REPRESENTAÇÃO CRIMINAL

TJ-RS livra juiz que recebia depósitos de origem ilícita

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5 de janeiro de 2019, 7h36

Receber depósitos em conta bancária, fruto de crime, não torna o beneficiário, automaticamente, cúmplice de ilícito, especialmente se o destinatário não tinha consciência de que os valores eram produto de atos criminosos. Assim, se todos os elementos do processo atestam a falta de ciência, não se pode dar sequência à persecução penal.

Com esse entendimento, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul determinou o arquivamento de procedimento investigatório aberto contra um juiz de primeiro grau que recebeu depósitos no total de R$ 26 mil na sua conta bancária. Os depósitos foram feitos pelo então namorado do juiz, que vinha desviando dinheiro de seu empregador para poder pagar a sua parte nas despesas que o casal tinha em conjunto com viagens, festas e shows.

Operações fraudulentas
O caso chegou ao Órgão Especial depois que o Ministério Público estadual denunciou o namorado dele pelo crime de furto qualificado mediante fraude e abuso de confiança de forma continuada, tipificado no artigo 155, parágrafo 4º, inciso II, combinado com o artigo 7, ambos do Código Penal. Segundo o MP, o denunciado, na condição de funcionário especializado em informática, fez diversos pagamentos fictícios a fornecedores, chegando a admitir os desvios diante do empregador. Nestas operações fraudulentas, ocorridas entre os anos de 2015 e 2016, os valores subtraídos iam parar na conta bancária do juiz.

Em depoimento escrito prestado ao Órgão Especial, o juiz negou qualquer participação nos ilícitos, dos quais sequer sabia a existência. Constrangido, esclareceu que, durante todo o período de namoro, a diferença de renda entre ambos passou a ser um ‘‘complicador no relacionamento afetivo’’, já que ambos se consideram ‘‘homens de perfil muito autônomo’’.

Orgulho e gastos
No primeiro ano de namoro, historiou, ocorreram os primeiros desentendimentos envolvendo gastos em geral e viagens, pois o rapaz sentia-se constrangido quando o juiz bancava as contas de restaurantes, entrada de festas, compras de roupas e calçados, entre outras despesas.‘‘Tentamos achar um meio termo, cada um custeando seus respectivos gastos ‘supérfluos’, mas comecei a perceber que ele estava começando a enfrentar sérias dificuldades financeiras por conta disso e não lhe sobravam recursos para coisas mais necessárias, tais como estudar, pagar aluguel e despesas do gênero’’, discorreu.

Numa das conversas, o juiz disse deixou muito claro que não se importava em pagar, sozinho, as ‘‘despesas maiores e extras’’, pois era um prazer viajar, passear, jantar em bons restaurantes, ir a festas, comprar roupas e calçados para ambos. O rapaz, entretanto, não aceitava isso, pois não queria que os outros soubessem que estava sendo ‘‘bancado’’ por ele.

Solução intermediária
‘‘Foi então que houve uma solução intermediária consensual. Iríamos ser ponderados nos gastos, mas ao mesmo tempo sem deixar de aproveitarmos a vida juntos. Eu passaria a pagar este tipo de despesas para ambos e ele me devolveria quando pudesse (nunca cobrei). Dizia-me que a sua empregadora pagava ‘participação nos lucros’ todo ano, cujo período era variável, em valor que geralmente passava de duas vezes a remuneração mensal. Que também recebia indenizações variáveis por horas de plantão de sobreaviso, trabalho que muito assisti ele de fato prestando em finais de semana. Igualmente comentou-me que a cada ano haveria 13º salário e adicional de férias, de modo que todos estes ganhos extras seriam usados para me pagar mais à frente’’, escreveu no relato à corte.

Em fecho, o juiz destacou que nunca questionou o fato das transferências bancárias advirem da empresa para a qual o ex-trabalhava, já que ele sempre comentava que recebia pagamentos de valores efetivamente devidos, “por fora”, e prêmios por participação nos resultados (PPR). ‘‘Nunca calculei os valores que eu gastava conosco ou com ele, mas tenho certeza de que, somente a parte dele, se assim eu quisesse separar, nos mais de 04 anos de namoro, superaram muito, mais muito mesmo, o que ele transferiu para minha conta bancária. Portanto, se a ideia dele era me pagar, me pagou o que me devia e parcialmente.’’

Sem ciência dos crimes
Em face dos esclarecimentos, do teor do boletim de ocorrência e do inquérito policial, o relator do caso no Órgão Especial, desembargador Newton Brasil de Leão, determinou o arquivamento da representação criminal, no que foi seguido à unanimidade pelos demais integrantes. Nos fundamentos jurídicos da decisão, Leão aderiu, ipsis litteris, à manifestação do procurador-geral de justiça em exercício, César Luís de Araújo Faccioli.

Para o representante do MP, os depoimentos das testemunhas deixam claro que o juiz, embora tenha sido o destinatário dos valores desviados da empresa, não participou nem anuiu com os atos praticados pelo então namorado. ‘‘Assinale-se que o denunciado J.C.C., ao confessar a prática dos ilícitos penais, salientou que o Magistrado nada sabia sobre a origem das subtrações (fls. 142/143)’’, pontuou Faccioli em seu parecer.

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