Opinião

Com decreto de armas, Estado diz que a segurança pública não é mais problema seu

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19 de janeiro de 2019, 5h36

É sustentável ou, ao contrário, enganosa (ou criminógena) a propaganda governamental de que ao facilitar o registro de uso de armas de fogo se garante a segurança? Essa é a pergunta que se tenta responder aqui, diante do conteúdo do Decreto 9.685/2019, recém-assinado pelo presidente da República, e que confere nova redação ao Decreto 5.123/2004, que trata de situações de registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição e do sistema Nacional de Armas (Sinarm).

Trata-se de promessa de campanha concretizada como ato, com verniz que, na superfície, apela à vontade popular, mas, na base, foge do debate público. A edição do decreto é tormentosa.

Tirante a lassidão para o registro de até quatro armas de fogo por pessoa, não faz o menor sentido uma política pública que, sob pretexto de garantir mais segurança à parcela da população, incentive brasileiros e brasileiras a se armarem mais facilmente. Alguém acredita que, com mais posses e registros de armas de fogo, a sociedade se torna mais pacífica? Ou ainda que com mais registros de armas de fogo, ou mesmo com duração mais longa (de 5 para 10 anos) de cada registro, o Estado cumpra seu compromisso de agir eficientemente em prol da segurança pública?

Por mais que se repita a falácia de que mais armas significam menos crimes e mais segurança individual, não há como não constatar o óbvio: o incentivo a que cada cidadão se arme mais facilmente é o recibo dado pelo Estado brasileiro de que o compromisso com a segurança pública não é mais seu. Na falha da prevenção, na ridícula forma com que se dão investigações de crimes praticados com armas de fogo (a esmagadora maioria de decisões judiciais de condenação nasce de prisões em flagrante, e não de investigações que primem pela pesquisa de informações), ao invés de inteligentemente se centrar no controle público do cometimento de crimes, a escolha de política criminal vai na contramão: armem-se, cidadãos, porque eu, o Estado, ainda que tenha o mapeamento do índice de crimes violentos no país (Atlas da Violência de 2018), não tenho mais o que fazer. É como se o Estado dissesse: “cidadãos, sujem suas mãos, porque as minhas eu já lavei com esse decreto”.

Dentre os aspectos que chamam a atenção no decreto assinado por Jair Bolsonaro, alguns são aqui só pincelados, como a autorização de posse aos “residentes em área rural” e aos “titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais” (artigo 12, parágrafo 7º, III e V), na crença de que para tais pessoas haveria o que se chamou de “efetiva necessidade” de aquisição de armas de fogo.

O Estado brasileiro, assim, por um lado, convenientemente, reconhece que não chega às áreas rurais e, por outro, autoriza um dono de bar, vítima de crime patrimonial, que se defenda por si só, em vez de contar com a polícia judiciária ou militar. Arme-se e reaja: isso é política criminal? Que projeto de segurança pública é esse que, em vez de propor um plano sério e inteligente, joga nos ombros de quem pode despender dinheiro para adquirir armas a responsabilidade de se defender?

Esse plano faroeste de segurança pública, escandalosamente populista, em que o Estado renuncia ao controle do crime e à tutela digna dos interesses dos brasileiros e brasileiras e estimula o “salve-se quem puder”, seria impensável, não tivesse sido escrito em pleno 2019.

Isso diante de inúmeros estudos dos mais sérios organismos internacionais de direitos humanos — ONU aí incluída — que indicam claramente que o armamento da população contraria qualquer política pública séria de combate ao crime. Em 1982, a ONU decidiu instituir um departamento específico para o desarmamento, que em 2007 passou a ser chamado United Nations Office for Disarmament Affairs. Desde 1998, dissemina informações públicas e planos de ação para redução dos índices de comércio e uso de armas de diversas espécies entre os países e os incentiva a desarmar seus cidadãos[1]. O Brasil, aliás, aderiu ao Arms Trade Treaty, tratado celebrado no âmbito da mesma ONU sobre comércio internacional de armas, em junho de 2013, que foi aprovado pelo Decreto Legislativo 8, de 15 de fevereiro de 2018. Agora, sua implementação dependerá da vontade do presidente da República[2].

A questão, ainda não percebida por aqui, atinge preocupações de saúde pública, no exemplar caso dos Estados Unidos, onde índices de homicídio cometidos por armas de fogo são vistos como epidemia. Estudo publicado no New England Journal of Medicine em 2008 apontou que cidadãos com arma em casa estão entre 40% e 170% mais expostos a sofrerem homicídio[3]. Em 2004, outro estudo publicado no American Journal of Epidemiology destacou esse acréscimo de risco da ordem de 90%[4]. Em 2009, sintomaticamente, em nova pesquisa no campo da medicina, publicada no American Journal of Public Health, apontou-se que a situação de uso de arma em legítima defesa, propalada como eficaz, expõe 4,5 vezes a pessoa a sofrer tiro do agressor, quando comparada à situação de defesa sem arma de fogo[5]. Aliás, dados oficiais do Federal Bureau of Justice dos EUA, compilados em pesquisa do Violence Policy Center, relatam que, para cada homicídio justificável (situação de legítima defesa), acontecem outros 44 não acobertados por excludente[6].

Correlacionado a isso, pesquisa publicada em abril de 2018 pelo Violence Policy Center noticia que, em 2015, dos homicídios cometidos (majoritariamente por armas de fogo) nos Estados Unidos, 51% vitimaram pessoas negras — 13% da população daquele país[7].

Diante da seriedade de enfoque que o assunto reclama, é fácil perceber o quão obtusa — para dizer o mínimo — é a política pública anunciada em tom de pomposo cumprimento de promessa de campanha.

Não bastasse isso, causa ainda mais indignação que o decreto tenha sido editado mesmo o novo governo tendo à disposição o Atlas da Violência de 2018, formulado por entidades competentes no combate ao crime (como o Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e na formulação de política pública orientada a garantir a segurança da população. Ora, o presidente da República e sua equipe do Ministério da Justiça e Segurança Pública sabem quais são os municípios e quais são os estados mais violentos, e a escolha não foi investir mentes e dinheiro no controle do crime naquelas localidades, mas, sim, levar em conta os tais lugares como justificativa, nada criteriosa, para a rotundamente equivocada decisão tomada com o decreto. Por isso, inclusive, se chegou ao escandaloso critério de se "privilegiar" nada menos do que todos os estados da federação, aumentando-se sem qualquer rigor ou método as situações de "efetiva necessidade" para a aquisição de novos registros e posses de arma de fogo.

Haveria muito ainda a ser dito sobre esse “formidável” cumprimento de promessa de campanha eleitoral, mas é o caso de se desafiar os próceres do plano de segurança pública a se lembrarem do que se chama de proibição de proteção insuficiente. Afinal, ao facilitar que as pessoas tenham mais armas, o Estado brasileiro as protege ou renuncia à sua proteção? Quando o recado do formulador da política criminal é o “arme-se quem puder”, estaria o Estado brasileiro comprometido com um plano duradouro, minimamente efetivo, de combate ao crime e de garantia de segurança (real, e não simbólica) à sua população?

Seria o caso de se pensar nisso. Ou melhor, de se ter pensado nisso antes de se editar a calamidade anunciada. Esse passo importante em matéria de política criminal, mais do que equivocado, é uma decisão trágica, incentivadora de carnificina.

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