Opinião

A injustiça do modelo americano de plea bargain

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

10 de janeiro de 2019, 12h43

Spacca
Se não bastassem uma série de motivos incompatíveis com o nosso sistema processual penal para importar um modelo americano, ainda teríamos que suportar vários outros que são criticados no próprio país de origem. A ideia nefasta de importação de modelos sem uma sistematização adequada principalmente à nossa constituição federal deve ser rechaçada de plano.

É fato que nos Estados Unidos a severidade das penas é alta e o período de encarceramento é de cinco a dez vezes maior do que na França ou na Alemanha por casos similares. Além disso, alguns estados americanos adotam a regra do “three strikes”[1], na qual o sujeito que comete o terceiro delito pode ter prisão perpétua (um castigo especial para a reincidência não necessariamente pelo mesmo crime). Isso para demonstrar que a importação de um modelo traz regras implícitas não ditas por seus defensores. Num sistema prisional falido como o nosso, é fato que teríamos um colapso na administração carcerária, aliás, fato esse que já existe.

Sobre o sistema propriamente dito de negociar a pena, é a própria doutrina local que o critica, pois refere que o sistema de justiça penal não poderia sobreviver se a maioria dos acusados exigissem um processo para provar a sua culpa além da dúvida razoável, porque muitas das politicas e práticas americanas – incluindo grande parte do Direito Penal substantivo – estão desenhadas para facilitar a negociação da pena induzindo aos processados a renunciar ao processo e admitir a sua culpa. Por esse mecanismo se conseguiu o efeito esperado: aproximadamente 95 de cada 100 casos decididos foram por admissão de culpa[2].

Só por esses fatos acima já se poderia dizer que a importação de um sistema de acordos é falho e não se adaptaria ao Brasil. Além disso, é claro que o procedimento abreviado é célere e oferece uma pronta resposta à sociedade, mas a indagação é de outra natureza: ele é justo? A resposta rápida significa que a missão do Direito Penal foi cumprida? A resposta é negativa. A suposta eficiência de rapidez do sistema penal não atende ao justo processo. Em vários casos é notório que se o processo fosse até o final não haveria prova para a condenação, mas isso só é possível com a devida instrução e não com um juízo abreviado de negociação.

A negociação da pena transfere o poder de absolver do juiz ao representante do MP, que, nesse caso, já negocia diretamente não mais a absolvição, mas tão-somente a admissão da culpa e da pena que será aplicada. Assim, suprime-se o mecanismo mais importante que é o devido processo legal. Ademais, fere-se mortalmente a presunção de inocência (princípio tão caro insculpido na CF), porque, sem o devido processo presume-se já a culpa do acusado que irá negociar algum tipo de pena.

Nos Estados Unidos o Ministério Público tem diversas formas de persuadir os acusados para que se declarem culpados e o aumento de criminalização lhes proporciona uma das armas mais poderosas. Os códigos penais possuem muitos delitos novos que se sobrepõem entre si, frequentemente desenhados para superar os problemas que geram as provas confiáveis. Alguns desses novos delitos incluem penas severas ainda quando não pareçam ser delitos especialmente graves. Na medida que estes delitos contenham alguns elementos distintivos[3], nenhuma lei ou doutrina impede automaticamente que o Ministério Público apresente simultaneamente várias acusações, ainda que desde a perspectiva intuitiva de um leigo o acusado tenha cometido um só delito[4].

Nesse sentido, a estratégia para negociar reside na acumulação de fatos imputados ao acusado. Assim, esta soma de delitos permite que o Ministério Público empilhe ou acumule, é dizer, que apresente várias acusações contra o acusado pela mesma conduta. Obviamente, a severidade potencial da sentença que um infrator enfrenta é muito maior quando se apresentam muitas acusações contra si[5].

Desse modo, o Ministério Público necessita fazer uma ameaça séria de que essas acusações seriam impostas se os acusados se decidem a sustentar sua inocência. Para que essas ameaças alcancem o seu objetivo e induzam declarações de culpabilidade, os castigos que se oferecem na negociação da pena devem ser menores, isto é, devem ser consideravelmente menos severos que aqueles que seriam impostos no processo normal[6].

Nessa singela explicação da estratégia do modelo americano fica fácil entender porque tantos acordos são aceitos. Evidente que o sujeito que tem vários crimes imputados preferirá admitir a culpa de algum delito que resultará em menos penas do que o acúmulo de delitos caso haja o processo regular. Porém, a presunção de inocência é letra morta e o devido processo legal com a paridade de armas também. O fato é que o temor imposto ao acusado o força praticamente a aceitar o acordo. Imagine-se isso adotado em nosso ordenamento processual, no qual a maioria atingida pelo sistema penal sequer o entende ou não tem capacidade de refletir sobre as consequências de aceitação de tal proposta. Ademais, há uma hiperinflação de presos. Com os acordos previstos, teríamos provavelmente uma multiplicação de ingressos no sistema carcerário.

Segundo HUSAK, poucos autores bem informados estão dispostos a sustentar que a negociação da pena é uma instituição justa. Essa prática foi denunciada como “absolutamente e fundamentalmente imoral”, “um desastre”, “injusta e irracional” e “indignante”. Presumivelmente, a negociação da pena sobrevive porque ninguém sabe como o sistema penal americano poderia funcionar sem ela. A injustiça mais patente se produz quando aqueles que admitem a responsabilidade não violaram a lei de nenhum modo (não cometeram delito), mesmo que seja impossível saber o percentual dos que são, de fato, inocentes das acusações. O que se sabe, entretanto, é que a negociação da pena contém características estruturais que fazem que se encontre “maravilhosamente desenhada para assegurar a condenação de inocentes”[7].

Dito tudo isso, merece o modelo acolhida no Brasil? A resposta só pode ser negativa. É certo que a justiça negocial importou em grandes avanços para pequenos delitos onde não se impõe a pena privativa de liberdade como nos juizados especiais criminais. Porém, a negociação através de um modelo importado onde há fatos graves apontados na estratégia adotada para alcançar o objetivo final do encarceramento sem o devido processo legal não merece acolhida em nosso sistema. O devido processo legal e a presunção de inocência são direitos inalienáveis do cidadão previstos na Carta Política e, renunciar a eles, seria renunciar às regras mínimas de garantias de um Estado Democrático de Direito.


[1] Tradução livre. Three-strikes law. Prisão perpétua para o acusado que for condenado pelo terceiro crime. Ver Black’s Law Dictionary. St Paul: West, p. 758.

[2] HUSAK, Douglas. Sobrecriminalización. Los límites del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 65.

[3] No Brasil isso impediria o conflito aparente de normas e, principalmente, a aplicação do princípio da consunção.

[4] HUSAK, Douglas, ob. Cit., p. 66.

[5] HUSAK, Douglas, p. 66.

[6] HUSAK, Douglas, p. 66.

[7] HUSAK, Douglas, p. 67/68.

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