Opinião

Olavo de Carvalho faz leitura absolutamente errada de Ronald Dworkin

Autor

  • Gilberto Morbach

    é doutorando e mestre em Direito summa cum laude pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos como bolsista do CNPq editor do Estado da Arte (Estadão) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Iris Murdoch Society.

13 de janeiro de 2019, 5h25

1. Introdução: o que queremos (e o que não queremos)
Olavo de Carvalho é uma figura controversa. É difícil defini-lo: qualquer simples menção a seu nome enseja, de imediato, reações tão apaixonadas quanto antagônicas: para uns, referência intelectual, guia do pensamento da nova direita brasileira; para outros, uma caricatura, um autor folclórico adepto de todo tipo de teorias da conspiração.

A BBC define bem: “[P]rofessor de filosofia sem jamais ter concluído um curso universitário e adepto da teoria de que a ‘a entidade chamada Inquisição é uma invenção ficcional de protestantes’, Carvalho acumula desafetos com a mesma intensidade com que é defendido por seus admiradores”.

Ame-o ou ridicularize-o, é impossível ignorá-lo: sua influência sobre os atuais rumos da política nacional é inegável. “Fez” dois ministros e gente do segundo escalão do governo Bolsonaro.

Vejamos: Filipe Martins, assessor internacional de Bolsonaro — para quem “[o] feminismo é só um instrumento de poder de esquerda” —, é seu fã declarado.

Ernesto Araújo, novo chanceler — para quem o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein seria um precursor das teorias desconstrucionistas pós-modernas —, diz que a “providência divina” uniu as ideias de Olavo de Carvalho ao patriotismo de Jair Bolsonaro.

Ricardo Vélez Rodríguez, novo ministro da Educação — para quem os brasileiros têm sofrido, por meio do MEC, uma “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista” —, foi indicação direta de Carvalho.

Não pretendemos, aqui, afirmar uma falsa neutralidade. Não vemos o feminismo como um instrumento de poder da esquerda, além de parecer-nos bizarro alguém dizer que Wittgenstein é um pós-moderno avant la lettre. Também não acreditamos que o MEC seja um órgão de doutrinação marxista de “índole cientificista” (?). Seja como for, não é disso que se trata.

Não queremos, aqui, provar as inconsistências, contradições e extravagâncias subjacentes ao discurso de Olavo de Carvalho; tampouco faremos jogo baixo invocando declarações de Olavo, como a de que Newton era “um burro”; que o leitor julgue por si próprio se o aquecimento global é um fenômeno verdadeiro ou falso, se há ou não uma ameaça globalista internacional, se “[a]lgo na astrologia tem algum fundamento”. Não é isso que queremos discutir.

Tratamos, aqui, da aula de número 432 do COF, “um programa de orientação de estudos filosóficos ministrado pelo filósofo Olavo de Carvalho, no intuito de formar filósofos e não apenas professores de filosofia e consumidores de cultura filosófica”. Pela “urgência do assunto”, Carvalho tornou a aula aberta ao público por meio de suas redes sociais, dispensando-nos do pagamento da mensalidade de R$ 60 de seu curso.

Pela urgência do assunto, decidimos escrever este ensaio.

2. Religion without God: o que Dworkin disse (e o que Olavo diz que Dworkin disse)
Na “aula”, com duração de 45 minutos, Olavo fala sobre aquela que identifica como a nova maneira encontrada pela esquerda para “tomar o poder”: o ativismo judicial, a ser praticado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Carvalho diz que, como a população não vai tirar do cargo “a pontapés” os ministros, que são “criminosos”, ele vai enfrentar intelectualmente aquele que seria o “guru” do STF: Ronald Dworkin.

Somos críticos ferrenhos do ativismo judicial e, por isso, tal “aula” nos diz respeito. Haveria em Olavo um aliado? Porém, ao colocar a culpa na conta de Dworkin, logo vimos que algum jurista mal informado havia informado mal a Olavo, um não jurista. Ao que parece, se Olavo estudou Dworkin, assim o fez lendo alguns autores brasileiros que cometem erros muito parecidos ao que vamos relatar.

Sigamos. Depois de 20 minutos de vídeo, ao longo dos quais passa discorrendo sobre como teria derrotado o “gramscismo” da esquerda brasileira, Olavo, enfim, começa a falar sobre Dworkin — para ele, um “coitado”, “desprezível”, que “não é de nada” e “não sabe o que está falando”. Ficamos a imaginar como Dworkin, um sujeito educado, reagiria a esses impropérios… Mas, de novo, não é disso que se trata.

O livro escolhido por Olavo para o enfrentamento é Religion without God, obra na qual, em linhas gerais, Dworkin defende as teses de que (i) há uma objetividade no valor e que o universo e a vida humana têm valor intrínseco. Nesse sentido, (ii) teístas e ateístas podem compartilhar um comprometimento fundamental que, porque anterior à crença em Deus, transcende suas diferenças; razão pela qual (iii) a liberdade religiosa é derivada do direito à independência ética, e não de uma crença em Deus tout court.

Olavo lê, traduzindo livremente, os parágrafos introdutórios do livro, nos quais Dworkin diz que o compromisso com a realidade independente do valor é anterior à crença em Deus e, portanto, disponível também a ateístas, de modo que (i) ateístas podem também ser religiosos e (ii) a religião como tal não exige, necessariamente, um Deus.

Alguns parágrafos à frente, Dworkin fala sobre os possíveis significados da palavra “religião”. Dworkin ilustra o ponto a partir de decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, que, chamada a interpretar os significados legislativo e constitucional de “religião”, definiu tanto que (i) ateus qualificam-se a objeções de consciência para fins de dispensa de serviço militar e que (ii) até mesmo o “humanismo secular” está incluso na cláusula constitucional de liberdade religiosa.

Segundo Olavo, Dworkin diz que a Suprema Corte assim decidiu com base na ideia segundo a qual “a existência de um deus pessoal não pode, por si própria, fazer diferença à verdade de valores religiosos[1].

É assim que ele justifica a sentença da Suprema Corte”, diz Olavo, que segue dizendo que Dworkin “vira o negócio de cabeça pra baixo”.

O problema é que Dworkin jamais disse ter sido essa a razão de decidir da corte. Não é isso que ele fala no livro. Dworkin afirma, sim, que o valor é independente e anterior à existência de Deus; mas esse é um argumento dele, e ele não o atribui em nenhum momento à Suprema Corte. Os trechos estão separados por 20 páginas. O que Olavo diz é, simplesmente, falso. Quem “vira o negócio de cabeça pra baixo” não é Dworkin.

Olavo diz que, para Dworkin, “o fato de a Suprema Corte ter reconhecido o valor da religiosidade ateística tem valor cognitivo” (?) e que “ela afirma que há valores iguais ou superiores aos da religião”.

Mas ela nunca disse isso”, diz Olavo. É verdade. Mas Dworkin também não. Dworkin nunca disse isso, muito menos atribuiu a afirmação à Suprema Corte.

Se o pensamento de Dworkin com relação à unidade do valor é correto ou não, não vem ao caso. Concorde-se com o argumento ou não, o fato é que, curiosamente, como o próprio título indica, o livro escolhido por Olavo não se trata de uma das obras jurídicas de Dworkin. E, curiosamente, Olavo diz — sem explicar a razão — que a escolha por um livro que não trata sobre o Direito foi “de propósito”.

Parece-nos estranho, uma vez que a “aula” aborda justamente a (suposta) influência do pensamento jurídico de Dworkin sobre o STF no (suposto) projeto marxista de tomada do poder por meio do ativismo judicial. Não faria mais sentido que se enfrentasse diretamente a Teoria do Direito de Dworkin?

Aos 30 minutos de vídeo, Olavo finalmente propõe-se a fazê-lo.

3. Teoria do Direito: o que Dworkin diz (e o que Dworkin não diz)
Em sua “aula” sobre a teoria jurídica de Dworkin, Olavo, paradoxalmente, reserva apenas o terço final à teoria jurídica de Dworkin.

Olavo diz que, para Dworkin, “a função fundamental do juiz não é aplicar a lei, mas interpretá-la”. Com expressão de deboche, Olavo diz que “um texto só requer interpretação se ele não tem um sentido óbvio imediato”. Para ele, quando a lei não é “ambígua” ou “obscura”, só aí o juiz teria de interpretar.

Dizer que a tarefa fundamental do juiz passa pela interpretação do Direito é, segundo Olavo, o mesmo que dizer que “não existe lei, só existe a cabeça do juiz”. E é esse, para Olavo, “o ponto central da filosofia do Dworkin”.

Olavo, nesse sentido, sustenta as mesmas teses do positivismo exegético do século XIX e as mesmas cisões ultrapassadas entre texto e norma, questão de fato e questão de direito. Interpretar é aplicar; não há uma cisão entre interpretação e aplicação. A tradição de separar/cindir os momentos interpretativos em subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi e subtilitas applicandi (conheço, depois interpreto, e só então aplico) insiste em um grau zero de sentido que não existe.

É o que parece fazer Olavo, que diz que, “se tudo requer interpretação, nada tem sentido em si mesmo”; e, se for assim, “você pode entender o que quiser”. É por essa razão que, sobre Dworkin, Olavo diz o seguinte:

Não sei em que sentido Foucault e Derrida influenciaram esse cara, mas parece a mesma coisa”.

Como nosso chanceler vê em Wittgenstein um pós-moderno avant la lettre, Olavo vê em Dworkin um desconstrucionista. Isso já é demais. Nada poderia ser mais falso (para não dizer absurdo).

O desconstrucionismo nega a possibilidade de atribuição de um sentido último verificável em um texto, partindo da ideia de que nenhuma interpretação pode aspirar ao privilégio de ser verdadeira. Dworkin diz exatamente o contrário.

Ou seja, isso pode ser tudo, menos Dworkin. Se há algo que perpassa toda sua obra, todos seus escritos, é precisamente a ideia de objetividade e verdade na interpretação; a ideia de uma resposta correta (é possível ver aqui e aqui, e em qualquer índice sistemático de qualquer um de seus livros). Mais: autores do CLS, escola jurídica crítica norte-americana — essa, sim, influenciada por Foucault e Derrida —, foram adversários ferrenhos da teoria dworkiniana.

Olavo vai além. Para ele, a “suprema sacanagem” é a seguinte:

“Existe uma velha briga entre os adeptos do direito natural e os adeptos do positivismo jurídico. Os adeptos do direito natural acreditam que existem normas objetivas de moralidade, e que o juiz deve interpretar as leis de acordo com essa moralidade estabelecida. Ele não pode aplicar, vamos dizer, ‘mecanicamente’, uma lei que viole a consciência das pessoas. Mas, para o positivista jurídico, só existe aquilo que está na lei escrita. E o Dworkin toma o partido da lei natural. Do direito natural. E ele diz o seguinte: ‘Acima da lei existem os princípios, e tudo deve ser interpretado de acordo com os princípios!’. E que princípios são esses? Para ele, são os princípios da sociedade laica moderna. O politicamente correto, o abortismo [sic], o feminismo, etc., etc., etc.”

Vamos lá.

Primeiro: a definição de Olavo sobre o jusnaturalismo é reducionista e estranha. O que significa dizer que o juiz “não pode aplicar, vamos dizer, ‘mecanicamente’, uma lei que viole a consciência das pessoas”? Mas isso ainda está longe de ser o maior problema.

Segundo: Olavo diz que, para o positivismo, “só existe aquilo que está na lei escrita”. Falso. Derivar de “direito positivo” a ideia de que o positivismo só reconhece a “lei escrita” é ignorar (i) que, desde Austin, no século XIX, o direito judiciário era considerado legítimo; (ii) que, desde Hart, o direito consuetudinário é direito válido e não pressupõe, necessariamente, o reconhecimento judicial para que seja considerado efetivamente jurídico; (iii) que há positivistas contemporâneos que reconhecem a validade jurídica de padrões outros que ultrapassam a “lei escrita”.

Terceiro: é verdade que há quem veja jusnaturalismo em Dworkin, mas essa é uma leitura heterodoxa. A mais absoluta maioria dos intérpretes e scholars entende que sua concepção, law as integrity, não é jusnaturalista.

Quarto: ao início de sua obra, Dworkin fazia uma distinção estrutural entre regras e princípios. Contudo, (i) isso não está em Law’s Empire, mas em Taking Rights Seriously; (ii) Dworkin nunca disse que, “acima da lei, existem os princípios”; os princípios seriam padrões que, ao lado das regras, compõem um sistema jurídico. Finalmente, (iii) a distinção regras/princípios, em dois sistemas, é abandonada pelo próprio Dworkin, em uma visão já antecipada em Justice em Robes e articulada mais claramente em Justice for Hedgehogs.

Quinto: coisas como “abortismo” e “politicamente correto” ficam por conta de Olavo de Carvalho. Dworkin, é verdade, aborda a questão do aborto em Life’s Dominion, mas em nenhum momento afirma que os princípios de moralidade política de determinada comunidade pressupõem, necessariamente, essa concepção interpretativa de direitos individuais. Com relação ao “politicamente correto”, é possível dizer que Dworkin foi, em vida, um dos mais ferrenhos defensores da liberdade de expressão em seu sentido mais abrangente.

4. Considerações finais
A “aula” de Olavo de Carvalho parte de dois truísmos: (i) a esquerda quer tomar o poder por meio do ativismo judicial no STF e (ii) Ronald Dworkin é o teórico que dá sustentação aos ministros do Supremo. Olavo, contudo, não esclarece os fundamentos de sua alegação principal, ignora que o ativismo judicial não é necessariamente de esquerda, nem diz de onde tirou a ideia de que Dworkin é o “guru do STF”.

Para além disso, é possível dividir a aula em três terços.

Carvalho passa o primeiro terço de sua aula falando sobre como derrotou o “gramscismo” da esquerda brasileira. No segundo, fala sobre Religion without God, um livro no qual Dworkin não aborda diretamente seu pensamento jurídico; em meio a isso, recorta parágrafos da obra de forma a atribuir ao autor argumentos que não estão lá.

No terceiro e último terço, o único a tocar no assunto principal da aula — curiosamente, o trecho mais curto (e mais recheado de problemas) —, Olavo de Carvalho comete uma série de equívocos. Apresenta uma visão bastante atrasada acerca da interpretação; demonstra não compreender bem os conceitos de jusnaturalismo e positivismo jurídico; parece não ter lido as considerações de Dworkin sobre os princípios jurídicos e o devido ajuste institucional que sua aplicação exige; e, last but not least, atribui a Dworkin o rótulo de desconstrucionista, uma ideia tão equivocada que chega a ser difícil decidir por onde começar a articular quão absurda ela é.

Subscrever à concepção de Dworkin é tão legítimo quanto rejeitá-la, desde que seja pelo que ela realmente é, e pelas características que tanto ela quanto seu contexto realmente apresentam.

Olavo de Carvalho errou em todas. Se quisesse acertar, deveria ter criticado o realismo jurídico — esse, sim, uma praga para o Direito. Mas Olavo — que, aliás, está no berço do realismo — atirou no padre e errou também a igreja.

E, pior, esqueceram de avisar a Olavo que Dworkin é um inimigo do realismo jurídico. Bingo!


[1] DWORKIN, Ronald. Religion without God. Boston: Harvard University Press, 2013, p. 25.

Autores

  • Brave

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bacharel em Direito pela Universidade Feevale, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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