Direto do Carf

Aplicação do valor tributável mínimo do IPI é validada pela jurisprudência do Carf

Autor

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

16 de janeiro de 2019, 7h00

Conforme já destacado no texto inaugural desta coluna[1], o objetivo aqui é fazer uma análise dos precedentes do Carf a respeito dos temas mais relevantes e que foram julgados pelas diferentes seções desse tribunal. Assim, começando pela análise dos temas da 3ª Seção, trataremos da incidência do IPI e a regra de valor tributável mínimo (VTM) nas hipóteses de operações entre empresas interdependentes, haja vista que tal questão voltou à tona no tribunal em razão de uma brusca mudança jurisprudencial.

Antes, todavia, de tracejar o histórico jurisprudencial para tal assunto, mister se faz, ainda de que de forma sumária[2], apresentar o pano de fundo legal da presente discussão.

Nesse sentido, insta registrar que o CTN traz em seu artigo 46 as hipóteses de incidência do IPI para, em seu artigo 47, delimitar as correspondentes bases de cálculo. Em uma das hipóteses lá prescritas, mais precisamente na saída do produto de estabelecimento industrial ou equiparado, o citado codex prevê como base de cálculo o valor da operação ou, na ausência deste, o “preço usual do produto no mercado atacadista da praça do remetente”.

Diante desse contexto normativo, sempre foi comum que empresas industriais criassem estabelecimentos atacadistas para dar saída aos seus produtos industrializados com um baixo valor de operação e estabelecendo o preço adequado apenas na venda ao varejo, o que redundava em um esvaziamento da base tributável do IPI.

Para combater tal prática, o legislador inicialmente delimitou o conceito de “firmas interdependentes” no artigo 612 do Ripi/2010, bem como criou uma base de cálculo ficta na hipótese de operações realizadas entre tais empresas (interdependentes), o chamado VTM, exatamente como prescrito no artigo 195, inciso I do já citado Ripi/2010[3]. Trata-se de uma regra antielisiva específica que, em verdade, existe há muito tempo no ordenamento jurídico nacional[4].

Na particular hipótese aqui tratada, a base de cálculo ficta do IPI pode ser apurada com esteio em duas metodologias distintas, excludentes entre si, e que estão estabelecidas no artigo 196 do Ripi/2010: (i) caso exista mercado atacadista na praça do remetente, o VTM será apurado com base no preço corrente no mercado pelo cálculo da média ponderada de preços das empresas atacadistas da referida localidade; e (ii) na hipótese de inexistir mercado atacadista na praça do remetente, o VTM será apurado como base em uma cesta de elementos objetivamente traçados pelo legislador, quais sejam, custos de produção, outras despesas e margem de lucro normal.

A delimitação de um dos dois métodos possíveis de apuração do VTM gravita em torno de precisar o conteúdo semântico das expressões "praça do remetente" e "mercado atacadista", de modo a permitir a apuração desse valor com base em uma comparação mercadológica ou com base em uma ficção jurídica. E é exatamente aí que surge o conflito levado ao Carf.

Durante longo período interpretou-se o conceito de praça como sinônimo de localidade circunscrita aos limites geográficos de um dado município, o que, inclusive, encontrava amparo em atos normativos da própria Receita Federal[5]. Tal discussão ganhou novas cores com o advento da SCI Cosit 8/2012, por meio da qual a Receita ampliou o conceito de “praça”, com o objetivo de abarcar o distribuidor que se situe em outros municípios para fins de incidência da regra antielisiva aqui tratada.

Essa, portanto, foi a discussão que chegou ao Carf e cujo entendimento fiscal foi, em um primeiro momento, rechaçado naquele tribunal administrativo. É o caso, por exemplo, do Acórdão 204-02.707, julgado em agosto de 2007 pelo 2º Conselho de Contribuintes. Esse também é o teor do Acórdão 3403-002.285.

E foi nesse sentido que a jurisprudência do Carf se portou até o ano de 2017, quando algumas decisões começaram a ser proferidas no sentido de alargar o conceito de “praça” para contemplar a localidade onde está o estabelecimento atacadista, mesmo que em município distinto do remetente. Nos acórdãos Carf 3401-003.955 e 3401-003.954, julgados em agosto de 2017, a turma julgadora, por maioria de votos, consignou que, no caso de monopólio de distribuição de determinado produto, o VTM será calculado com base no preço de venda do atacadista, independentemente do local onde ele esteja — aduzindo, expressamente, que o conceito de “praça” seria inócuo à discussão e não prejudicaria a aplicação da SCI Cosit 8/2012.

Caminhando no mesmo sentido encontram-se ainda os seguintes julgados: acórdãos Carf 3301-004.126, 3302-006.111 e 3201-003.444. Neste último acórdão citado é interessante notar a existência de outro fundamento a justificar a mudança de posicionamento do tribunal para a questão em apreço, o que está retratado na declaração de voto da conselheira Tatiana Josefovicz Belisário, ao prescrever que “um conceito de natureza econômica forjado em 1850 pelo já revogado Código Comercial Brasileiro, por óbvio, jamais poderá ser interpretado da mesma forma quase 2 séculos depois”. Aqui, portanto, o fundamento desenvolvido seria no sentido de que, ante a nova realidade social, o conceito de “praça” teria sofrido uma “mutação”, independentemente de alteração legislativa.

Em caminho oposto aos precedentes alhures indicados e que hoje indicam a posição majoritária do Carf para a questão, também é possível encontrar os acórdãos 3402-004.341 e 3402-005.599, por meio dos quais a mesma turma julgadora, por maioria de votos, fundamentou que:

  • em se tratando de norma antielisiva específica, o artigo 195, inciso I do Ripi/2010 deve ser interpretado de forma estrita, diferentemente do que ocorre quando se está diante de normas antielisivas de caráter geral;
  • na ausência de um conceito de praça no específico âmbito do Direito Tributário, deve o intérprete se socorrer dos dispositivos legais de direito privado que atribuem um conteúdo semântico para tal signo[6], nos exatos termos do artigo 110 do CTN, o que, no caso em concreto, sempre remete à sinonímia entre os conceitos de praça e de município enquanto espaço geográfico; e, ainda,
  • equiparar o conceito de “praça” com o de “mercado atacadista”, isto é, tratá-lo como um conjunto de operações empresariais, transformaria o artigo 195, inciso I do Ripi/2010 em um non sense jurídico, na medida em que o VTN passaria a ser lido como o “conjunto de operações industriais” do “conjunto de operações industriais”.

Por fim, existe ainda outro aspecto que não vem sendo tratado nos precedentes aqui citados[7] e que majoritariamente representam a atual posição do Carf para o problema. Ao afirmar-se que o conceito de praça é sinônimo de mercado e que este, por seu turno, se identifica com conceito, por exemplo, de região metropolitana, é ônus da fiscalização, em sede de autuação fiscal (artigo 373, inciso I do CPC), fazer prova neste sentido, ou seja, de que “mercado”, para um específico caso, equivale ao conceito de região metropolitana ou de Estado ou mesmo de país. Tal prova deve estar calcada em dados econômicos analiticamente apresentados e que justificariam a conclusão fiscal.

Resta claro, portanto, que a partir de 2017 o Carf promoveu uma alteração da sua jurisprudência para a questão aqui tratada ou, para empregar um termo mais afeto a um modelo de precedentes, proveu um aparente[8] overruling. Cumpre questionar, todavia, se tal guinada decorre de alguma substancial alteração das circunstâncias fático-jurídicas que permeiam tal discussão ou se tal mudança foi fruto exclusivo da nova composição das turmas ordinárias do tribunal, fato este que seria passível de críticas[9], em especial para aqueles que enxergam nos precedentes a capacidade de substancialmente fomentar e tutelar expectativas jurídicas, bem como também observam nas manifestações de caráter judicativo a aptidão de trazer estabilidade, integridade e segurança ao Direito[10].

A verdade é que a questão ainda está longe de um fim, já que ainda não foi apreciada definitivamente pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, o que só aumenta o interesse acerca da discussão aqui tratada.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/secoes/colunas/direto-do-carf.
[2] Para aqueles que se interessarem por uma análise mais aprofundada e acadêmica do tema, Cf. DANIEL NETO, Carlos Augusto; RIBEIRO, Diego Diniz. O Valor Tributável Mínimo (VTM) e o Conceito de 'Praça' na sua Apuração. "In": DIREITO TRIBUTÁRIO ATUAL, v. 39, p. 36­55, 2018.
[3] “Art. 195. O valor tributável não poderá ser inferior:
I – ao preço corrente no mercado atacadista da praça do remetente quando o produto for destinado a outro estabelecimento do próprio remetente ou a estabelecimento de firma com a qual mantenha relação de interdependência
(…).”
[4] Desde a previsão do antigo imposto sobre o consumo, conforme se observava do disposto no artigo 15, inciso I da Lei 4.502/64.
[5] Neste diapasão era o teor do Parecer Normativo CST 44/81 e do Ato Declaratório Normativo CST 05/1982.
[6] Nesse sentido: artigo 4º do Decreto 2.591/1912, artigo 33 da Lei 7.3757/85 e artigo 70 do CC.
[7] É o caso, por exemplo, do Acórdão 3301-004.126, já citado acima. Aqui a fiscalização tomou como base de cálculo do IPI o valor da venda operada pela empresa atacadista interdependente sem que houvesse, todavia, apresentação de provas no sentido de que tal importe de fato representava o valor de mercado na “praça” eleita pela fiscalização, sistemática essa que foi vaticinada pelo voto da relatora.
[8] O termo “aparente” é propositadamente aqui empregado, já que uma conclusão para a questão demandaria uma análise mais aprofundada dos motivos que levaram ao Carf a promover essa guinada jurisprudencial, já que a promoção de overruling pressupõe um pesado ônus argumentativo de índole material, isso porque “regras podem ser quebradas, contudo, justificar a infringência da norma é mais difícil do que tomar o mesmo curso da conduta almejada pela ou na ausência dela” (SHAUER, Frederick. Precedente. In Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 60.).
[9] Neste diapasão: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária. In: Processo tributário analítico. CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, vol. III. 2016.
[10] Exatamente como almeja o artigo 927 do CPC.

Autores

  • é conselheiro do Carf na 3ª Seção de Julgamento, advogado tributarista licenciado, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

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