Separação igreja-Estado

Suprema Corte dos EUA vai decidir se governo pode favorecer religiões

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8 de janeiro de 2019, 9h01

Organizações pró-religião se animaram a pedir à Suprema Corte dos EUA, agora com uma sólida maioria conservadora, a reversão de algumas jurisprudências a favor do Estado laico (ou secular). E a decisão de que um governo possa legalmente tomar medidas que promovam ou endossem uma religião específica. A outra parte argumenta, entre outras coisas, que isso tornaria os não fiéis da religião favorecida em cidadãos de segunda classe.

A Suprema Corte vai entrar nessa discussão em fevereiro, quando começará a julgar o caso American Legion versus American Humanist Association, em que a questão é se um órgão do governo do estado de Maryland pode se encarregar da manutenção de uma cruz histórica, de 90 anos, de 12,2 metros de altura, na cidade de Bladensburg.

Se a decisão for favorável à cruz estatal, irá ruir o “muro de separação entre a igreja e o Estado”, preconizado por Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos e principal autor da Declaração da Independência. Dessa frase de Thomas Jefferson nasceu a ideia de “separação igreja-Estado” nos EUA.

Estão em jogo nesse processo duas cláusulas da Primeira Emenda da Constituição, no que ela se refere à religião: a Cláusula do Estabelecimento (Establishment Clause) e a Cláusula do Livre Exercício (Free Exercise Clause), segundo o site United States Courts.

A Cláusula do Estabelecimento proíbe o governo de estabelecer uma igreja como a entidade religiosa nacional. Historicamente, a cláusula proibiu a existência de igrejas patrocinadas pelo estado, tal como a Igreja da Inglaterra (ou Igreja Anglicana).

Modernamente, o entendimento é que o governo pode dar assistência a uma religião apenas se: 1) o propósito primário da assistência é secular; 2) a assistência não promover ou inibir qualquer religião; e 3) não houver envolvimento excessivo entre a igreja e o Estado.

A Cláusula do Livre Exercício, por sua vez, protege o direito do cidadão de praticar sua religião como lhe convier, desde que a prática não entre em conflito com a “moral pública” ou de um interesse irrefutável do governo. Por exemplo, a Suprema Corte decidiu em 1944 que o governo pode forçar a vacinação de crianças, se os pais não a permitem por motivos religiosos — o interesse do Estado de proteger a saúde e a segurança pública é maior.

A American Legion, apoiada pelas também conservadoras organizações First Liberty Institute, Liberty Counsel, The Becket Fund for Religious Liberty e American Association of Christian Schools, querem que a Suprema Corte esclareça que “coação” (para se seguir uma religião), “não endosso” (a uma religião) é o padrão apropriado para se julgar casos relacionados à Cláusula do Estabelecimento. E que deixe claro que é necessário que haja uma “atividade coercitiva do Estado” para se determinar violação da Primeira Emenda.

As organizações conservadoras argumentam que é preciso haver “coerção por lei”, para “coagir a crença, a observância ou o suporte financeiro a uma religião” pelo governo, para justificar a violação. E alegam que é perfeitamente legal para o governo promover ou endossar uma religião, mesmo que isso resulte em “sentimentos de ofensa e de exclusão”, uma vez que o governo pode promover livremente outras mensagens não religiosas.

Para atender essas pretensões, a Suprema Corte terá de reverter sua própria jurisprudência. Em 1984, em voto escrito pela ex-ministra Sandar Day O’Connor, a corte decidiu que a Cláusula de Estabelecimento proíbe ação do governo que tenha “o efeito de comunicar uma mensagem de endosso ou desaprovação de uma religião pelo governo, porque tal ação envia uma clara “mensagem às pessoas que não professam a religião de que são excluídas, não membros integrais da comunidade política”. Por aí se entende a ideia de cidadãos de segunda classe.

Em 1992, em voto escrito pelo ex-ministro David Souter, a corte explicou que a história da Primeira Emenda mostra que os autores da Constituição estenderam a proibição para incluir ação do governo que endosse ou promova alguma religião, não apenas coerção. De outra forma, a Cláusula do Estabelecimento seria uma duplicação da Cláusula do Livre Exercício, que claramente proíbe ação do governo que coage crença ou prática religiosa.

Em uma decisão de 1947, a Suprema Corte argumentou que “o governo não pode estabelecer como premissa a crença de que todos somos iguais, quando defende a ideia de que Deus prefere alguns”.

O advogado Elliot Mincberg, da organização People for the American Way, escreveu em um artigo para o site The Hill que, se a Suprema Corte adotar o padrão da “coerção”, isso não vai afetar apenas a manutenção da cruz de Maryland. “A decisão vai justificar a construção de cruzes em escolas públicas, nas proximidades de tribunais e de casas legislativas. Orações antes das aulas, por um professor protestante, seriam permitidas, desde que estudantes de outras religiões ou de nenhuma religião ficassem no corredor, se tivessem alguma objeção.”

Em algumas comunidades, a religião oficial poderia ser católica, evangélica, muçulmana ou judia, dependendo de suas lideranças. A Casa Branca poderá fixar uma placa dizendo que os Estados Unidos é uma nação cristã, enquanto governos de alguns estados poderiam proclamar que são seculares, não religiosos. “Se o governo não assumir uma posição realmente neutra, os conflitos religiosos no país tendem a crescer”, disse.

A defesa do Estado laico é forte nos EUA. Mas, estranhamente, não houve protestos notáveis quando o presidente Trump decidiu mudar a embaixada dos EUA de Tel Aviv, capital de Israel, para Jerusalém, a cidade que judeus e palestinos querem como capital. Embora isso pareça ser apenas uma medida de política exterior, Trump tomou essa decisão para agradar sua base evangélica — os “cidadãos de segunda classe” não opinaram.

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