Anuário da Justiça

"Se puder transacionar com improbidade, MP deve ser o único a propor ação"

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20 de janeiro de 2019, 6h37

Spacca
A Lei de Improbidade Administrativa é motivo de intermináveis discussões judiciais e doutrinárias. Mas num ponto ela é clara: não pode haver transação com atos de improbidade, conforme diz o parágrafo 1º do artigo 17.

Logo depois da aprovação da Lei Anticorrupção e da Lei das Organizações Criminosas, que passaram a permitir a delação premiada, o governo Dilma Rousseff tentou resolver a questão. Mas por atrapalhações políticas, atropelou a discussão técnica, que já durava meses, e editou uma medida provisória. A manobra foi transformada em inquérito pela Procuradoria-Geral da República, contrariada por não ter visto o Ministério Público como autorizado a fazer acordos em casos de improbidade administrativa.

A comissão de juristas convocada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para atualizar a Lei de Improbidade encontrou uma solução para as duas questões. Em anteprojeto já enviado à Mesa, propõe que a transação com atos de improbidade seja permitido e que o MP seja o único competente para ajuizar as ações de improbidade e fazer os acordos.

O ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça, presidente da comissão, explica: se será possível fazer o acordo, o MP, como representante dos interesses da sociedade, deve ser o único com poder de fogo para acusar por improbidade. A advocacia pública, que reclama da possibilidade de perder esse espaço, é parte na discussão, e não pode ter legitimidade para dispor do interesse público, afirma o ministro, em entrevista exclusiva ao Anuário da Justiça Brasil 2019, com lançamento previsto para maio deste ano.

"Eu não posso botar na mão da parte, da advocacia, a capacidade de dominus litis. Isso já gerou polêmica”, afirma. "Hoje, a advocacia está legitimada a entrar com ação de improbidade. O ente lesado pode entrar com ação. O Ministério Público tem dever de ofício de entrar também. Pela proposta, só será legitimado a entrar com ação o Ministério Público, porque ele vai transacionar a pena."

Campbell está no STJ há mais de dez anos. Sua posição contrária a filtros de acesso ao tribunal — que ele chamava de "restrição de acesso" — eram conhecidas. Hoje, mudou de ideia. Em 2018, o STJ completou 30 anos de criação e bateu a marca de 500 mil processos julgados. "Nenhuma corte superior do mundo julga isso", afirma.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor preside a comissão da Câmara que prepara anteprojeto de atualização da Lei de Improbidade Administrativa. A quantas anda o trabalho?
Mauro Campbell —
 Até para que não houvesse uma contaminação política de situação tão técnica, ficou acordado entre a comissão e a presidência da Câmara que toda tramitação só se daria no período pós-eleitoral. A qualquer momento o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) poderá deflagrar isso aí constituindo a comissão mista que vai analisar a proposta de emenda, que necessariamente teve três pilares: atualizar a lei diante do que o STJ já fixou; inovar a lei diante do que o novo CPC, a alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a Lei Anticorrupção e todo esse arcabouço de legislação de controle que surgiu pós Lei 8.429; e inovar com a situação de incluir a possibilidade de colaboração premiada, que é vedada expressamente em lei hoje. 

ConJur — Atualmente essa questão não está regulamentada?
Mauro Campbell —
 Não. Temos os extremos. A lei nega a possibilidade de delação e de acordo, mas ela foi feita 20 e tantos anos atrás. Estamos pedindo a revogação do dispositivo, embora haja, salvo engano, ato normativo do CNMP que autorize isso — para mim, de constitucionalidade totalmente duvidosa, porque não é que a lei é omissa e você regula. A lei é taxativa ao proibir, então não posso avançar por ato administrativo. No mais, um tema que vai gerar polêmica é a proposta de que o Ministério Público tenha exclusividade para propor os acordos e para ajuizar ações de improbidade. O setor da advocacia pública federal me questionou isso.

ConJur — Por quê?
Mauro Campbell — 
Disse que era contra porque, segundo eles, há uma rede de accountabilty no mundo inteiro em que as advocacias públicas estão trabalhando nisso. Não tenho dúvida de que estejam. Só quero saber onde estão as ações. 

ConJur — Questões corporativas
Mauro Campbell —
 Hoje, a advocacia pública está legitimada a entrar com ação de improbidade. O ente lesado pode entrar com ação. O Ministério Público tem dever de ofício de entrar também. Pela proposta, só será legitimado a entrar com ação o Ministério Público, porque ele vai transacionar a pena. Eu não posso botar na mão da parte, da advocacia, a capacidade de dominus litis. Isso já gerou polêmica. 

ConJur — E não há ações da advocacia pública federal sobre o tema?
Mauro Campbell —
 Há um mundo ideal e um mundo real. No mundo real, são raríssimas as ações da advocacia pública federal que chegam em recurso especial. Ou então ninguém está reclamando de nada, está todo mundo aceitando. O que chega muito é das advocacias municipais: muda o prefeito, o procurador que assume entra com ação de improbidade contra o prefeito que saiu. Mas não é número excessivo. A advocacia pública municipal não se insurgiu. 

ConJur — É uma questão que vai gerar muita discussão, então.
Mauro Campbell —
 É preciso deixar muito claro: a comissão não fixou nenhuma proposta pétrea. A comissão e os estudiosos da matéria deram as opiniões deles livremente e se fixou um projeto. Estamos extinguindo, por exemplo, a conduta culposa da improbidade. Isso é algo que pode criar polêmica. Certamente criará. Aí levantam-se os oponentes dessa conduta da comissão: mas o STJ já fixou que é culpa grave, não é culpa qualquer. Eu sempre penso: fixou onde? Dê exemplo de um acórdão. Você vai ver que conduta é dolosa. A qualificação técnica é que era equivocada. Saindo disso, nada impedirá que um órgão de controle atue administrativamente e puna, mas não como ato de improbidade. Se a falta administrativa não chegou ao grau de reprovabilidade de ato de improbidade, você terá mecanismos administrativos a coibir.

ConJur — O senhor integrou também a comissão que elaborou o anteprojeto do Estatuto da Desburocratização. Qual é a avaliação que faz?
Mauro Campbell —
 Essa é mais antiga. Temos muito material produzido, que inclusive já foi utilizado por uma lei recentemente publicada e promulgada. Para que se tenha um estatuto nacional, tenho que ter autorização constitucional específica. Então há uma PEC em tramitação no Senado que abre a guarda para que receba o Estatuto. Ele está com arcabouço quase pronto, mas se aguarda que a PEC seja votada em favor da intervenção [federal no Rio de Janeiro, encerrada em 27 de dezembro. Durante intervenções federais o congresso fica impedido de tramitar PECs]. Ela está estacionada, e a comissão autorizou que, na medida do possível, o conselho antiburocratização do governo federal tomasse isso de empréstimo e já colocasse em prática e fizesse. 

ConJur — E no que consiste, exatamente, o anteprojeto?
Mauro Campbell —
 A ideia é a seguinte: se você faz por lei federal, eu não posso cobrar isso do município e do estado. Vou ficar restrito à administração federal. A intenção é fazer um estatuto nacional, que regule isso de cima a baixo. O artigo que inaugura o estatuto diz que nenhum servidor público, seu preposto e nenhum agente público poderá cobrar, solicitar ou pedir ao particular, pessoa física ou jurídica, documento ou dado que já disponha em qualquer dos sistemas públicos federal, estadual ou municipal. É o que acontece em qualquer país civilizado, em que você nem anda com documento algum. Aqui no Brasil, se você andar sem RG você vai preso. Com o projeto, se você chega no balcão e disser “meu nome é tal, RG tal” e a resposta for “preciso do seu RG”, você dirá “você tem obrigação de saber, está no seu sistema”. 

ConJur — Mas o país está pronto para essa desburocratização?
Mauro Campbell —
 Vamos ficar nesse exemplo que eu dei agora. Quando é para investigar, os sistemas não se falam? O MP fala com Coaf, que fala com a Receita Federal, com a Polícia Federal e pronto: sabe sua vida toda. Então essa incompetência pode ser uma inapetência do governo ou do Estado em não cumprir com seu dever porque ninguém nunca o cobrou sobre isso. O que deve ser naturalmente prestado, você fica reivindicando. O estatuto não vai mudar. É a cultura que tem que mudar. 

ConJur — O estatuto é um catalizador da eficiência, então. 
Mauro Campbell —
 A PEC regulamenta exatamente o princípio da eficiência. 

ConJur — Também está em discussão a PEC da Relevância, que estabelece filtros de admissibilidade de recursos para o STJ. O senhor sempre foi um crítico da medida, mas de uns tempos para cá vem apoiando sua necessidade. O que aconteceu com o tribunal para que se chegasse a esse quadro?
Mauro Campbell — O elevado índice de judicialização que o país sofreu e sofre, mercê de inúmeros fatores e temas (planos econômicos e, sobretudo, pela instabilidade da jurisprudência nacional). Vamos lembrar que, embora fosse algo sugerido ao Judiciário – dar inteireza, estabilidade e segurança jurídica através de jurisprudência sólida e estável —, ela sempre foi instável e muitas das vezes o próprio STJ chegou a ponto de claudicar, alterando jurisprudência aqui e acolá. E isso tudo gera recurso. 

ConJur — Qual deve ser o filtro para o STJ julgar?
Mauro Campbell —
 Quando me candidatei ao STJ, tinha em mente o ideário de criação dele: de que é uma corte nacional e que foi feita, sim, para centenas de milhares de processos. O que passou a acontecer é que o filtro disso nas instâncias ordinárias ficou um pouco a desejar, porque é inadmissível que o STJ permaneça a dedicar seu tempo e hora de trabalho para julgar temas sem qualquer relevância para a nação. E se dedique, no que sobrar de tempo, aí, sim, a julgar temas de altíssima relevância. 

ConJur — O que é um processo sem relevância?
Mauro Campbell —
 É inadmissível que o STJ continue a se reunir para julgar habeas corpus de macaca, imposto de importação de girafa, posse do papagaio Taffarel. Não é crível que uma corte do porte da nossa se dedique a isso. E outros temas de maior relevância econômica e impacto social não sofram crivo mais apurado em razão desse volume de processos que temos aqui pra julgar. Não se confunda isso com qualquer necessidade de tolher a instância excepcional que é o STJ, mas fazer dela instância excepcionalíssima. Isso vem melhorando com os repetitivos julgados. Basta citar um caso: esse último que julgamos, sobre a prescrição intercorrente, em que se estima que de 25 milhões de processos terão fim. Isso significa um quarto do acervo processual nacional. Essa é a tarefa do STJ. 

ConJur — A PEC da Relevância, então, vem a calhar.
Mauro Campbell —
 O STJ fez com que ela seja oportuna. E você está falando com um ministro que, há dez anos, não concordava com ela. O tempo fez com que nós conseguíssemos, através dos temas de repetitivos, diminuir ainda mais a possibilidade de julgamento de coisas despiciendas, que a repercussão seja irrisória. 

ConJur — Há muitas dessas teses? A questão da importação da girafa, por exemplo, imagino que seja uma novidade jurídica, algo que não foi decidido, ainda que o impacto numérico não exista.
Mauro Campbell —
 Um cidadão importa duas girafas pra colocar no acervo pessoal e abrir esse acervo para a comunidade do município. Esse é um tema. Qual a relevância disso para chegar aqui? Duas macacas chimpanzés criadas como filhas por um casal em São Paulo entram com habeas corpus para que não fossem levadas para seu habitat natural. Não há chimpanzés nas Américas. Teria que fretar avião ou despachar para a África. Como é que esse processo não foi resolvido no Ibama?

ConJur — A judicialização, então, poderia ser contida pelas agências reguladoras.
Mauro Campbell —
 Hoje nós debatíamos isso aqui: o STJ tem sido muito próspero em declarar isso, que nessa situação de regulação, nós devemos prestigiar a regulação cada vez mais técnica. E na medida em que o Executivo passa a recrutar pessoas técnicas para essas agências, isso angaria e requinta a necessidade de decisões judiciais nossas prestigiando a regulação. Se elas funcionarem a contento, resolver-se-á tudo no foro competente. Quando muito por uma forma alternativa de resolução de conflito que não seja trazer a demanda para o Judiciário.

ConJur — Por isso a necessidade de uma melhor filtragem na admissibilidade?
Mauro Campbell —
 Já houve avanço extraordinário nas instâncias ordinárias na admissão de recursos. O que é que vai subir a uma corte como o STJ? Há temas que estão batidos e rebatidos. Essa evolução contribuiu para minha mudança de posição, como contribuiu também a própria posição da advocacia pública, que não é a mesma de 11 anos atrás. Hoje, notoriamente, desistem de centenas de recursos no STJ. O meu gabinete é piloto para desistência de recursos do INSS. Entregamos todos pra eles, eles selecionaram e desistiram de centenas de recursos. 

ConJur — Nos casos de jurisprudência consolidada?
Mauro Campbell –
Sim. E seja qual fosse o resultado, ele seria irrelevante. Estamos demandando a máquina judiciária toda indevidamente.

ConJur — A cultura de precedentes proposta pelo CPC de 2015 vingou no Brasil?
Mauro Campbell —
 Ela começa a funcionar, com a mitigação do Civil Law, que é o que existe hoje no Brasil. Na Corte Especial, o debate que se travava hoje era esse: um tema previdenciário da maior relevância em que toda a jurisprudência da seção está unificada e se tentava, em voto conhecendo da divergência, alterar toda a jurisprudência firmada. O que significaria isso? Dar direito a uma meia dúzia de autores daquele processo, que trabalhavam em condições insalubres porque eram médicos de hospital, um benefício que prescrevera. E milhões de outros não teriam direito sequer a uma ação rescisória. O impacto social disso é avassalador. Eu disse ainda há pouco que um dos fatores da judicialização é este: o próprio Judiciário desrespeitando seus precedentes e fomentando a judicialização.

ConJur — O STJ completa 30 anos de criação em outubro deste ano. Qual foi a principal contribuição para a sociedade?
Mauro Campbell —
 Sem dúvida alguma, a abnegação de seus membros no julgamento de milhões de processos ao longo desses anos. Isso aqui é uma máquina de julgar processos. Não há nada em qualquer corte por aí afora comparável a isso aqui. Por mais que se critique — e a crítica é bem-vinda e deve ser avaliada e assimilada —, nós somos um dos quatro países do mundo em que temos esta forma de julgamento: os debates são públicos, as questões são feitas abertamente, com todos assistindo, e a par disso conseguimos julgar centenas de milhares de recurso por ano. Alcançamos meio milhão de processos julgados em 2018. Não há quem acredite pelo mundo afora que isso possa acontecer numa corte superior.

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