A coerência jurisprudencial é condição para o Estado de Direito?
16 de janeiro de 2019, 11h53
Um dos currículos indicava um homem com experiência nas ruas, que por décadas fez abordagens e prisões, mas sem instrução formal além da mínima exigida para ser um policial. O outro currículo era de uma mulher sem experiência nas ruas, que apenas ocupou apenas cargos internos, em delegacias, mas com vasta formação acadêmica, com títulos de graduação e pós-graduação em áreas relacionadas à segurança pública. O candidato do sexo masculino foi selecionado, tendo os membros do grupo afirmado não ser relevante para um chefe de polícia uma maior formação acadêmica: fundamental seria o conhecimento haurido nas ruas.
A experiência prossegue com a formação de um novo grupo de cobaias, semelhante ao anterior, mas que nem sequer sabia de sua existência, claro. A eles se pede a mesma coisa: a escolha do chefe de polícia. Mas são entregues currículos ligeiramente modificados: o candidato com experiência nas ruas e sem formação acadêmica passa a ser a mulher, e o homem é colocado como o dotado de muitos diplomas e títulos, mas que apenas trabalhou internamente em delegacias. Apesar disso, o segundo grupo escolhe o homem, alegando que, para o cargo de chefe, o importante é a formação acadêmica e o prévio exercício de funções administrativas internas, sendo irrelevante a experiência nas ruas. Tantas vezes repetido o experimento, chegou-se ao mesmo resultado: a escolha recaiu sobre o homem, ainda que por fundamentos diversos.
Isso revela que, para as pessoas que participaram do experimento, talvez até inconscientemente, o chefe deve ser homem. Prática, títulos e diplomas não passaram de pretextos, ainda que algumas das cobaias achassem estar decidindo com base neles.
A esta altura, a leitora já percebeu a relação disso com a jurisprudência e com o Estado de Direito: a coerência, além de didaticamente exigida pelo artigo 926 do CPC, é um caminho para se reduzir a influência de preconceitos e outros fatores que indevidamente venham a pautar as decisões dos julgadores, ainda quando eles próprios não tenham consciência disso. Se, no rule of law, se espera que os julgadores apliquem a ordem jurídica posta, o “papel criador” do intérprete, por maior que seja, não deve conduzir a que situações semelhantes tenham tratamento diferente, e, pior, contraditório. De outro modo, não será a ordem jurídica que eles estarão aplicando. Como no futebol, por mais que seja subjetiva a diferença entre “mão” e “bola na mão” para se marcar um pênalti, o critério tem que ser o mesmo para os dois times que se enfrentam em uma partida; ou não será a regra do futebol que de fato estará pautando o árbitro. Como se diz popularmente, pau que bate em Chico bate em Francisco.
Isso vale não apenas para a decisão de casos semelhantes, mas, principalmente, para as que julgam casos diferentes, partindo de premissas que devem ser coerentes umas com as outras, porque extraídas da mesma ordem jurídica. Para corrigir a incoerência no trato de questões símiles, há instrumentos processuais, a exemplo dos embargos de divergência e do recurso especial. Para as verificadas “apenas” nas premissas dos julgamentos de casos diversos, a situação é mais difícil de ser remediada, diante da jurisprudência das cortes superiores geralmente preocupada em não conhecer de recursos.
Apesar disso, há vários exemplos de incoerências desse segundo tipo, mais graves porque de mais difícil correção, e até mais semelhantes às do “experimento de Uhlmann”. A tributação indireta contém muitas (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Repetição do tributo indireto: incoerências e contradições. São Paulo: Malheiros, 2011). Mas há outras. Uma delas é o tratamento dado pelo Superior Tribunal de Justiça ao depósito judicial feito pelo contribuinte para suspender a exigibilidade de crédito tributário. Quando se questionou como deveriam ser contabilizados, a corte decidiu que “(…) os valores depositados judicialmente com a finalidade de suspender a exigibilidade do crédito tributário, em conformidade com o art. 151, II, do CTN, não refogem ao âmbito patrimonial do contribuinte, inclusive no que diz respeito ao acréscimo obtido com correção monetária e juros, constituindo-se assim em fato gerador do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido” (STJ, REsp 769.483/RJ). Entretanto, diante de leis concessivas de parcelamentos especiais, permitindo o pagamento de débitos com desconto nos juros, quando contribuintes desistiram de ações em curso para quitar seus débitos usando os depósitos, levantando para si a parcela dos juros dispensada, o STJ decidiu que “a remissão de juros de mora insertos dentro da composição do crédito tributário não enseja o resgate de juros remuneratórios incidentes sobre o depósito judicial feito para suspender a exigibilidade desse mesmo crédito tributário. O pleito não encontra guarida no art. 10, parágrafo único, da Lei n. 11.941/2009. Em outras palavras: ‘os eventuais juros compensatórios derivados de supostas aplicações do dinheiro depositado a título de depósito na forma do inciso II do artigo 151 do CTN não pertencem aos contribuintes-depositantes’ (REsp 392.879/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 13.8.2002)” (AgRg no REsp 1.510.228/CE).
Outro exemplo é a natureza das contribuições PIS e Cofins incidentes na importação. Quando de seu surgimento, os contribuintes que efetuam importações oriundas do Mercosul questionaram sua incidência, pois o Tratado de Assunção veda a cobrança de qualquer tributo aduaneiro no comércio recíproco entre países signatários. O STJ, porém, decidiu que PIS e Cofins Importação, apesar do nome, não seriam tributos aduaneiros, mas, sim, internos, cuja função seria sujeitar o produto importado e o nacional ao mesmo ônus tributário. Com “base no referido tratado, é válida a cobrança da Cofins e da contribuição ao PIS sobre o desembaraço de mercadoria importada de país integrante do Mercosul, quando não estiver o produto nacional também desonerado dessas contribuições” (REsp 1.002.069/CE). Pouco tempo depois, foi instituído um tratamento diferenciado de PIS e Cofins para frangos e para o milho usado em sua alimentação (Lei 12.350/2010, artigo 54). Os contribuintes então, invocando o precedente, pleitearam o mesmo tratamento ao frango e ao milho importados de países do Mercosul. O STJ, porém, decidiu que “o PIS-Importação e a Cofins-Importação são tributos distintos do PIS e da Cofins denominados convencionais, pois, enquanto estes têm por fato gerador o faturamento, aqueles são originados de substrato inteiramente diverso, isto é, a importação de bens ou o ‘pagamento, crédito, a entrega, o emprego ou a remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior como contraprestação por serviço prestado’ (art. 3º, I e II, da Lei 10.865/2004)” (REsp 1.437.172/RS). Por conta disso, incentivos concedidos em relação ao PIS e à Cofins internos não seriam aplicáveis às importações dos mesmos produtos oriundas do Mercosul.
Tais incoerências trazem ao jurisdicionado a impressão de que não se aplicam a ele as regras vigentes, que figuram como meros pretextos. O que importa, para ocupar o cargo de chefe, é ser homem. Ou, para ter razão em matéria tributária, ser a Fazenda Pública. Tal como naquela partida em que o juiz só apita a falta quando o atingido é o jogador do time adversário, o próprio jogo começa a perder o sentido.
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