Efeito rebote

Comunidade jurídica diverge quanto à eficácia de decreto de armas

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15 de janeiro de 2019, 22h02

A ampliação das possibilidades para que uma pessoa compre uma arma de fogo não é garantia do aumento da sensação de segurança ou da própria redução da violência no país. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinou, nesta terça-feira (15/1) o texto que promove mudanças no Estatuto do Desarmamento, alargando a lista daqueles que podem ter uma arma em casa ou estabelecimento comercial. Especialistas ouvidos pela ConJur, no entanto, divergem quanto à eficácia da medida para atingir os objetivos a que foi aplicada.

Por um lado, a edição do decreto é pauta de campanha, se mostra uma primeira entrega coerente com o que prometeu o presidente como forma de combater a criminalidade e alguns especialistas a entendem como potencial de aumento da sensação de segurança da população. Por outro, há quem entenda que a medida é insuficiente e pode até mesmo provocar efeito inverso ao propalado.

Henrique Hoffmann, professor e colunista da ConJur, destaca que o decreto em nada mudou a proibição relativa ao porte de arma de fogo — e nem poderia, por ser matéria regulada pelo Estatuto do Desarmamento. E tampouco liberou de forma irrestrita a posse de arma de fogo, mas apenas facilitou a sua aquisição, especialmente ao conferir interpretação menos rígida ao requisito “efetiva necessidade”, o que, para o morador de área urbana, significa residir em estados com taxa de homicídios elevada.

"Quanto ao mérito do acerto ou não de se flexibilizar o acesso à arma de fogo, trata-se de tema polêmico que desperta paixões e não possui resposta definitiva ou solução única. Curioso notar que dados estatísticos podem ser usados para amparar tanto quem é a favor como quem é contra o armamento. Isso porque, na categoria de países desenvolvidos com baixas taxas de homicídios, há tanto os proíbem como os que permitem armas para uso pessoal", afirma.

De acordo com ele, mais do que a liberação ou não das armas, o que influencia seu efetivo uso é a cultura da sociedade de respeito à lei e a de certeza da punição. "Isso confirma o conhecimento popular de que quem mata é a pessoa, não a arma. Nesse debate, o certo é o aumento das armas lícitas nem vai fazer explodir a criminalidade, nem representará a panaceia contra a violência no Brasil", avalia Hoffmann.

No entendimento do advogado criminalista Aury Lopes Jr, também não houve mudanças tão significativas. A determinação do prazo de 10 anos para a renovação do registro é, para ele, até uma restrição não esperada.

"Ficou aquém do esperado e não irá alterar a situação de forma significativa. Antes do Estatuto do Desarmamento, o prazo era indeterminado. Diante da expectativa criada, se esperava que o registro voltasse a ser feito uma vez só, até que a arma fosse vendida, por exemplo, quando então seria feito para o novo dono. Enquanto não se alterasse a propriedade, não haveria necessidade de renovação. Esse era o sistema anterior ao estatuto do desarmamento. Foi uma mudança cosmética", aponta.

Ele ressalta ainda uma questão jurídica que considera interessante. Quem tinha arma de fogo de uso permitido, mas em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, como em caso do registro vencido, foi beneficiado com uma prorrogação automática de validade por mais 5 anos e deixa de estar em situação ilegal.

"Sei que o STJ e alguns tribunais já vinham entendendo que a posse de arma de fogo com registro vencido era uma mera irregularidade administrativa — com o que eu concordo —, mas também é sabido que esse entendimento não era pacífico e muita gente foi ou está sendo processada. Agora, operou-se a abolitio criminis. Eis um fato relevante desde a perspectiva penal", analisa.

Para Raquel Kobashi Gallinati, delegada da Polícia Civil de São Paulo e presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do estado, a mudança atinge o propósito de dar objetividade às regras. Além disso, ela defende que todas as medidas que visem ampliar o rol de defesa e proteção do cidadão e coibir a criminalidade e a violência são necessárias e bem-vindas.

"O decreto assinado nesta terça estabelece critérios objetivos para se conseguir a posse de armas de fogo. Todo aquele que preencher os requisitos previstos no decreto pode ir a uma delegacia da Polícia Federal e demonstrar que atende aos critérios e solicitar a autorização para posse. Antes, os requisitos eram subjetivos, sujeitos a interpretações mais abrangentes. O decreto presume que o cidadão que vai até uma delegacia da PF está falando a verdade. A responsabilidade está com quem se declara cumpridor daqueles requisitos."

O presidente do Sindipol-DF e especialista de segurança pública, Flávio Werneck, afirma que um dos pontos positivos do decreto do presidente da República é a retirada do delegado federal a prerrogativa de decidir de maneira seletiva quem pode ter o direito ou não. "Tirando os critérios subjetivos que eram da interpretação do delegado de polícia e criando critérios objetivos, você, inclusive, diminui a possibilidade de corrupção no órgão e a sensação de que é preciso um conhecido no órgão público para ter o direito deferido. E importante salientar que os critérios objetivos continuam valendo", aponta.

Werneck afirma que o governo aplicou critério da ONU para definir as regiões com altos índices de violência: 10 homicídios por 100 mil habitantes. No entanto, ao possibilitar a posse a comerciantes, ele acredita que o decreto pode ter criado um problema. "Uma coisa é o comércio com o qual estamos acostumados, que é o de rua, uma loja, com endereço, e etc. Mas hoje temos o comércio online, o fictício, de que tem o registro mas não exerce a profissão. Nesse ponto, a discussão fica um pouco aberta", analisa. Quanto ao impacto sobre a criminalidade, ele defende que o texto é marginal à discussão de segurança, sem reduzir ou aumentar a violência.

Eficácia questionável
Ao assinar o decreto, Bolsonaro afirmou que antes havia subjetividade e que as mudanças dão clareza às regras para a posse de armas. No entanto, para a advogada criminalista Maria Victoria Hernandez, o esvaziamento da competência da Polícia Federal para analisar a declaração de efetiva necessidade, ao prever a presunção de veracidade das alegações do pleiteante é indesejável.

"A tão propalada objetividade dos novos critérios é verdadeira cortina de fumaça já que tais critérios são tão amplos que praticamente qualquer pessoa com mais de 25 anos estará apta a requerer posse de arma num país com os índices de violência como o Brasil. É de se lamentar que a medida adotada, ao argumento de proteger o cidadão, provavelmente será responsável pelo inevitável aumento desses índices", critica.

Para o criminalista Fábio Tofic Simantob, o tema motiva mesmo debates constantes, mas ele vê com desconfiança os efeitos que a medida pode ocasionar. "Nunca vi um país reduzir índices de violência aumentando a quantidade de armas em circulação. Tenho dúvidas se essa é uma política que segue no sentido da redução desses índices. Os próximos anos é que vão dizer", diz.

Para ele, no entanto, é ilusão acreditar que o chamado cidadão honesto não vai gerar mais violência. As armas licitamente compradas podem migrar para a ilegalidade e fomentar as guerras entre facções, por exemplo.

Ele afirma que as pessoas têm a ideia de que a violência urbana é fruto de uma guerra entre bandidos e mocinhos. "A violência urbana é parte da cultura. Que Sérgio Buarque de Hollanda me desculpe, mas o homem cordial ou nunca existiu ou não existe mais. Nossa sociedade é muito violenta, agressiva. Temos ingredientes muito fortes para dizer que mais armas em circulação vai aumentar o número de violência entre pessoas comuns, no nosso cotidiano. É um assunto extremamente complexo", analisa o advogado.

Ex-diretor de Política Penitenciária do Ministério da Justiça e ex-responsável pelo setor de pesquisas na área do CNJ, Renato de Vitto, entende que a expectativa maior na comunidade jurídica é quanto à alteração do Estatuto do Desarmamento a ser promovida pelo Congresso Nacional. Lá, as mudanças podem ser, de acordo com ele, mais amplas e danosas.

Ainda assim, ele enxerga uma carga simbólica e consequências concretas já na edição do decreto. "Sinaliza a concretização de uma agenda de segurança pública que acredita que armando a população é que vai se protegê-la. Pode ter um efeito potencial de reduzir a sensação de insegurança, mas é uma solução enganosa", diz.

Quando o acesso à posse de armas é facilitado, ele afirma que há um aumento de circulação, aquecendo o mercado ilegal por consequência. Maior oferta também provoca a redução do custo do produto. "Isso tem efeito rebote de aumentar o número de homicídios, seja com arma fria, seja por acidentes, como não raro acontece", explica. Ele dá o exemplo dos latrocínios. Um crime que teria o objeto do roubo de um bem material pode se transformar e acabar com a vida de uma pessoa diante de uma possível reação da vítima.

Do ponto de vista jurídico, Renato De Vitto acredita a opção feita por Bolsonaro reabre também uma discussão sobre pessoas condenadas por posse ilegal, que podem vir a pedir uma revisão com base na nova norma.

O criminalista André Callegari pondera que a situação brasileira é mais complexa do ponto de vista da segurança pública, e que o afrouxamento das permissões de posse de arma não pode solucionar a questão.

"No contexto atual, falta policiamento, controle de fronteira, dos presídios. Não adianta armar a população e ter a desordem do outro lado. A pessoa pode agir em legítima defesa, mas o governo mal consegue controlar as facções que dominam os presídios, o armamento nas favelas. Em primeiro lugar, é preciso se preocupar com a segurança pública, antes de armar civilmente a população", enfatiza.

Pierpaolo Cruz Bottini, criminalista e professor de Direito Penal da USP, classifica a alteração como contraproducente. "A ampliação das hipóteses de posse de arma, em especial, nas regiões mais violentas, certamente ampliará também o número de homicídios, de agressões e, em especial, de violência doméstica. É uma política contraproducente, que vai no sentido contrário ao de políticas bem sucedidas de outras países e que acaba por importar o que há de mais agressivo de sociedades como a americana, cujos resultados são de todos conhecidos."

O criminalista e professor de Direito Penal do IDP-São Paulo e da FGV, Conrado Gontijo, se alinha a essa posição. Para ele, o retrocesso é inevitável e comprovado pela ciência. "É falaciosa a alegação de que, com acesso facilitado às armas, o cidadão terá melhores condições de se defender da criminalidade. Ao contrário, estudos realizados mundo afora comprovam que isso não é verdade! Portanto, penso ser um retrocesso a criação desse decreto, que não se pauta em elementos científicos e estatísticos e provavelmente promoverá um aumento nos índices de violência no país", diz, citando o aumento das armas em circulação como um dos elementos que devem levar à concretização desse prognóstico.

Violência específica
No caso particular da violência contra a mulher, Renata Amaral, presidente da associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero, explica que, atualmente, os dados sobre feminicídio demonstram que as armas de fogo são as mais usadas no crimes praticados por policiais. "O que demonstra que, quanto maior o acesso às armas de fogo, maior a probabilidade de uma mulher, em situação de violência doméstica, ser vítima de feminicídio", diz.

Ela diz ainda que, apesar dos defensores da flexibilização justificarem que mulheres também poderão usar das armas para se defenderem, ela acredita que a hipótese não condiz com a realidade da violência doméstica. O mesmo vale para o estupro, crime praticado na maior parte das vezes dentro de casa, por conhecidos ou familiares.

"Essa é uma reação que se espera de quem está pensando no caso de um furto, roubo, em no que denominamos 'crimes da rua', e não em crimes 'de casa'. Na realidade, a situação piora para as mulheres, já que arma de fogo nas mãos dos abusadores se demonstra como mais um instrumento de poder, de coação, para promover a grave ameaça e conseguir praticar o estupro, havendo, no ponto, uma dupla revitimização, e não uma situação de empoderamento como equivocadamente propagado".

Advogada e professora de Direito Penal do IDP, Carolina Costa concorda. "A gente pensa nessa reação da mulher quando ela é surpreendida por um episódio de violência. E o ciclo da violência doméstica não tem nada de surpresa. Muito pelo contrário. Tem toda a ideia da dominação, da violência psicológica, das ameaças, da restrição de liberdade. Então como imaginar que uma mulher tem a coragem suficiente para sacar uma arma e atirar no seu agressor?", questiona.

Carolina Costa entende que como essas armas ficam na casa da pessoa, os crimes que acontecem nesse ambiente serão os primeiros em que elas serão usadas. "Se as mulheres se insurgirem contra qualquer tipo de dominação dentro de casa, podem ter como resposta uma agressão desse tipo", acrescenta. Segundo a advogada, as pesquisas indicam o alto uso de armas brancas, como facas e ácidos, contra mulheres, mas aqueles cidadãos que têm acesso a armas de fogo fazem uso deles também contra as mulheres.

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