Opinião

A Advocacia-Geral da União e o pensamento da nova esquerda

Autor

16 de janeiro de 2019, 5h06

Há dois anos, publicamos o artigo “AGU deve se legitimar institucionalmente efetivando seus princípios”[1]. Nesse texto, defendemos que a advocacia pública é “uma verdadeira função de Estado, patenteada por seu tratamento constitucional como função essencial à Justiça”. Disso decorre que os membros da AGU devem ter a necessária isenção técnica, não reduzindo sua atuação institucional à mera defesa de ideais “temporários e cambiantes”.

No domingo (13/1), a ConJur publicou entrevista com o novo advogado-geral da União, André Mendonça. Vários temas foram abordados ao longo do texto, mas dois aspectos podem ser ressaltados, especialmente em termos ideológicos:

  • de acordo com o entrevistado, “temos que discutir quem é o verdadeiro inimigo do Estado e ir atrás deles em conjunto. Essa é a nossa proposta, de que unamos esforços com o Tribunal de Contas da União, com o Ministério Público Federal, com a Controladoria-Geral da União e com o Ministério da Justiça”. Embora a Advocacia-Geral da União também represente, judicialmente, o Poder Legislativo, não houve qualquer menção à necessária parceria entre a AGU, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal;
  • referindo-se a seus estudos doutorais, o advogado-geral da União afirmou que “um eixo da minha tese é a teoria da ação comunicativa do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas”[2].

Numa leitura superficial, os dois aspectos acima não teriam maiores correlações. Ocorre que, em seu conjunto, esses pontos da entrevista são muito elucidativos, no sentido de aferir as premissas ideológicas que norteiam o pensamento do advogado-geral da União.

Embora seja muito citado por juristas brasileiros, pouco se comenta a forma como Jürgen Habermas é enxergado sob os prismas político e sociológico, especialmente na Europa. A esse respeito, é muito esclarecedora a análise do filósofo britânico Roger Scruton, para quem Habermas “é um exemplo típico desses intelectuais funcionais da esquerda alemã”[3].

Ao discorrer acerca da teoria da ação comunicativa de Habermas, Roger Scruton demonstra o que segue: “embora pretenda estar descrevendo uma ‘situação ideal de fala’, sua prosa gesticula continuamente na direção de uma nova, e de certo modo liberada, ordem social na qual o veneno da consciência burguesa tenha sido eliminado”[4]. Mais: “como último descendente vivo da Escola de Frankfurt”, Habermas usou “durante muitos anos […] as categorias marxistas e tentou encontrar novas maneiras de formatar a mensagem anticapitalista. […] Para seu crédito, ele […] se afastou dessa agenda entorpecedora, defendendo o diálogo, a negociação e a simpatia no lugar da velha ‘luta’ marxista”. Ocorre que “o diálogo que Habermas agora defende […] é notável pelas vozes que exclui: nenhum nacionalista, conservador social, pré-modernista ou defensor do livre mercado será convidado à mesa na qual o futuro pós-moderno da humanidade será discutido”[5].

O mais interessante é que, na referida entrevista à ConJur, André Mendonça afirmou que “o papel da AGU é o de ouvir o que o governo quer e de transplantar essas vozes perante o Judiciário”[6]. Seria oportuno indagar se o advogado-geral da União, ao adotar como “eixo” o pensamento de Habermas, não estaria contrariando as próprias premissas ideológicas do governo de Jair Bolsonaro. Isso porque, na data de sua posse no cargo, o atual presidente da República afirmou que “o Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas”[7], libertando-se do “socialismo, […] da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”[8].

Decerto, caso a AGU tivesse mesmo a função de “transplantar” a voz do “governo”, seria interessante ler também as ideias do novo ministro de Estado das Relações Exteriores, o qual defende a “recuperação da alma do Ocidente a partir do sentimento nacional”. Segundo o ministro Ernesto Araújo, “a fundação da União Europeia anulou, pasteurizou todo o passado. ‘Europa’ já não significa todo aquele cabedal de experiência humana, mas apenas um conceito burocrático e um espaço culturalmente vazio regido por ‘valores’ abstratos”[9]. Tais considerações se distanciam (e muito) do pensamento de filósofos como Habermas, que é tido como uma “voz da nova Europa”[10] e cuja “teoria da ação comunicativa” constitui um “eixo” da tese do novo advogado-geral da União.

Alguns poderiam indagar: o que todas essas considerações têm a ver com a atuação da AGU? A resposta está no fato de as instituições agirem com base em premissas ideológicas. E, ao embasar sua linha de atuação num filósofo como Habermas, o advogado-geral da União se aproxima de um pensamento dado a “abstrações burocráticas”[11] e identificado como a “nova esquerda” europeia (tão criticada por membros do atual governo brasileiro).

Do ponto de vista prático, isso fica evidente quando o advogado-geral da União deixa de falar na necessária parceria com a Câmara dos Deputados e com o Senado Federal, mencionando apenas a união de “esforços com o Tribunal de Contas da União, com o Ministério Público, com a Controladoria-Geral da União e com o Ministério da Justiça”, na pretensiosa missão de “discutir quem é o verdadeiro inimigo do Estado”. Isso demonstra um forte viés ideológico, atribuindo a órgãos da burocracia estatal um papel com sérios impactos sobre as políticas públicas. Com efeito, nenhum desses órgãos incumbidos de apontar “o verdadeiro inimigo do Estado” é composto de representantes eleitos pelo povo, mas, sim, por servidores concursados e comissionados.

Em Habermas, as “abstrações burocráticas” têm “forma de um programa político”[12]. Já na entrevista do advogado-geral da União, a AGU teria a função de “traduzir e conciliar” o “princípio democrático”, sem olvidar o citado papel de “discutir quem é o verdadeiro inimigo do Estado”. Isso, evidentemente, não se trata de uma mera casualidade.

Os membros do governo mais propensos ao debate ideológico enxergarão os riscos inerentes à fala do advogado-geral da União. Esses riscos podem ser resumidos na seguinte explanação de Olavo de Carvalho, filósofo seguido por vários setores governamentais:

“Pois os fatos, para a mente educada nos cânones do marxismo, são apenas a espuma ilusória que encobre as estruturas profundas […]. É nesse pano de fundo que se desenrola a verdadeira luta entre o Bem e o Mal […].

Para a tradição marxista, o indivíduo humano não é o sujeito da História e por isso não é nem mesmo, em última instância, o autor de seus atos. Através de suas ações e palavras, quem age é a ‘classe’ […]. Acreditando decidir e atuar por si, o indivíduo é apenas fantoche movido pela ideologia de classe”[13].

É claro que, atualmente, Habermas já não busca “a voz autêntica do proletariado”, a qual foi sucedida pela “voz ideal do acadêmico que, ao falar livremente, nos dirá como são as coisas”[14], visando superar “crise de legitimidade” capitalista[15]. Aplicando tal raciocínio à “realidade” brasileira, a abstração burocrática do “ideal acadêmico” seria assumida por instituições como a AGU, com suas funções de “combate à corrupção” e de tradução do “princípio democrático”.

Na primeira pergunta ao advogado-geral da União, a ConJur mencionou que “o presidente Bolsonaro, ao ser eleito, falou que seria necessário desamarrar, destravar o país”. Talvez fosse oportuno indagar o que segue, ao final da entrevista: “O senhor realmente acredita que a teoria de Habermas é o melhor ‘eixo’ para a AGU no governo Bolsonaro?”.


[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jan-08/rommel-macedo-agu-legitimar-efetivando-principios>. Acesso em 14.jan.2019.
[2] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jan-13/entrevista-andre-mendonca-advogado-geral-uniao>. Acesso em 14.jan.2019.
[3] SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da Nova Esquerda. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 164.
[4] Ibidem, p. 212.
[5] Ibidem, p. 219-220.
[6] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-jan-13/entrevista-andre-mendonca-advogado-geral-uniao>. Acesso em 14.jan.2019.
[7] Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-cerimonia-de-posse-no-congresso-nacional>. Acesso em 14.jan.2019.
[8] Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-cerimonia-de-recebimento-da-faixa-presidencial>. Acesso em 14.jan.2019.
[9] Disponível em: <http://funag.gov.br/loja/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf>. Aceso em 14.jan.2019.
[10] SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da Nova Esquerda. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 219.
[11] Ibidem, p. 219.
[12] Ibidem, p. 219.
[13] CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. 2. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 157.
[14] SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da Nova Esquerda. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 207.
[15] Ibidem, p. 219.

Autores

  • Brave

    é advogado da União e mestre em Direito. Foi conselheiro seccional e presidente da Comissão da Advocacia Pública e do Advogado Empregado da OAB-DF (2010-2012), coordenador científico da pós-graduação Lato Sensu em Advocacia Pública, coordenador-geral substituto de Processos Judiciais e Disciplinares da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça, coordenador-geral de Análise de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e coordenador jurídico de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Comunicações.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!