Estado e sociedade

Acordo de leniência deve ser usado para acelerar investigações, diz Valdir Simão

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10 de janeiro de 2019, 8h30

O acordo de leniência não deve ser usado como instrumento de dano, e sim como meio para dar celeridade ao processo de investigação e punição das empresas. Essa é a avaliação do advogado Valdir Simão, ex-ministro do Planejamento e da Controladoria-Geral da União. Ele participou do seminário “O interesse público e as novas relações entre Estado e empresas”, organizado pela ConJur, com apoio do escritório Warde Advogados, no final de novembro passado.

Humberto Eduardo de Sousa
Acordo de leniência não deve ser usado como instrumento de dano, defende Valdir Simão.
Humberto Eduardo de Sousa

De acordo com Simão, é preciso acelerar as colaborações de empresas. A seu ver, o processo desde o início da cooperação até a aplicação da multa deve ser de meses, não anos, como vem ocorrendo em alguns casos.

Na visão do ex-ministro, há uma overdose de controle. "Precisamos que haja mais qualidade, assim haverá controle que estimule o comportamento adequado. Não vamos eliminar a corrupção, mas vamos saber o que fazer."

Segundo ele, para empresas que vivem de contratos com o Estado, a declaração de inidoneidade — e, com ela, a proibição de contratar com o poder público — equivale à pena de morte.

"É duro, mas é justo. A postura que se espera do Estado no combate à corrupção também é essa. O castigo deve ser pesado o bastante para ressarcir os cofres públicos, proteger a administração e, sobretudo, ensinar os malfeitores ,  atuais ou potenciais, que o crime não compensa. O rigor da lei e da sua aplicação é essencial para desestimular empresários e executivos a seduzir funcionários públicos  ou se deixar seduzir por eles."

Entretanto, disse, o propósito do Estado não se resume a aplicar punições, sobretudo quando a pena produz efeitos adversos no campo econômico. Punir empresas significa, em última análise, descartar riqueza.

"As empresas representam um interesse em si. Geram receita, pagam impostos, criam empregos e avançam o desenvolvimento do país. Quando lucram e expandem seus negócios, estimulam concorrência, com o ingresso de agentes nos mercados. É preciso que tenham sucesso para que a economia do país cresça."

O Brasil já possui os instrumentos normativos e as instituições responsáveis para o enfrentamento à corrupção, avaliou Simão. "No meu entendimento, não é um bom momento para mudar lei, porque as pessoas têm uma percepção de que falta um controle. Não precisamos de mais controle, precisamos de um controle de mais qualidade, com um controle integrado."

Para Simão, deve-se falar de um conjunto de atuação articulada de órgãos. "Isso, claro, respeitando o direito que a empresa investigada tem de virar a página em acordos de leniência e receber em troca uma pena mais branda, por exemplo", destacou.

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Leia a transcrição:

Boa tarde a todos, saudar aqui meus colegas de painel na pessoa da ministra Grace, aproveitar a oportunidade para reconhecer o excelente trabalho que ela fez na frente da AGU, que nos orgulha a todos, e desejar muito sucesso aqui para o André, que assume o bastão a partir de 1º de janeiro. Eu gostaria de fazer minha intervenção comentando dois assuntos, objetos do nosso tema. E aproveitando também a fala de todos que me antecederam, que foram muito importantes. O primeiro aspecto da relação do Estado com a sociedade, notadamente com as empresas, quero começar fazendo aqui um registro, o presidente Toffoli comentou aqui da dificuldade de regularização de bens comprados no exterior… A Receita Federal tem um aplicativo, vou defender a minha casa, não? A Receita Federal tem um aplicativo chamado Viajante, que no exterior você pode já registrar o bem, gera o Darf e já paga no exterior, e vai se dirigir na Alfândega a Bens a Declarar e provavelmente será o único da fila, então é muito rápido. Isso aconteceu comigo, a grande dificuldade é que o agente de alfândega exige que imprima todos os documentos que você gerou eletronicamente e já transmitiu, ou seja, o Estado é invencível em matéria de burocracia, e todos os dias alguém tem uma ideia nova para controlar alguém nesse país. Isso impacta o ambiente de negócios, impacta na vida do cidadão.

Essa relação, o ministro Toffoli falou de dois pilares para uma nova relação do setor público com o setor privado. A transparência, que é central, e o acesso. A transparência eu acredito que nós estamos conquistando no dia a dia e cada vez mais, seria impossível esconder as relações que as autoridades têm com o setor privado. A acessibilidade é algo um pouco mais complicado, porque você não tem condições de dar para cada empresa ou para cada cidadão o acesso a cada um dos escaninhos do governo, está aqui o Guilherme, que é o presidente da Abrig, e sabe a luta, eu acompanho a luta dele para a regulamentação do lobby. Ela não vai permitir, não pode permitir ou trazer para essa relação uma burocracia que também seja impraticável. No setor privado a gente está vivendo um pouco isso com os programas de integridade ou de compliance, que eu costumo chamar de contábeis. O Vagner sabe muito bem disso. Nós estamos vivendo uma fase em que as empresas, além de serem corretas e éticas, elas têm que parecer corretas e éticas, então a demonstração, os registros contábeis são importantes. No setor público também, quer dizer, nós precisamos migrar, em algum momento, para um patamar de relação que todos no setor público e no setor privado ajam em conformidade com a lei e com a ética e independentemente de código de conduta. Aí nós passamos para esse modelo cultural que se referiu a ministra Grace Mendonça.

Então, até lá nós temos um longo caminho pela frente, e mexer na legislação, o cuidado que nós temos que ter é de não vir mais controle, um controle irracional. Nós tivemos uma overdose de controle, nós precisamos é de um melhor controle, mais integrado, mais coordenado, mais ativo e que possa ser um controle que estimule o comportamento adequado por parte do cidadão, das empresas e dos agentes. Falando um pouquinho da Lei Anticorrupção, eu queria… Nós estamos cansados de diagnósticos, mas eu acho importante fazer um registro aqui para entender um pouco do que eu vou falar. Eu penso que nós temos dado um valor excessivamente grande, maior do que ele merece, ao acordo de leniência. A Lei Anticorrupção vem e traz a responsabilidade objetiva das empresas em um conjunto de práticas ilícitas relacionadas à corrupção, mas também em fraudes de licitações e contratos. Nós demoramos muito, o poder Executivo federal demorou muito para regulamentar a lei, foram 14, quase 15 meses da data da vigência da lei. Se nós tivéssemos regulamentado a lei no início talvez… E havia propostas inclusive do Tribunal de Contas, de qual era o caminho a ser perseguido nos acordos de leniência, talvez nós tivéssemos sensibilizado os primeiros termos de compromisso que o Ministério Público fez para essa nova normatização. É importante dizer que até esse momento não tínhamos ainda na administração pública federal uma cultura muito forte de apuração de responsabilidade empresarial, de punição de empresas, apesar de estar na Lei 8.666/1993, declaração de idoneidade, nós declarávamos empresas inidôneas aquelas pequenas, a de cima nunca foi alcançada. O próprio Tribunal de Contas, as declarações de idoneidade feitas pelo Tribunal de Contas, desde 1992, da lei Orgânica para cá, também eram pequenas empresas. Quando os primeiros processos de responsabilização da Lava Jato foram instaurados, não tinha… Se não me engano, não havia nenhum processo de tomada de contas especial contra empresas, contra as quais estão os processos, que tivesse transitado em julgado administrativamente no tribunal. Portanto, você não tinha codificação adequada de dano.

E olha que coisa interessante, uma das principais sanções que uma empresa que praticou um ato ilícito pudesse receber do Estado é a declaração de idoneidade, que é de dois anos, após esse período a empresa pode pedir reabilitação. Ou de cinco anos, quando declarada pelo tribunal. Já se vão quase quatro anos dos processos de responsabilização. As empresas já pagaram a pena duplamente. Porque desses quatro anos elas não estavam legalmente proibidas de participar de licitações, mas foram excluídas de cadastros de empresas estatais e não puderam contratar com o poder público. Continuaram prestando serviços, mas o sistema financeiro fechou as portas, fechou as torneiras de financiamento. Ou seja, declaração de idoneidade não foi feita, mas já pagou a pena.

O que o acordo de leniência traz de novidade? O grande equívoco, na minha leitura, é ter utilizado o acordo de leniência como instrumento de dano. Ele deve ser um instrumento de dar celeridade ao processo de investigação e sanção da empresa, mediante colaboração. Aplicação de penalidade, a multa da lei anticorrupção ou uma declaração de idoneidade, compete a cada autoridade, a autoridade máxima do órgão lesado. Ora, essa autoridade pode não aplicar sanção, pode não instaurar o processo de responsabilização, mas ela não pode considerar a colaboração da empresa para reduzir o valor da multa a ser paga? Por que não? Eu vou além, o meu receio que em algum momento nós não tenhamos capacidade operacional de processar todos os acordos de leniência centrados numa agência só. Seja a CGU, a quem a lei, corretamente, defendendo mais uma vez a casa que eu estive, atribuiu competência. Ou a AGU ou o Ministério Público. Eu acho até que o acordo de leniência pode ser o instrumento que deveria ser, poderia ser descentralizado a cada órgão que tenha sido lesado, mediante o qual, o órgão negocia o valor da multa a partir da colaboração, para dar celeridade ao processo, nós não podemos demorar quatro anos para aplicar sanção a uma empresa, isso é um processo de alguns meses, no máximo.

O que eu discuto aqui é se o acordo de leniência, o ambiente negocial, ele é adequado para fixar parâmetros de reparação do dano. O que seria desejável? No processo de compliance. A empresa identifica um ato lesivo, investiga, colabora com as autoridades, espontaneamente colabora, talvez esse tenha sido um defeito, um dos poucos defeitos na regulamentação da lei, eu acho que nós poderíamos ter dado um peso maior à espontaneidade, que hoje vale dois pontos percentuais da multa, poderíamos ter dado um percentual maior, de forma que a multa já chegasse a um valor mínimo, se há uma declaração espontânea, isso vai acontecer, nós não vamos eliminar a corrupção. Os programas de integridade vão permitir que a gente identifique, que a gente investigue, que a gente responsabilize, chega no final do dia…

Outro dia, falando para conselheiros independentes, queriam saber qual o nível de responsabilidade do conselheiro. As empresas estão em dúvida. Apuraram, fizeram o dever de casa, puniram o seu agente que cometeu um desvio, porque às vezes não é de um conhecimento do conselho. Pagou lá propina para um agente para sair uma certidão, que às vezes era direito da empresa. E qual é a minha responsabilidade como conselheiro? Eu tenho que colaborar? Claro que tem, você pode ser responsabilizado depois. Mas o grande problema é "mas com quem?" e "o que vai ser cobrado de mim?". Então, na lógica da empresa, ela apura e vai lá e devolve. Pode ter uma sanção adicional? A sanção está estabelecida na Lei Anticorrupção. Vai lá e vai ter uma multa, que eu defendo, no caso, tem que ser uma multa mínima. Mas não. Aí nós levamos para uma negociação que é muito difícil, fixação de reparação de dano.

E aí vem uma outra discussão: o que é dano? Como calcular dado ao erário? Uma coisa que a gente não tinha tradição, nós não tínhamos tradição de tomada de conta especial, de ações de improbidade contra as empresas e estamos começando agora. E a minha preocupação sempre é que a gente tenha o mínimo de racionalidade na fixação desses parâmetros. Concordo com o Bruno que algumas situações, alienação do controle, pode ser a solução a ser buscada, mas, olhando para frente, é importante construir um modelo e um sistema que se sustente, estimule o comportamento ético, que estimule a apuração de desvios e a reparação espontânea do dano por parte da empresa. E, infelizmente, o modelo hoje é tão irracional e pouco confiável do ponto de vista da segurança jurídica que as empresas acabam optando de apurar aí vamos esperar para ver o que acontece. Não é o cenário desejável.

Eu penso que seria possível construir esse caminho, o que eu falo aqui talvez tenha uma ponta solta, em especial a declaração de idoneidade do Tribunal de Contas, mas, poxa, se eu fiz um acordo no âmbito administrativo, a administração fez um acordo com a empresa, tem um processo de apuração de dano que pode transitar, aí é direito da empresa questionar o valor que a administração está colocando, até judicialmente. Uma tomada de conta especial, nós sabemos muito bem disso, cito aqui o exemplo de Pasadena, em que a CGU fez um trabalho fantástico, apurou lá um valor de prejuízo. O tribunal tinha um valor diferente. O Ministério Público pode ter outro valor. A Petrobras pode entender que aquele valor não existe. Então, nós precisamos ter um pouco mais de racionalidade disso, sob pena de apontarmos, criarmos novas teses do que é, por exemplo, dano erário, no ambiente que acabou de ser consolidado como uma ação imprescritível, e que, daqui para frente, ninguém mais está seguro, nenhum de nós. Inclusive eu, que fui administrador público. A gente não sabe, posso estar sujeito a uma ação de improbidade, de reparação de algum erro que eu possa ter cometido a 15, 20, 30 anos atrás. Era isso.

O grande problema, posso complementar aqui, Marcio, se você me permite. Você foi ao Ministério Público no DOJ ou na SEC e falar "olha, eu causei esse prejuízo", como é que fica a autoridade pública brasileira "não, eu concordo que isso não foi um prejuízo". Você declarou que causou aquele dano à administração, então essa discussão tem que ter um pouco mais de racionalidade. E, para concluir, não podemos subverter a ordem de interesse. O interesse da empresa, na minha leitura, ele tem que prevalecer em relação ao interesse do administrador da empresa.

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