Opinião

Por que me preocupo com a autoridade do Supremo Tribunal Federal

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11 de janeiro de 2019, 11h58

O professor Lenio Luiz Streck dedicou sua coluna de 3 de janeiro à análise de meu artigo intitulado "A função moderadora", publicado na Folha de S.Paulo, em 22 de dezembro de 2018, o que me deixou muito honrado. Agradeço a oportunidade de poder esclarecer algumas ideias apresentadas no referido artigo que deixaram o professor aparentemente intrigado, assim como refutar uma imputação que entendo equivocada.

O argumento central de minha coluna é que, se o Supremo não restabelecer a sua autoridade como órgão responsável pela guarda da Constituição, corremos o risco de os militares buscarem retomar o papel moderador, por eles ocupado ao longo de nossa acidentada história republicana (1889-1964), conforme a tese do cientista político Alfred Stepan, publicada em 1971. A meu juízo, a eventual retomada do padrão moderador pelos militares seria algo muito ruim para a ordem democrática. Nisso me parece que o professor Streck e eu estamos de pleno acordo. Não é saudável numa democracia constitucional que o comandante do Exército tenha a liberdade de tuitar sobre como deveria o Supremo decidir ou mesmo que o presidente do Supremo Tribunal Federal recrute militares de alta patente para sua assessoria.

O professor Streck se demostra intrigado, no entanto, com o que eu quero dizer ao conclamar o Supremo a lutar pelo restabelecimento de sua autoridade. Essa dúvida leva o professor a fazer uma série de conjecturas sobre as minhas ideias. Pergunta se eu estaria sugerindo que o Supremo deveria abdicar da sua função de guarda da Constituição, assumindo um papel mais pragmático ou mais tolerante com aqueles que a atacam, como uma medida prudencial para preservar sua autoridade, agindo como o bobo da corte de sua alegoria. A dúvida, entretanto, parece ser meramente retórica, pois o professor afirma saber a minha resposta. Para o professor Streck: “o professor Vieira sustenta a tese de que o Supremo Tribunal deve ouvir — ou prestar atenção — a voz das ruas”. O próprio professor Streck alerta que alguém poderia contestar: “mas ele não disse nada disso”; ao que ele reconhece: “Talvez não”. Mas mesmo assim, o professor imputa a mim uma tese que não sustentei no artigo ou ao longo de mais de duas décadas de estudos sobre a Constituição.

Para os que leram meu artigo ou conhecem os meus trabalhos, é bastante claro que desde muito cedo me convenci que não cumpre ao Judiciário tomar decisões a partir de uma ética de resultados, para utilizar a linguagem de Max Weber, consequencialista, para usar os termos dos utilitaristas, ou mesmo populista, em homenagem ao clamor das ruas. O que cabe aos juízes é tomar decisões a partir da melhor interpretação possível da Constituição. Isso decorre não apenas do sistema de separação de Poderes delineado pela nossa Constituição, mas também da convicção de que num regime democrático só deve tomar decisão política quem houver sido escolhido para essa tarefa e puder ser punido pelo eleitor caso este julgue que seu representante não tomou a decisão correta. Juízes não são eleitos pelo povo para que possam fazer escolhas políticas enquanto seus representantes nem podem ser afastados se suas escolhas não agradam aos eleitores. Isso não significa que muitas decisões judiciais não tenham dimensão política ou econômica relevantes que devam ser consideradas, mas a razão peremptória para tomá-las sempre deverá ser jurídica.

Como já expressei muitas vezes, a premissa fundamental do Direito “é que as decisões devem ser uma consequência necessária de uma norma jurídica”. Logo, juízes estão cingidos a se submeter a uma ética de princípios (no caso, o Direito) e não de resultados (consequências econômicas, políticas etc.). Embora a preocupação com as consequências possa se fazer presente em casos que envolvam necessidade de ponderação, por exemplo, ao magistrado cumpre dar ao Direito um status superior e determinante na tomada de decisão. A função do juiz é interpretar e aplicar o Direito. Essa é a sua tarefa na divisão de funções instituída pelo Estado Democrático de Direito. Assim como cabe ao presidente do Banco Central zelar pela moeda ou à autoridade sanitária zelar pela saúde da população, aos juízes cumpre assegurar a integridade do Estado de Direito. No caso de juízes de uma corte constitucional, isso significa garantir a integridade da Constituição. Essa tem sido minha linha de raciocínio desde de um primeiro artigo publicado na revista da USP, em 1991, denominado: "Império da lei ou da corte?"; ou no livro Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política, de 1994. Ainda que ao longo do tempo tenha adquirido uma compreensão mais abrangente sobre as dificuldades e ambiguidades inerentes ao exercício da função judicial, para o bem ou para o mal, não alterei minha percepção básica sobre o papel do sistema de Justiça, em especial, do Supremo Tribunal Federal.

O papel do tribunal é guardar a Constituição conforme a própria Constituição determina. Sua autoridade, entendida como exercício legítimo do poder/dever de guardar a Constituição, deriva da própria vontade constitucional, que lhe conferiu essa atribuição; porém, apenas se consolida/estabiliza na medida em que o tribunal se demonstre persistente e consistentemente capaz de realizar a sua atribuição de forma imparcial, colegiada e dentro de elevados e rigorosos padrões de interpretação e aplicação do Direito. Autoridade, portanto, não deriva da popularidade. Quando uma corte deixa de aplicar o Direito com imparcialidade ou com rigor jurídico, ela coloca em risco sua autoridade. Quando a decisão de um de seus membros se sobrepõe às do colegiado, ela também coloca em risco a sua autoridade, pois essa autoridade lhe foi atribuída para ser exercida colegiadamente, e não por seus membros, individualmente. Por fim, uma corte perde autoridade quando se omite em cumprir sua função de guardar a Constituição, ou seja, quando capitula em face de poderes e ações que agridam a Constituição. É fato que ao proferir uma decisão impopular um tribunal pode até perder o respeito ou a confiança da maioria, mas, se a decisão foi adequadamente tomada, a corte simplesmente reforçou sua autoridade, ainda que tenha se tornado menos popular.

Não entrarei na discussão sobre as dificuldades que surgem no cumprimento desse poder/dever e sobre os desacordos entre pessoas bem informadas e bem-intencionadas sobre a melhor forma de interpretar a Constituição. Digo apenas que não me vejo como um jurista consequencialista, como parece sugerir o professor Streck. Meu livro Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, de 1999, assim como Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, 2017, são expressão de minha orientação filosófica, que muito se distancia daquela concebida pelo professor Richard Posner. Isso para não falar de décadas de atuação como advogado de direitos humanos. Assim, não faço jus a atribuição de ser a projeção desse importante teórico do law and economics em terras tupiniquins. Há no Brasil excelentes candidatos a esse posto que me foi injustamente atribuído. Candidatos pelos quais, aliás, tenho enorme respeito intelectual, reconhecendo a grande contribuição que aportam ao nosso ambiente intelectual.

O que imagino deva causar algum aperreio no professor Streck ao tentar analisar o meu método de trabalho é que, embora eu tenha uma visão normativa muito clara sobre qual deve ser o papel da Justiça, tenho me dedicado ao longo de décadas a analisar o modo como os magistrados de fato se comportam ao tomarem suas decisões. Nesse sentido, fui muito influenciado pela minha formação em Ciências Sociais e por diversos autores do chamado realismo jurídico, a começar por Oliver Wendel Holmes e de forma mais intensa por Jerome Frank (autor da importante obra jusrealista Law and the modern mind). Autores de matizes ideológicas tão distintas como Alberto Torres, Oliveira Viana, Victor Nunes Leal, Orlando Gomes, Santiago Dantas ou Raymundo Faoro também me marcaram profundamente, exatamente pela busca de articular a análise da realidade com a análise normativa.

Tentar compreender a realidade, no entanto, não significa atribuir a essa realidade força normativa, apagando a normatividade jurídica. É do confronto entre a atividade interpretativa que determina qual a conduta imposta por uma norma ou a competência por ela estabelecida (análise jurídica) e o estudo do comportamento de fato realizado por quem é responsável por aplicar o Direito (ciência social) que emito juízos críticos ou proponho soluções institucionais que, a meu ver, fortaleceriam o Estado de Direito, a democracia e os direitos fundamentais, pilares estruturantes de nossa ordem constitucional. Evidente que cometo falhas nas diversas etapas desse processo e acolho de bom grado as correções. De qualquer forma, esse tem sido prevalentemente o meu método de trabalho, que pode ser racionalmente aferido, controlado e criticado pelos meus pares na academia e meus leitores em geral.

Como tenho reiterado em publicações acadêmicas, conferências e também em artigos e entrevistas à imprensa, o excesso de atribuições conferidas ao Supremo Tribunal Federal, as características do próprio texto constitucional, em especial extensão e abertura, assim como a ausência de um procedimento mais racional de deliberação, têm atrapalhado a tarefa do Supremo de exercer a sua função de guarda da Constituição.

O excesso de demandas julgadas pelo tribunal todos os anos dificulta que os ministros deliberem com mais cuidado e, consequentemente, não favorece a produção de uma jurisprudência mais clara e consistente, que sirva de guia para as demais esferas da Justiça, para os demais Poderes da República, assim como para os próprios cidadãos. Tenho alertado, desde meu texto sobre a supremocracia, que é de 2008, para o problema da erosão da colegialidade no âmbito do Supremo e para a correlata exacerbação das individualidades, pela qual as atribuições do Supremo passaram a ser absorvidas pelos seus membros em atuação individual. Esse movimento gera risco de instabilidade jurídica, assim como dificulta que a lei seja aplicada de forma geral, o que é um enorme problema em sociedades que se pretendem pautadas pelo princípio da igualdade. Além disso, no caso de um tribunal que tem por tarefa dar a última interpretação sobre questões de natureza constitucional, que afetam muitas vezes a vida de toda a comunidade, não se deve admitir que essa competência quase “sobre-humana”, como diria Rui Barbosa, seja exercida por juízos monocráticos, por melhor preparados e bem-intencionados que sejam os magistrados.

Daí a minha insistência para a necessidade de se reduzir o número de casos julgados pelo tribunal, assim como para a reformulação de seus procedimentos, de forma a reforçar a colegialidade e qualificar o processo deliberativo, favorecendo a produção de decisões mais coesas e consistentes. Parte dessa tarefa é do próprio tribunal. Quando escrevo que cabe aos ministros do Supremo agir para restabelecer a autoridade do tribunal, a última coisa que estou propondo é que capitulem em face a militares, a interesses econômicos ou mesmo ao clamor das ruas, ao contrário do que supõe a leitura do professor Streck. Mas, sim, que se empenhem, como colegiado, em exercer, com todo o rigor jurídico e imparcialidade, a missão que lhes foi atribuída pela Constituição.

Na discussão da execução provisória das sentenças criminais proferidas em segundo grau me manifestei, desde o primeiro momento, de maneira contrária à decisão que prevaleceu no Supremo, embora reconhecendo a complexidade jurídica do caso, assim como o equivocado tratamento do tema pela Constituição. Também tenho enfatizado que o tribunal não pode se esquivar de enfrentar a questão, o que torna inadequado, portanto, o comportamento do atual presidente do tribunal, assim como da sua antecessora, de não colocar a questão em julgamento para ser novamente apreciada, uma vez que uma voz que compunha a antiga maioria deixou público que mudou de opinião. Isso não me impede, no entanto, de também manifestar meu desacordo com decisões monocráticas que afrontem o Plenário, ainda que concorde com a questão de fundo veiculada nessas decisões ou tenha o mais amplo respeito e admiração pelos ministros que as proferiram, como no caso do ministro Marco Aurélio. Minha crítica, portanto, se dirige a um tribunal, composto de 11 membros, que não tem dado conta, em muitas circunstâncias, de resolver questões jurídicas relevantes de forma colegiada, permitindo que a fragmentação de sua prestação jurisdicional seja utilizada politicamente ou, o que é pior, favoreça aqueles que querem reduzir a sua autoridade como guarda da Constituição, de forma a flexibilizar os limites constitucionais ao exercício do poder.

Por fim, aproveito esse diálogo para justificar porque utilizo o conceito antigo de função moderadora para me referir ao papel do Supremo Tribunal Federal. A ideia de que o Supremo Tribunal Federal pudesse assumir essa função, que não havia sido desempenhada com neutralidade pelo imperador, no marco da Constituição de 1824, foi proposta por Rui Barbosa no início da República. Para Rui, somente ao Direito caberia a função moderadora, mas não um direito abstrato, senão aquele expresso pelo Supremo Tribunal Federal, em conformidade com a Constituição. Daí decorre a ideia de Rui de que ao Supremo caberia o papel de herdeiro da função moderadora numa nova república democrática. Conforme propôs Rui Barbosa, em passagem de 1909 (citada por Raymundo Faoro), “a soberania que é o poder, tem de ser limitada pelo direito, que é a lei. Daí a necessidade, que se impõe à democracia, especialmente no regime presidencial, de traçar divisas insuperáveis aos três órgãos da vontade nacional: ao administrativo, ao legislativo, ao próprio constituinte, mediante estritas condições postas à reforma constitucional. E a justiça é a chave de todo este problema, o problema da verdade republicana. Mas a justiça à americana, árbitro da interpretação constitucional, oráculo da validade das leis, escudo dos indivíduos, à associação, aos Estados contra os excessos do mandonismo em todas as suas violências ou trapaças: o dos presidentes desalmados, o das legislaturas corruptas, o dos bandos audaciosos, o das satrapias insolentes” (Os Donos do Poder, 4ª Edição, p. 748). Rui, que esperava tanto do Supremo, irá se decepcionar com a atuação da corte, anos depois. João Mangabeira, seu discípulo, dirá que o Supremo foi o órgão que mais falhou na república. Para Faoro, no entanto, esse é um juízo muito rigoroso. “Não foi o Supremo Tribunal o órgão que falhou à República, mas a República que falhou ao Supremo Tribunal. A missão política que ele deveria representar [de herdeiro do Poder Moderador] estava destinada a outras mãos, alimentadas de forças reais e não de papel.”

Em 1988, ao Supremo novamente foi conferida uma posição de proeminência em nosso sistema político, depois de amesquinhado pelo regime militar, ao receber amplos poderes para guardar uma Constituição tão ambiciosa. Com erros e acertos, como qualquer instituição humana, o tribunal exerceu essa função. Nos últimos anos, em face do excesso de atividades, do agravamento da crise política, mas também em função de seus próprios desacertos, a autoridade do tribunal passou a ser duramente abalada, o que é particularmente preocupante num momento em que o poder é ocupado por algumas lideranças que abertamente expressam hostilidade a pontos centrais do pacto constitucional de 1988, em especial aos direitos de grupos vulneráveis. Essa a razão que me leva a estar tão preocupado com a autoridade do Supremo.

Mais uma vez agradeço a oportunidade oferecida pelas questões suscitadas pelo professor Streck para esclarecer minhas ideias e preocupações.

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