é medida de economia processual capaz de reduzir a duração dos litígios. Fixados os pontos controvertidos, a prova incidirá sobre eles, nada mais. Além disso, essa medida economiza tempo e despesas e, por que não dizer, contribui para uma prestação jurisdicional mais eficiente e capaz de gerar julgamentos que observem, por exemplo, as consequências das decisões para toda a sociedade, posto que tudo isso deverá ser ventilado pelas partes. Afastando um vaivém alucinante no pedido e na causa de pedir, o julgador tem um material mais concreto para sua apreciação.

Pois bem. A ausência de rigor na análise de preliminares que apontam, detidamente, a ausência ou deficiência na causa de pedir gera um incentivo perverso. É sendo comum ouvir, de alguns advogados, que a melhor petição é a quase inepta. Ora, por que isso? Simples, esse procedimento facilita manobras subsequentes à apresentação da contestação, criando uma vantagem ao demandante em detrimento do demandado. Por óbvio, isso entra em conflito com o princípio da paridade de armas.

O leitor paciente deve estar se perguntando: qual seria esse incentivo perverso? A economia nos ensina que as pessoas pautam seus comportamentos em função de incentivos. Se o Judiciário faz vista grossa no que tange à exigência de uma causa de pedir bem articulada, detalhada e precisa, alguns oportunistas negligenciarão a exigência para surpreender a outra parte. Além, é claro, de acabar transformando a fase probatória em uma continuidade kafkiana da postulatória. Tudo isso com o objetivo de, seguindo a perniciosa Lei de Gerson –– pobre Gerson (o canhotinha de ouro) — levar vantagem em tudo.

Sendo assim, o acolhimento de preliminares relativas a causa de pedir vagas e imprecisas terá o condão de incentivar um comportamento mais sério de quem se dispõe a ingressar em juízo. De quebra, evitaria uma fase probatória esquizofrênica. Esta, talvez, seja uma das formas mais eficientes e simples de inibir demandas frívolas pela raiz, auxiliando e otimizando o uso do Judiciário e o próprio trabalho dos magistrados.

Não fosse só isso, o maior rigor quanto a essa questão pode ter um grande impacto na postura dos litigantes, que precisarão se comportar diante do princípio da lealdade processual. O duelo de narrativas ficará mais evidente, provocando um movimento para que a redação das peças processuais seja condizente com o resultado útil do processo. Fatos deverão ser escritos, preferencialmente, em ordem cronológica, os argumentos deverão ser apresentados em blocos, e, não menos relevante, as histórias das partes deverão ser postas de modo persuasivo, coerente e lógico. Talvez, apenas talvez, isso possa fazer mais pela redução do excesso de demandas do que qualquer lei nova.


[1] In,“Fundamentos do Processo Civil Moderno”, Ed. Malheiros, 3ª edição, pág. 929.
[2] Cfr. La Prova Civile, Roma, Athenaeum, 1.915, esp. n. 3, pp. 23 ss.

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