Diário de Classe

Súmula 221 do STJ e uma teoria/prática (inconstitucional) das fontes

Autores

  • Igor Raatz

    é sócio-fundador do Raatz & Anchieta Advocacia professor da Universidade Feevale pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

19 de janeiro de 2019, 7h05

Não é de hoje que, no Brasil, as súmulas e outros mecanismos vinculantes vêm recebendo o mesmo status normativo da legislação. Com isso, juízes, tribunais e a própria doutrina subvertem o papel originalmente outorgado (pelo menos do ponto de vista teórico) aos precedentes judiciais em nosso Direito: de mecanismos vocacionados à redução do caráter indeterminado do Direito (leia-se, de textos normativos), súmulas/precedentes acabam por se constituir em mecanismos capazes de substituir o próprio texto normativo aos quais foram chamados a conferir/cristalizar a “melhor” interpretação.

Com isso, são geradas situações que, para não dizer outra coisa, são no mínimo curiosas. Uma decisão vinculante — vulgarmente chamada de “precedente” — mesmo que esteja em total desconformidade com a lei, passa a ter valor normativo superior à própria lei interpretada. Um bom exemplo disso que estamos apontando é o caso da Súmula 221 do STJ e sua respectiva aplicação pelos tribunais brasileiros. Faremos, aqui, uma breve síntese do assunto, a fim de que nossos leitores possam comprovar como os mecanismos vinculantes no Brasil vêm superando a legislação. E não é de hoje.

Com efeito, o enunciado da Súmula 221 do STJ prescreve serem “civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”. Como veremos, essa súmula — aprovada em 12/5/1999 — enfrenta (e cria) um problema da responsabilidade de jornalistas tomados em sentido amplo.

Inicialmente, é importante mencionar que, à época da edição da súmula, ainda não havia sido declarada não recepcionada a lei da imprensa (Lei 5.250/67)[1], da qual vale observar os artigos 49, parágrafo 2º, e 50. Os dispositivos legais em questão eram claríssimos: quem responde diretamente ao ofendido é a pessoa natural ou jurídica que explora o meio de informação ou divulgação (artigo 49, parágrafo 2), a qual, por sua vez, terá ação regressiva contra o autor da notícia ou responsável pela sua divulgação (artigo 50).

Portanto, a Súmula 221, ao atribuir responsabilidade solidária, e não subsidiária, ao autor do escrito, é obra de uma leitura contra legem realizada pelo Superior Tribunal de Justiça — não havendo nenhuma surpresa até aí[2]. Contudo, sendo a leitura contra legem, é importante analisar os fundamentos que autorizaram a desconsideração da legislação aplicável ao caso, que são basicamente cinco. Para tanto, e diante do espaço limitado deste texto, trabalharemos com um dos julgados que deu origem ao verbete ora analisado, a saber, os Embargos de Divergência em Recurso Especial 154.837/RJ.

No referido julgamento, o ministro relator Cesar Asfor Rocha argumentou que interpretar a Lei 5.250/67 no sentido de restringir uma ação indenizatória apenas à empresa que explora a atividade seria equivocado porque, (i) se a empresa que explora o meio de informação não desfrutar de saudável situação patrimonial, seria frustrado o intento do ofendido de obter a reparação; (ii) admitir que o autor da ofensa somente seja chamado a juízo regressivamente pela empresa de comunicação, além de dificultar o andamento do feito, por trazer também ao processo aquele a quem se impõe a culpa, implicaria, quando nada, na duplicação das contendas: uma, do ofendido contra a empresa; outra, da empresa contra o ofensor; (iii) sendo a ação é proposta contra o próprio autor do escrito, ninguém melhor do que ele poderia infirmar o alegado pelo autor; ninguém mais do que ele moveria esforços para se defender das acusações que lhe são assacadas; (iv) muitas vezes o ofendido prefere investir contra o próprio autor da ofensa, seja porque o conforto íntimo da reparação moral se dá com maior intensidade quando esta recair contra o próprio ofensor, seja também pelo receio de despertar a ira da empresa proprietária do veículo, cujo poder é na grande maioria das vezes reconhecidamente maior que o do próprio autor da ofensa, por mais conceituado que este seja e, por fim; (v) segundo entendimento do ministro sobre os dispositivos legais, quando a lei impõe taxativamente a responsabilidade da pessoa natural ou jurídica que explora o meio de comunicação, ela estaria apenas conferindo mais uma garantia para o ofendido, tanto sob o aspecto material, por ser mais uma entidade a responder pelos prejuízos eventualmente causados, quanto também para possibilitar a descoberta da verdadeira origem da notícia divulgada, além, naturalmente, de servir de estímulo para a empresa exercitar com maior denodo o dever de avaliar o que publica.

É curioso observar como a Súmula 221 foi formada. Sabemos que todo argumento sempre tem uma natureza preponderante, sendo natural esperar que os argumentos preponderantes na construção de uma súmula sejam, por excelência, jurídicos. Mas, lendo os cinco argumentos retratados, percebe-se que o que ocorreu é justamente o contrário: os argumentos utilizados foram de clara natureza consequencialista/moral[3].

Mais curioso ainda é observar que o principal argumento jurídico, que pauta a questão da responsabilidade dos jornalistas, não foi alvo de uma devida investigação na construção do verbete da súmula. Falamos da natureza jurídica dos serviços de comunicação.

Ora, para saber se a pessoa natural ou jurídica que explora o meio de informação ou divulgação deve responder diretamente, sendo o autor da notícia responsável apenas subsidiariamente — respondendo, pois, apenas em demanda regressiva —, é necessário se perguntar pela natureza jurídica do serviço prestado. Isso porque a responsabilização subsidiária de um jornalista tem um intuito muito claro, que é garantir que a função jornalística seja exercida com absoluta independência.

E isso tem um motivo: a atividade jornalística e midiática detém natureza pública. Essa é a razão pela qual, nos termos do artigo 21, XII, a, da Constituição Federal, compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão “os serviços de radiofusão sonora, e de sons e imagens”.

Significa dizer que o desempenho da atividade de comunicação, com todos os seus riscos e proveitos, é repassada ao particular mediante contraprestação à autoridade pública, sem, com isso, deixar o serviço ser público; pública é a qualificação do serviço, e não da pessoa que o desempenha[4], e, assim sendo, sobre a atividade devem incidir todas as regras cabíveis de Direito Público. Consequentemente, atraindo-se ao caso o regime de direito público, tem incidência o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, segundo o qual “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Portanto, a responsabilidade subsidiária do jornalista não é um privilégio. É uma garantia constitucional para que o comunicador possa exercer seu trabalho de forma independente. Assim como qualquer servidor público.

Soma-se a tudo isso o fato de que uma decisão em sentido contrário ao aqui defendido representa uma visível violação ao dever de coerência e integridade da jurisprudência, previsto no artigo 926 do Código de Processo Civil. Um único exemplo é suficiente para deixar isso bem claro: no caso de um acidente envolvendo empresa que explora o serviço de transporte rodoviário de passageiros, quem responde diretamente pelos danos causados é a empresa, e não o próprio motorista, contra quem é assegurado o direito de regresso. E isso ocorre porque a concessão de serviços rodoviários está prevista no já mencionado artigo 21, inciso XII, da Constituição, porém em outra alínea. Logo, se o serviço de radiofusão é público e explorado por particulares mediante concessão, assim como outros serviços arrolados nas alíneas do inciso XII do artigo 21 da Constituição Federal, haveria razão plausível para que o seu regime de responsabilidade fosse outro? Existe alguma razão jurídica para esse tratamento distinto? Com o simples exemplo em questão, pode-se verificar a que ponto chegamos com a ode aos “precedentes vinculantes”.

Com efeito, vale agora resgatar tudo o que foi abordado até aqui para nos darmos conta da gravidade do problema: o STJ editou uma súmula contrária a uma lei que não foi recepcionada pela CF/88. Tal súmula, para desconsiderar a legislação então vigente, fez uso, principalmente, de argumentos não jurídicos. Mesmo que a legislação que ensejou a súmula não tenha sido recepcionada — perdendo, pois, o seu valor normativo —, o seu verbete continuou tendo vigência (completará 20 anos em maio), servindo como base normativa para julgamentos em todo o país, apesar de ser insustentável juridicamente, na medida em que desconsidera a proteção constitucional devida à (pública) atividade jornalística e, também, desconsidera a exigência de coerência e integridade, tratando casos similares de maneira distinta sem uma justificação racional para tanto.

Para finalizar, permanece uma pergunta: como é possível que uma súmula voltada a conferir a melhor interpretação para uma lei que não foi sequer recepcionada pela Constituição continue a servir de parâmetro normativo para novas decisões? O único modo de aceitar isso é se partirmos da premissa de que súmulas e outros mecanismos vinculantes têm valor normativo autônomo e, portanto, independente da lei[5]. E aceitarmos, também, que uma vez criados tais mecanismos se descolam das normas jurídicas controversas que lhe serviram de base, passando, até mesmo, a substituí-las. Porém, para que isso fosse possível, seria necessário, no mínimo, uma profunda mudança constitucional, o que, em uma democracia, não se faz por decisões de tribunais superiores e por uma doutrina vocacionada a chancelar o entendimento dos referidos tribunais. De modo sorrateiro, a legalidade vai cedendo espaço a uma teoria/prática (inconstitucional) das fontes do Direito[6].

P.S.: Agradecemos pela revisão e interlocução ao amigo Rafael Giorgio Dalla Barba.


[1] Algo que ocorreu apenas em 2009, na conhecida ADPF 130.
[2] Dalla Barba, R. G. Decisões judiciais contra legem não deveriam ser nenhuma surpresa. Consultor Jurídico, São Paulo, 12 maio 2018.
[3] O termo “consequencialista” é utilizado aqui como o argumento que toma como critério a consequência estrita de uma decisão.
[4] Alves, V. R. Responsabilidade civil do estado. t. I, Campinas: Bookseller, 2001, p. 529.
[5] Para uma crítica à possibilidade de aplicação de mecanismos vinculantes como único elemento de fundamentação das decisões judiciais, ver Costa, E. J. da F. Os tribunais superiores são órgãos transcendentais? Consultor Jurídico, São Paulo, 03 dez. 2016.
[6] Nesse sentido, ver Streck, L. L. Uma tese política à procura de uma teoria do Direito: precedentes III Consultor Jurídico, São Paulo, 06 out. 2016

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  • é pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

  • é advogado, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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