Opinião

Vive-se no Brasil uma confusão entre conservadorismo e obscurantismo

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10 de janeiro de 2019, 5h19

Avanços civilizatórios não têm bandeira, mas há quem os veja como peças de proselitismo ideológico. Laicidade do Estado, presunção de inocência, direito de defesa a todos, respeito às diferenças de gênero, raça e credo e liberdade de imprensa são conquistas da humanidade, mesmo que identificadas como estandartes da esquerda. No caso brasileiro, tal impressão não será desconstruída enquanto os representantes de uma dita direita não pararem de negá-las e até de combatê-las.

O presidente da República é um político de direita, e esse enquadramento no espectro ideológico, a princípio, não o desabona. A ser levada em conta a conceituação contemporânea de direita e esquerda, muito bem descrita por Norberto Bobbio, o político de direita é aquele que enxerga o indivíduo como construtor do seu próprio futuro, atrelado à realidade do mercado e livre das mãos do Estado. Segundo Bobbio, de outra parte, o político de esquerda vê na desigualdade o mais grave dos males da nação, o qual não será superado sem uma forte atuação estatal contra injustiças sociais.

Poder-se-ia encontrar outras terminologias que substituíssem “direita” e “esquerda” na diferenciação dos dois conjuntos de pensamento, mas o mundo inteiro, principalmente a Europa, continua a usá-las para classificar os políticos conforme suas prioridades.

Em sua obra, o filósofo italiano não julga um lado melhor ou pior que outro — diferencia-os apenas, destacando que ideólogos de um e de outro buscam, cada um à sua maneira, um mundo melhor. Esse debate, contudo, dá-se no campo da razão, da lógica, muito longe do fundamentalismo que parece prevalecer no governo do presidente Jair Bolsonaro e fora dele.

Combater e eliminar vícios de governos anteriores não pode significar destruir avanços cujos responsáveis não são políticos corruptos de esquerda ou direita, mas representantes da sociedade brasileira em toda sua diversidade, que escreveram a Constituição de 1988 — o mais importante marco civilizatório da história do Brasil.

O que se vê nos primeiros dias do atual governo, confirmando a retórica de campanha, são atos e manifestações que não raro representam, muito mais que anti-esquerdismo, atentado contra conquistas irrenunciáveis.

Para onde caminha um país cujo ministro das Relações Exteriores nega o aquecimento global, atribuindo a relevância conferida ao tema a uma “conspiração comunista”? Se as declarações do chanceler chocam pelo grau de desconexão com a realidade, o que dizer das palavras da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, para quem “menino veste azul, menina veste rosa”?

Vive-se no Brasil uma confusão entre conservadorismo, nem sempre deletério, e obscurantismo, este oposto à evolução humana. Ao longo da história, vimos brilhar por estas terras personalidades identificadas com o conservadorismo, mas nem por isso próximas das trevas.

Lamentavelmente, os conservadores do século XXI parecem ter como inimigo qualquer tipo de sofisticação intelectual na busca de solução para os nossos problemas: se a criminalidade campeia, que o povo se arme; se a Constituição tem falhas, que seja ignorada; se manifestações populares por vezes descambam para o vandalismo, que sejam proibidas (e classificadas como terrorismo); se um ministério, como o do Trabalho, desviou-se de sua finalidade, que seja simplesmente extinto.

É verdade que não nos desenvolvemos conforme queríamos, fomos engolidos pela corrupção, o fisiologismo, o clientelismo. O Estado brasileiro tornou-se instrumento a serviço de grandes conglomerados privados, porém nossa face trágica não pode obnubilar boas experiências nascidas aqui, e a Justiça do Trabalho, contemplada no artigo 92 da Constituição Federal, é uma delas.

A posição anunciada pelo presidente da República quanto ao tema confirma na pessoa dele o desprezo pela racionalidade e o exercício intelectual: se a legislação trabalhista é protecionista em excesso, se há litígios demais nesse campo, extinga-se a Justiça do Trabalho (e cite-se como modelo os Estados Unidos, onde tal instância não existe. Só rindo!). Não importa que a área trabalhista exija conhecimentos específicos de advogados e magistrados, e importa tanto menos que a história das relações de trabalho no Brasil justifique a existência de tribunais especializados.

Não conheço o autor desta frase, popular e atual, mas merece aplauso: “Para todo problema que parece complexo, há uma solução simples. Que não funciona”.

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    é advogado, professor, doutor e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi vice-presidente da OAB-SP e presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo (Caasp).

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