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Denúncia por receptação ocorrida antes da subtração do bem é inepta, diz TJ-RS

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5 de janeiro de 2019, 14h18

É inepta a denúncia sobre receptação quando a cronologia mostra que o fato que caracterizou o crime ocorreu em momento anterior à subtração do bem. Afinal, é altamente contraditório o agente ter receptado o bem antes mesmo deste ter saído do domínio de seu proprietário, seja por motivo de furto ou roubo.

Com a prevalência deste entendimento, o Terceiro Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu provimento a recurso de embargos infringentes para livrar um homem denunciado pelo crime de receptação. Ele foi absolvido do processo com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal – o fato denunciado não se constituiu em infração penal.

A maioria do colegiado – formado por desembargadores da 5ª e 6ª Câmaras Criminais – se alinhou ao entendimento do desembargador João Batista Marques Tovo, que havia ficado vencido no julgamento que condenou o denunciado em sede de apelação.

O relator dos embargos infringentes no Terceiro Grupo Criminal, desembargador Aymoré Pottes de Mello, disse que o caso é teratológico – absurdo, por contrariar a lógica –, pois a conduta descrita na denúncia não se amolda ao crime de receptação.

‘‘Nesta toada teratológica dos limites acusatórios, em que o réu se defende do fato descrito na denúncia – e só a digna julgadora a quo [juíza que proferiu a sentença absolutória] viu, ainda assim só ao sentenciar, porque o caso é de inépcia da denúncia –, é inviável a qualquer pessoa receptar um bem antes mesmo de ele ser subtraído do seu proprietário’’, fulminou no acórdão, confirmando a absolvição do acusado.

A denúncia do MP
Segundo o relatório da sentença, o fato tido como delituoso ocorreu no dia 3 de agosto de 2010, no município de Estrela, quando um homem foi flagrado pela polícia na posse de uma bicicleta de 18 marchas, avaliada em R$ 399. Segundo a polícia, o homem não tinha nota fiscal ou qualquer outro documento que comprovasse a origem ilícita do bem. No mandado de busca e apreensão autorizado pela Justiça, constava a informação de que a bicicleta fora roubada em 6 de agosto.

Em 2 de abril de 2013, com base no inquérito policial, o Ministério Público denunciou o homem pelo crime de receptação, tipificado no artigo 180 do Código Penal – receber, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime.

Sentença improcedente
No primeiro grau, a 1ª Vara da Comarca de Estrela julgou improcedente a denúncia, por perceber que a linha temporal dos acontecimentos descritos na peça inicial não é coerente. Segundo a juíza Debora Gerhardt de Marque, a proprietária registrou o furto em 12 de agosto de 2010, informando que o objeto havia sido subtraído em 7 de agosto de 2010. Entretanto, o mandado de busca e apreensão foi cumprido em 3 de agosto, tendo sido lavrado boletim de ocorrência (B.O.) na mesma data, e o auto-de-apreensão no dia seguinte.

Neste passo, deduziu a juíza, a bicicleta apreendida na posse do denunciado não poderia ser aquela que foi furtada da vítima, já que o furto aconteceu quatro dias após a apreensão. ‘‘Por consequência, a conduta imputada ao réu não se molda ao delito descrito na exordial [petição inicial] e é atípica, uma vez que não há prova de que a bicicleta apreendida na residência de V. tenha sido produto de crime, pelo que a absolvição do acusado é medida que se impõe’’, escreveu na sentença.

Apelação
Inconformado com a sentença, o MP apelou ao TJ-RS. A relatora do recurso na 5ª. Câmara Criminal, desembargadora Cristina Pereira Gonzales, disse que basta a demonstração da origem ilícita do bem para configuração do crime de receptação. Ou seja, embora o tipo penal não tenha existência autônoma, necessitando de um crime anterior, não se exige sentença condenatória por este delito antecedente.

Quanto à desconexão dos fatos, observou que a proprietária, em declarações à policia, admitiu que a subtração poderia ter ocorrido antes do informado, já que fazia uma semana que não ia até o local onde deixara a bicicleta estacionada. Assim, ‘‘eventual imprecisão’’ sobre a data do furto não inviabiliza a condenação do denunciado, porque na polícia e em juízo a vítima reconheceu a bicicleta como sua, fornecendo detalhes peculiares. Além disso, agregou, o réu é conhecido por traficar na sua residência, sendo comum encontrar objetos no local que serviam como moeda de troca.

"Ressalto, ainda, que o ônus da prova, na espécie, tem aplicação inversa; ou seja, uma vez que encontrado o bem subtraído na residência do acusado, a ele incumbia comprovar a posse legal do objeto, encargo do qual não se desincumbiu, pois não apresentou nenhum recibo de pagamento ou sequer soube informar o nome da pessoa de quem mencionou ter adquirido o bem pelo suposto valor de R$ 250,00, bem abaixo daquele de mercado", anotou no acórdão. A relatora condenou o réu à pena de um ano de reclusão, substituída, na dosimetria, por prestação de serviços comunitários mais pagamento de multa.

Voto divergente
O desembargador João Batista Marques Tovo discordou da relatora, mas ficou vencido no julgamento. Ele manteve a decisão de primeiro grau – apesar de reconhecer o equívoco quanto à data do furto, e não roubo –, mas por outros fundamentos. O primeiro diz respeito à "flagrante inépcia" da inicial acusatória, que não foi retificada por aditamento, o que é impeditivo de condenação. E, segundo, pela falta de prova de "consciência da ilicitude".

Para Marques Tovo, se a imputação fática afirma que a bicicleta foi objeto de roubo no dia 6 de agosto, data posterior à receptação, 3 de agosto, está-se diante de uma impossibilidade fático-jurídica. Além disso, não se admite presumir a culpa, nem exigir que o réu faça prova de certeza da propriedade ou da origem lícita do bem – o que se constituiria em prova impossível –, pois a tipicidade material da receptação pressupõe o oposto.

"O que se pode exigir é apenas que faça contraprova de dúvida, desde que, antes, quem acusa se desincumba do seu ônus de prova de certeza quanto ao fato-crime, o que envolve também a culpabilidade. Por mais difícil seja, a consciência da ilicitude deve ser provada, indiretamente, por óbvio", complementou no voto divergente.

Segundo o desembargador-revisor, a suspeita de que o denunciado teria recebido o bem em troca de drogas não leva à conclusão segura que tivesse consciência da ilicitude. Afinal, ele não buscou ocultar, transferir a terceiros nem descaracterizar o bem – o que é indicativo seguro de não ter consciência da origem ilícita. Se o recebeu por escambo de drogas, natural que não identificasse o vendedor.

"Logo, a prova indiciária e de certeza sobre a culpa deve ser buscada, em regra, na manifestação de conduta observada por ocasião do flagrante, e não pode ser apenas dos dizeres do réu, embora estes também constituam meio de prova e possam ser voltados contra ele, se e quando não explicar de modo minimamente plausível a posse injusta. Penso seja isto o que, em regra, a jurisprudência sobre o tema tem exigido, pois mais do que isto, com a devida vênia, não se pode exigir, sob pena de violar a regra do in dubio pro reo", encerrou.

Processo 047/2.12.0003948-1 (Comarca de Estrela)

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