Opinião

2018 foi desafiador para o Direito da Concorrência no Brasil

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9 de janeiro de 2019, 6h05

O ano de 2018 foi um ano desafiador para o Cade. A autoridade antitruste lidou com questões tão diversas quanto relevantes. Da investigação da paralisação dos caminhoneiros a casos envolvendo propriedade intelectual que tramitavam há quase uma década no conselho, passando por questões atinentes aos setores financeiro, siderúrgico, agrícola (sementes) e de energia (GLP) e pelos processos vinculados à operação "lava jato".

Houve também a edição de importantes documentos institucionais pelo conselho: uma resolução que regulamenta o acesso a documentos em casos de condutas anticompetitivas, um guia de remédios antitruste e um ato normativo que pretende pôr fim ao histórico conflito de competência entre o próprio Cade e o Banco Central.

Quanto à produção de normas e publicações institucionais, é preciso destacar três documentos:

a) Resolução 21
A medida regulamenta o acesso a documentos e informações constantes de investigações de condutas, procurando balancear os incentivos aos acordos de leniência e termos de compromisso de cessação (TCCs) com os interesses de potenciais prejudicados por cartéis de iniciar ações de reparação de danos.

b) Guia de remédios
O Cade consolidou suas melhores práticas para o desenho, aplicação e monitoramento de remédios para sanar problemas concorrenciais. O guia trata, entre outros temas, das possibilidades e do racional de remédios estruturais e comportamentais.

c) Ato Normativo Cade-Bacen 1
Após anos de conflito de competência, Cade e Banco Central elaboraram norma que dispõe sobre os procedimentos para os controles de estruturas e de condutas envolvendo instituições financeiras. O ato estabelece competência conjunta para as autoridades, mas confere ao Bacen a possibilidade de aprovar unilateralmente operações sempre que houver riscos relevantes e iminentes ao Sistema Financeiro Nacional.

Controle de fusões e aquisições
O mês de fevereiro foi marcante para o controle de estruturas no Brasil. A análise de três grandes operações foi concluída pelo Tribunal do Cade. No mesmo dia, o conselho aprovou com restrições as aquisições da Votorantim Siderurgia pela ArcelorMittal Brasil[1] e da Monsanto pela Bayer. O outro caso foi a reprovação da aquisição da Liquigás pela Ultragaz.

Além delas, o Cade concluiu em março a análise da aquisição da XP pelo Itaú-Unibanco. A operação resultaria, em 2022, na participação do Itaú em 49,9% do capital votante e 74,9% do capital social total da corretora, com possibilidade de aquisição do controle da XP a partir de 2024. O Cade aprovou a operação com restrições, e o Acordo em Controle de Concentrações (ACC) previu mecanismos para assegurar a independência da gestão da XP, entre outros compromissos para mitigar riscos de discriminação e fechamento de mercado em virtude das integrações verticais entre as empresas[2].

Cite-se, ainda, a aquisição da Rodoban pela Brink’s, que ensejou preocupações no mercado de transporte de valores em Minas Gerais. Aprovado sem restrições por maioria, o Tribunal do Cade, entretanto, recomendou medidas de advocacia da concorrência para que o Congresso Nacional tome em consideração preocupações concorrenciais veiculadas por projeto de lei (o “Estatuto da Segurança Privada”), que conta com dispositivos que podem prejudicar as condições de concorrência no setor de transporte de valores[3].

Por fim, o Cade lançou mão de instrumento previsto na Lei 12.529/11 que é praticamente inutilizado: a notificação de operação que não preenche os critérios de faturamento mínimo. O Cade tem a faculdade de determinar, dentro de um ano, a notificação de operação que não atinge os patamares mínimos de faturamento. Isso ocorreu na aquisição da All Chemistry pela SM, no segmento de insumos para farmácias de manipulação. O que motivou a decisão do Cade foram as sucessivas aquisições da SM, o que teria lhe garantido expressiva participação de mercado.

Propriedade intelectual e antitruste
Neste ano, o Cade encerrou dois relevantes processos que tramitavam no órgão há aproximadamente 10 anos e que envolviam a relação entre propriedade intelectual e antitruste.

O primeiro caso se iniciou com representação da Associação Nacional de Fabricantes de Autopeças (Anfape), que alegou que Volkswagen, Ford e Fiat estariam abusando do seu direito de propriedade intelectual sobre os desenhos industriais de suas autopeças para impedir fabricantes independentes de atuarem no mercado de reposição[4]. Segundo pronunciamento do presidente do Cade durante a sessão de julgamento, Alexandre Barreto, esse é o principal caso de conduta unilateral da última década.

O Cade arquivou o processo, sustentando que o exercício dos direitos de exclusividade pelas montadoras havia se dado com base na Lei da Propriedade Industrial, não havendo uma infração à ordem econômica punível pelo órgão.

O segundo caso surgiu com uma alegação de sham litigation (abuso do direito de petição) por parte da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (Pró-Genéricos) contra o laboratório farmacêutico Lundbeck[5]. Segundo a acusação, a Lundbeck estaria se valendo de medidas judiciais e extrajudiciais para proteger o “data package” (dossiê de dados de testes que comprovam segurança e eficácia de medicamentos) apresentado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para obter a autorização para comercialização de um medicamento antidepressivo. A Lundbeck ajuizou demanda que visava que a Anvisa se abstivesse de registrar medicamentos genéricos e similares utilizando-se, ainda que indiretamente (reliance), do seu data package.

O Cade também arquivou o processo, apontando não ter havido abuso por parte da Lundbeck.

Abuso de posição dominante
O Cade teve a oportunidade de avaliar uma série de casos de abuso de posição dominante ao longo de 2018. Dentre as investigações em mercados tanto “tradicionais” quanto “inovadores”, destacamos os casos mais marcantes.

Em março, o Tribunal do Cade aprovou por unanimidade três TCCs com as agências de viagem on-line Booking.com, Decolar.com e Expedia. De maneira similar a investigações em outras jurisdições, o Cade avaliava se a adoção de cláusulas de “nação mais favorecida” (most favored nation – MFN) com grandes redes de hotéis implicava restrição à concorrência. Embora a Superintendência do Cade tenha reconhecido que tais cláusulas podem gerar eficiências, as empresas aceitaram excluir de seus contratos dispositivos que proibiam o oferecimento de condições mais favoráveis pelos hotéis diretamente ao consumidor.

Em abril, a Superintendência do Cade decidiu arquivar inquérito administrativo que investigava suposta recusa de fornecimento de gás natural à termelétrica UTE pela Petrobras. Para chegar à conclusão pelo arquivamento, foi relevante a verificação de que a suposta conduta não teria potencial de causar dano à concorrência. Conforme a superintendência, mesmo que a UTE fosse excluída devido à conduta, a Petrobras não seria capaz de dominar o mercado de distribuição de energia elétrica, uma vez que a participação de mercado da UTE que poderia ser absorvida pela estatal era muito limitada, inferior a 3%.

Em agosto, o Tribunal do Cade condenou por maioria os operadores portuários Rodrimar e Tecon Rio Grande, encerrando dois processos cujos julgamentos haviam se iniciado em 2016. A despeito de detalhada análise realizada pela conselheira Cristiane Alkmin em sentido diverso, no entendimento da maioria do tribunal, a Rodrimar teria abusado de sua posição dominante ao cobrar a taxa chamada “THC2” pela liberação de contêineres de recintos alfandegados independentes no Porto de Santos. Já a Tecon Rio Grande teria abusado de sua posição dominante por cobrar uma “taxa de fiel depósito” de recintos alfandegados independentes no porto de Rio Grande.

Em outubro, o Tribunal do Cade avaliou em sede de consulta uma política de preços mínimos anunciados que a empresa Continental pretendia aplicar a seus revendedores de pneus. A política seria muito semelhante à prática de fixação de preços mínimos de revenda.

Ainda em outubro, o tribunal condenou por unanimidade a empresa Unilever pela prática de contratos de exclusividade com pontos de venda de sorvetes industriais de impulso. Segundo o Cade, tais contratos, uma vez que a Unilever detém posição dominante, teriam o potencial de criar barreiras a concorrentes.

Por fim, o Cade tratou de condutas unilaterais no mercado de meios de pagamento em diferentes momentos ao longo do ano. Nos meses de julho e setembro, o tribunal aprovou TCCs com Rede, Itaú, Cielo, Banco do Brasil e Bradesco, por meio dos quais as empresas se comprometeram a cessar uma série de práticas, destacando-se (i) a imposição de “trava bancária”, (ii) recusa de leitura de agendas de recebíveis; (iii) venda casa de produtos e serviços; e (iv) imposição de multas em contratos de incentivo que induziam à exclusividade. Em conjunto, as empresas aceitaram pagar mais de R$ 50 milhões a título de contribuição pecuniária.

Ainda, em outubro, o tribunal recomendou a instauração de investigação contra instituidoras de meios de pagamento (bandeiras) devido à adoção de cláusulas contratuais que implicariam possível troca de informações sensíveis em contratos com credenciadoras. Em dezembro, durante sua última sessão de julgamento, o tribunal sugeriu que a superintendência instaurasse investigação contra possíveis práticas anticompetitivas no mercado financeiro e de meios de pagamento eletrônicos.

Cartéis
Alguns casos relevantes envolvendo cartéis foram julgados pelo Cade em 2018. Merece destaque, inicialmente, a consulta sobre tabela de preços no setor de transporte de cargas formulada ao Tribunal do Cade. A autoridade antitruste tem condenado, com raras exceções, todos os casos de tabelas de preços e honorários. Nessa linha, entendeu que a edição de tabelas por entidades associativas representa um ilícito por objeto, ou seja, a simples edição da tabela, ainda que não implementada, constitui infração. Além de responder à consulta formulada, o Cade observou que alguns dos documentos trazidos pelas consulentes revelam atos em concreto de coordenação para a uniformização de preços mediante tabelamento. Dessa forma, a consulta ensejou a abertura de processo administrativo para a apuração de prática de influência à conduta comercial uniforme.

Outro precedente importante no tema de cartéis foi o arquivamento de processo que investigava supostas infrações à ordem econômica no mercado de carbonato de sódio. A investigação promovida pelo Cade tinha por objetivo avaliar se a atuação conjunta das empresas da Ansac (associação americana de produtoras de carbonato de sódio) poderia configurar cartel de exportação com efeitos no Brasil. O Tribunal do Cade entendeu que a análise deveria se dar pela regra da razão, concluindo pela inexistência de efeitos no Brasil.

O Cade concluiu, também, o julgamento de processo que investigou suposta cartelização no mercado de embalagens flexíveis entre 2001 e 2006[6]. Embora o julgamento do caso tenha revelado divergências entre os Conselheiros sobre temas como prescrição e suficiência probatória, o tribunal condenou oito empresas, duas associações e sete pessoas físicas.

Destaque-se, ainda, a homologação de 16 TCCs no âmbito de seis investigações de cartel relacionadas à operação "lava jato". Em conjunto, os acordos preveem o recolhimento de R$ 897,9 milhões de contribuição parcelada em até 20 anos, com possibilidade de redução em 15% do valor na hipótese de a compromissária comprovar a reparação dos danos causados. As seis investigações se relacionavam a carteis em licitações para: (i) serviços de engenharia da Petrobras; (ii) construção da Usina de Angra 3; (iii) obras de ferrovias; (iv) obras nos estádios da Copa do Mundo de 2014; (v) urbanização de favelas; e (vi) edificações da Petrobras. Os conselheiros João Paulo de Resende e Cristiane Alkmin votaram pela não homologação dos TCCs, principalmente em razão do cálculo da contribuição.

Agenda para 2019
A composição do Cade passará por mudanças significativas em 2019. A conselheira Cristiane Alkmin anunciou que irá se desligar do órgão ainda em janeiro, antes do fim de seu mandato, para assumir a Secretaria da Fazenda de Goiás. Ao longo do ano terminarão também os mandatos de João Paulo de Resende, Paulo Burnier e Polyanna Vilanova, assim como do superintendente-geral, Alexandre Cordeiro. Em meio à renovação, a autarquia terá casos de grande relevância a processar e julgar.

Com relação a atos de concentração, a superintendência impugnou dois casos relevantes no final de 2018, devendo o tribunal chegar a uma decisão ainda no primeiro semestre de 2019: a aquisição da Fox pela Disney e a aquisição da Alstom pela Siemens.

Quanto a investigações de cartel, a expectativa é de continuidade da instrução dos diversos casos relacionados à "lava jato", além de outros casos de relevância, como o do “cartel do metrô”, que foi objeto de recomendação de condenação pela superintendência. Destaca-se ainda a continuidade de investigações no mercado de autopeças que foram objeto de TCCs ao longo de 2018.

Com relação às condutas unilaterais, o mercado de meios de pagamento possivelmente continuará sob escrutínio do órgão, considerando-se a sugestão de instauração de novas investigações pelo Tribunal do Cade em 2018. Além disso, aguarda-se o julgamento de processos envolvendo o Google que receberam recomendação de arquivamento pela Superintendência do Cade.

Por fim, destaca-se que o Senado Federal aprovou em dezembro de 2018 o PLS 283/2016, que altera a Lei 12.529/2011 com o objetivo de incentivar a busca por reparação judicial de danos causados por carteis. Na versão aprovada pelo Senado, haverá, dentre outras alterações, (i) a obrigação de ressarcimento em dobro de danos causados a vítimas de carteis, exceto para signatários de leniência ou TCC; (ii) prazo prescricional para proposição de ação de reparação de danos por cartel de cinco anos contados a partir da decisão do Cade; e (iii) obrigação de submissão a arbitragem para reparação de danos por signatários de leniências e TCCs. O projeto será examinado pela Câmara dos Deputados e, caso aprovado, introduzirá mudanças muito relevantes nas sanções aplicáveis a agentes condenados por cartel.


[1] Representamos a ArcelorMittal neste caso.
[2] Em agosto, o BC concluiu sua análise da operação, aprovando com restrições consideradas mais rigorosas que as do Cade. O BC proibiu que o Itaú adquirisse o controle da XP no futuro.
[3] Representamos a TecBan em intervenção como terceiro interessado neste caso.
[4] Representamos a Volkswagen neste caso.
[5] Representamos a Lundbeck neste caso.
[6] Representamos a Alcoa neste caso.

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