Sanha acusatória

"Ao invés de barrar, juízes imprimem no processo penal um cunho policialesco"

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16 de janeiro de 2019, 8h00

Sem barrar exageros cometidos pelos poderes do "Estado-acusador", membros da magistratura têm imprimido no processo penal um cunho policialesco. A crítica é do presidente da seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil, Lúcio Flávio, recém-eleito para o segundo mandato.

OAB-GO
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Segundo o advogado, atualmente o Estado não precisa provar que o acusado é culpado, mas sim o réu que deve provar sua inocência. “A defesa deixou de ser vista como direito sagrado, garantia civilizatória e, claro, elemento fundamental de legitimação das sentenças, absolutórias ou condenatórias, para ser vista como um atrapalho a essa sanha acusatória e punitiva. Há, hoje, um claro desequilíbrio entre acusação e defesa”, afirma.

Reeleito com mais de 10 mil votos, Lúcio Flávio manteve sua diretoria intacta para o triênio 2019-2021. Na continuação de sua gestão, o advogado pretende focar os esforços em garantir o cumprimentos das prerrogativas da advocacia, em especial a criminal.

Leia a entrevista:

ConJur  — Quais os principais gargalos da advocacia no seu estado?
Lúcio Flávio —
A lentidão do Judiciário goiano, situação que se repete em vários outros estados da Federação. Além disso, há as custas judiciais, que aqui são altíssimas e atrapalham a advocacia na medida em que tanto oneram o cidadão que este acaba optando por não ingressar com ações judiciais. Quanto a esse segundo problema, a OAB-GO questiona junto ao CNJ, desde junho de 2018, a nova tabela de custas judiciais do Judiciário goiano. Esperamos decisão favorável, pois o que já era caríssimo ficou insuportável.

ConJur  — O Tribunal de Contas da União decidiu, em novembro, que a OAB deve prestar contas ao tribunal. Como o senhor avalia a medida?
Lúcio Flávio —
A OAB-GO já tem todas as suas contas abertas à sociedade. Temos o mais moderno portal da transparência do Brasil, de modo que se o TCU quiser pode auditar as contas da nossa seccional sem sair de Brasília; faz tudo pelo portal. Todavia, essa ingerência que o TCU pretende ter sobre o sistema OAB é prejudicial à independência da Ordem, que exerce funções de defesa da Constituição, do Estado de Direito, das leis e sociedade que não admitem qualquer ingerência externa e esse controle, certamente, é uma ingerência externa. Por fim, a OAB não administra verba pública, mas sim contribuições privadas de seus inscritos. Ou seja, não faz sentido o TCU fiscalizar finanças que não advêm do erário.

ConJur  — Quais as principais prerrogativas desrespeitadas hoje?
Lúcio Flávio —
A advocacia criminal é a que mais sofre com violação de prerrogativas, desde a delegacia, passando pelo juízo, até os presídios, são reiteradamente violadas as prerrogativas. Aqui em Goiás criamos a Procuradoria de Prerrogativas, com procuradores contratados por concurso público e incumbidos profissional e exclusivamente da defesa das prerrogativas da advocacia goiana. Nesse novo mandato terei uma especial atenção à advocacia criminal, que será nossa prioridade.

ConJur  — O direito de defesa está enfraquecido?
Lúcio Flávio
— Está, infelizmente. Vemos os poderes do Estado-acusador cada vez mais exacerbados e muitas vezes cometendo exageros; os juízes, que deveriam servir de freio a esses arroubos, no mais das vezes embarcam e imprimem ao processo penal um cunho policialesco – não é mais o Estado que tem provar que o acusado é culpado, hoje é o réu que tem que provar que é inocente. A defesa, nesse contexto, deixou de ser vista como direito sagrado, garantia civilizatória e, claro, elemento fundamental de legitimação das sentenças, absolutórias ou condenatórias, para ser vista como um atrapalho a essa sanha acusatória e punitiva. Há, hoje, um claro desequilíbrio entre acusação e defesa.

ConJur  — A OAB deve se colocar politicamente a favor do direito de defesa?
Lúcio Flávio —
Sem dúvida! Se não a Ordem, quem o fará? Se não agora, imediata e urgentemente, quando? Tenho convicção que a defesa do direito de defesa é uma das missões de maior envergadura que têm a Ordem e a advocacia para os próximos tempos. É preciso reequilibrar o processo penal e resgatar o respeito pelo trabalho da defesa.

ConJur  — A OAB é democrática internamente?
Lúcio Flávio —
Sim, a OAB é democrática internamente. Todas as seccionais têm um órgão colegiado superior – em Goiás é o pleno da OAB -, eleito diretamente pelo voto da advocacia, que dá a última palavra em todos os temas de interesse da Ordem. No Conselho Federal da mesma forma: o Pleno do Conselho Federal é composto por conselheiros federais eleitos pelo voto direto da advocacia brasileira e é este o órgão supremo de todo o sistema. Ou seja, existe real e efetiva representatividade da advocacia nos conselhos seccionais e federal.

ConJur  — O que o senhor espera do superministério da Justiça?
Lúcio Flávio —
Preocupa-me, sempre, a concentração de poderes em determinados órgãos ou pessoas. Quem detém muito poder, tende a dele abusar. Espero que o ministro Moro saiba conduzir essa pasta, agora muitíssimo valorizada, de acordo com as balizas da Constituição, ciente de que os fins não justificam os meios. Que se combata implacavelmente a corrupção e o crime organizado, mas jamais ao custo do atropelo dos direitos e garantias fundamentais. E aqui, novamente, será a advocacia chamada a dar testemunho e defender a Carta Magna no dia-a-dia.

ConJur  — Qual o piso ideal para um iniciante?  
Lúcio Flávio —
O piso é necessário para garantir um mínimo de dignidade ao advogado, notadamente em início de carreira. O seu valor é que é o grande problema, pois se trata de questão regulada pelo mercado: lei da oferta e da procura. Um piso que seja fixado em valor acima do que o mercado está disposto a pagar acarretará desemprego ou precarização das relações de trabalho. Dois resultados muito preocupantes. Por isso o tema do piso tem que ser enfrentado com responsabilidade e não pode se transformar em bandeira eleitoreira, se não o remédio vira veneno.

ConJur  — Recentemente, o presidente Bolsonaro manifestou contra o Exame de Ordem aplicado aos recém-formados. Na ocasião, ele disse que o exame cria “boys de luxo de escritórios de advocacia”. Em sua opinião, o modelo do exame precisa ser revisto? A quem cabe fiscalizar o curso de Direito?
Lúcio Flávio —
O Exame de Ordem pode ser melhorado, claro, pois tudo é passível de evolução, mas não está no Exame de Ordem o problema. O problema está na política irresponsável do Ministério da Educação de permitir a criação indiscriminada de cursos de Direito, muitos deles verdadeiros caça-níqueis. É no MEC e em sua política de ensino superior para o Direito – e não no Exame de Ordem – que os olhos do novo presidente devem estar atentos. Verdade seja dita: é hora de fechar algumas milhares de vagas em cursos de Direito.

ConJur  — O senhor é a favor de segundo turno nas eleições da OAB? O Conselho Seccional deve ser eleito separadamente da chapa do presidente?
Lúcio Flávio —
Seria esdrúxulo, caro e desgastante. Sou totalmente contra.

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Esta entrevista integra uma série de conversas com os presidentes das seccionais da OAB eleitos para o triênio 2019-2021.

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