Academia de Polícia

Conceito de crime militar não foi ampliado pela Lei 13.491/17

Autores

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

  • Adriano Sousa Costa

    é delegado de Polícia Civil de Goiás autor pela Juspodivm e Impetus professor da pós-graduação da Verbo Jurídico MeuCurso e Cers membro da Academia Goiana de Direito doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

15 de janeiro de 2019, 10h27

Spacca
Como sabemos, a Lei 13.491/17 alterou o artigo 9º, II do Código Penal Militar, fazendo surgir a forçada interpretação de que os crimes da legislação penal especial (tais quais tortura, abuso de autoridade e crime organizado) passaram a ser crimes militares, quando praticados por milicianos no exercício da função, interpretação esta que, se prevalecer, leva à inequívoca conclusão de sua inconstitucionalidade e inconvencionalidade[1]. Todavia, abaixo passaremos a demonstrar que a estranha ampliação do conceito de crime militar não é a leitura mais correta.

O dispositivo antes definia como crimes militares “os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum”. Como se nota, exigia, para que fosse considerado crime militar, que a conduta (i) deveria estar prevista somente no Código Penal Militar (crime militar próprio), ou (ii) deveria estar prevista concomitantemente no Código Penal Militar e no Código Penal (crime militar impróprio — dupla tipicidade).

Nesse sentido, se a conduta estivesse (i) prevista unicamente no CP, ou (ii) prevista simultaneamente no CPM e na legislação penal especial, não havia dúvidas de que se tratava de crime comum. A dupla tipicidade somente englobava previsão concomitante no CPM e CP, nunca abrangeu a legislação penal especial. Destarte, legislação penal militar corresponde ao CPM, enquanto legislação penal comum (ou simplesmente legislação penal) se refere exclusivamente ao CP. Essa lógica não mudou com o advento da Lei 13.491/17.

O artigo 9º, II do CPM agora passou a entender como delitos militares “os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal”. Caiu por terra o requisito da dupla tipicidade (previsão simultânea no Código Penal Militar e Código Penal). Agora basta que a conduta seja incriminada pela legislação penal (comum, e não especial, evidentemente). O problema foram as vozes interpretando em sentido diverso, que “legislação penal” equivale não apenas ao CP, mas a toda a legislação penal especial. Em que pese a jurisprudência ter encampado essa ideia de que a terminologia envolve todas as leis penais do ordenamento jurídico[2], mostraremos que compreende somente o Código Penal, persistindo os delitos da legislação penal extravagante como crimes comuns, ainda que praticados por policiais militares em serviço.

É consabido que o Código Penal Militar possui uma relação umbilical com o Código Penal, só não sendo as redações absolutamente idênticas em virtude da revogação do Código Penal de Hungria (Decreto-Lei 1.004/69), o qual se manteve quase uma década em vacatio legis. Trata-se de desalinhamento ocasional e não desejável das duas legislações. Isso significa que as atualizações legislativas que incidiram sobre a parte especial do CP (por exemplo, pelas leis 12.015/09, 12.550/11, 12.653/12, 12.737/12 e 13.344/16) também precisariam ocorrer no CPM, mas não o foram. Dessa forma, gerou-se um problema de paralelismo, o que acabava por afastar a competência da Justiça Militar nesses casos por não mais haver dupla tipicidade (tipificação penal concorrente entre CPM e CP). Para exemplificar, imagine um policial militar que, em serviço, praticasse o crime de invasão de dispositivo informático de um suspeito (artigo 154-A do CP). Nesse caso, como não houve a atualização legislativa respectiva no código castrense, havia que se apurar o fato pela Polícia Civil e processar na Justiça comum. É justamente para corrigir essa lacuna que serve a alteração promovida pela Lei 13.491/17, dispensando a dupla tipicidade (tipificação concomitante no CPM e no CP), bastando agora a previsão no CP, o que supre a omissão do legislador em adequar o CPM com os novos tipos penais. Essa, certamente, é a leitura que mais se coaduna com a ratio legis.

Além disso, cabe sublinhar as especificidades presentes nas leis penais especiais. A regra geral é que o legislador faça inserir novas condutas incriminadoras sempre em diploma legal principal, visando a consolidar tais tipos penais em um único arcabouço. Essa regra só é afastada quando a conduta ilícita é tão específica (em face da dignidade do bem jurídico) que mereça um sistema de normas estilizadas para tanto (a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei de Racismo e da Lei Maria da Penha). Tais normas compõem sistemas especiais de incriminação, e não legislação penal comum, como o Código Penal. Não parece adequado se compreender como sendo crime militar, por exemplo, a conduta de policial militar que, mesmo em serviço, registra cenas pornográficas envolvendo criança ou adolescente (artigo 240 da Lei 9.503/97), incita a discriminação racial durante seu serviço (artigo 20 da Lei 7.716/89), ou descumpre decisão de medida protetiva de urgência em face de sua mulher (artigo 24-A da Lei 11.340/06). É dizer, a expressão legislação penal não abarca a legislação penal extravagante. Quando o legislador quis conferir a punição de condutas especiais (elencadas em leis penais específicas) em face da Justiça Militar, inseriu expressamente no Código Penal Militar. Esse é o caso do tráfico de drogas (artigo 290) e da embriaguez ao volante (artigo 279).

Em adição, vale destacar que a própria estrutura do artigo 9º, II, do CPM só admite enquadrar como crime militar a conduta praticada contra a estrutura militar ou contra pessoas físicas. Esse dispositivo dificulta demasiadamente a incidência de leis que tutelam bens jurídicos espiritualizados (como ordem tributária, saúde pública, meio ambiente, segurança viária e incolumidade pública). Isso já demonstra que a estrutura dos crimes militares não foi idealizada para abarcar objetos jurídicos pulverizados. Nesse sentido:

Muito embora se possa cogitar, em tese, da possibilidade de deslocamento de delito ambiental para a Justiça Militar, em se tratando de militar da ativa, tal delito teria, obrigatoriamente, de se enquadrar na hipótese da alínea e do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar que demanda seja o delito praticado contra o patrimônio sob a administração militar, já que todas as demais alíneas do referido inciso II descrevem crimes cometidos contra pessoas físicas[3].

De mais a mais, cabe pontuar a necessidade de respeito à terminologia empregada ordinariamente no Código Penal e no próprio Código Militar. O CP, no artigo 12, deixa claro que suas regras gerais se aplicam a fatos incriminados por lei especial, salvo se esta não dispuser de modo diverso. Já o CPM, no artigo 10, inciso III, constou que “os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum ou especial”, e no inciso IV consignou que “os crimes definidos na lei penal comum ou especial”. Fica bem nítido que, quando o legislador quis abranger a legislação especial, fê-lo de maneira expressa.

Por fim, é de se grifar que a competência penal militar não pode ser interpretada como sendo a regra, mas como exceção. Desarrazoado, portanto, o excessivo alargamento da Justiça castrense por mera estratégia hermenêutica. Especialmente ao se considerar que tanto o Supremo Tribunal Federal[4] quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos[5] rechaçam a indevida ampliação da jurisdição militar, que só deve atingir condutas contrárias a deveres estritamente militares (e não aqueles ligados à atuação na segurança pública, atividade de natureza civil).

Por todos esses argumentos, não soa correto ou proporcional ampliar assustadoramente o conceito de crime militar por mera ginástica interpretativa, ignorando a relação de especificidade da legislação penal especial em face da legislação penal comum, e a própria terminologia historicamente empregada no Código Penal e no Código Penal Militar. Transformar em regra a excepcional atuação da Justiça Militar, em pleno século XXI (quando se avolumam iniciativas de defesa dos direitos humanos), é um atentado contra o Estado Democrático de Direito.


[1] HOFFMANN, Henrique; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Investigação e competência de crimes militares. In: FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 233.
[2] STJ, RHC 83.586, Rel. Mun. Reynaldo Soares da Fonseca, DJ 11/05/2018.
[3] STJ, CC 162.248, Rel. Min. Reynaldo Soares das Fonseca, DP 04/12/2018.
[4] STF, RE 122.706, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 21/11/1990.
[5] Corte IDH, Caso Castillo Petruzzi e Outros vs. Perú, Sentença de 30/05/1999; Caso Nadege Dorzema e Outros vs. República Dominicana, Sentença de 24/10/2012; Caso Radilla Pacheco vs. México, Sentença de 23/11/2009; Caso Vélez Restrepo e Familiares vs. Colômbia, Sentença de 03/09/2012; Caso Arguelles e Outros vs. Argentina, Sentença de 20/11/2014.

Autores

  • é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com

  • é delegado de Polícia Civil de Goiás, doutorando em Ciência Política pela UnB, mestre em Ciências Políticas pela UFG e professor da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, do Senasp e do Cers. Membro da Academia Goiana de Direito.

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