Opinião

Responsabilidade do estado e o direito à saúde das pessoas com deficiência

Autor

  • Telma Aparecida Rostelato

    é mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru/SP. Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional de Sorocaba/SP. Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva/SP. Procuradora Jurídica Municipal.

2 de janeiro de 2019, 7h37

Para que se possa saber à quem a legislação está se reportando, primeiramente não se pode prescindir da averiguação de quem seriam os abarcados pela proteção legislativa, sendo o que ocorre com relação às pessoas com deficiência, que ao longo de décadas requereu interpretação ampliativa para que se tornasse viável a compreensão de quem efetivamente ocuparia a posição de beneficiário daquele imenso rol de direitos previstos, tanto na Constituição, quanto em legislações esparsas. Em 05/01/2018, quando da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, também conhecida como Lei Brasileira de Inclusão, este esforço interpretativo não mais se fez necessário, porque foi definitivamente posto um ponto final nestas dificuldades todas, para estabelecer-se uma definição da nomenclatura, no artigo 2º do supracitado preceito legislativo. Com isso, pode-se compreender o direito à saúde das pessoas com deficiência, ora contemplado de forma expressa e taxativa, como respeitante aos propósitos conclamados pelos direitos humanos.

Direito à saúde, direitos humanos e pessoas com deficiência
A saúde é direito consagrado no artigo 196 da Constituição vigente, entretanto a remissão ao direito à saúde encontra-se presente em demais artigos da Carta Constitucional vigente, tais como: 5º, 6º, 7º, 21, 22, 23, 24, 30, 127, 129, 133, 134, 170, 182, 184, 194, 194, 195, 197, 198, 199, 200, 216, 218, 220, 225,227 e 230.

Segundo Dirceu Pereira Siqueira e José Luiz Ragazzi (p. 79) é possível verificar que no período industrial a saúde era tida como a ausência de doenças, tendo se buscado conceituar a saúde, neste momento histórico, com base na questão e que o trabalhador não poderia adoecer de modo a não prejudicar a produção nas indústrias. Inolvidável que a Constituição é o nascedouro das normas inerentes à saúde, pois nela repousam seus mais profundos alicerces e a previsão de maior acesso a este direito. Acima de tudo, é por meio da Constituição que todos os cidadão podem e devem exigir o cumprimento de seus direitos fundamentais (SCHWARTZ, p. 193). Ao se fazer menção ao direito à saúde está-se necessariamente reportando à proteção do direito à vida, bem maior, direito inviolável, perfazendo o tratamento hospitalar, terapêutico e medicamentoso, verdadeiros mecanismos de se viabilizar o direito à existência digna, até porque, não basta ser garantido pelo Estado, o direito à vida, esta carece ser concebida de forma digna (ROSTELATO p. 128). Este direito à saúde é destinado a todas as pessoas, incluídas as com deficiência, as quais, por sua vez, com a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº. 13.146), datado de 6 de julho de 2015, cuja vigência iniciou-se 180 dias após, no artigo 2º passou a ser assim definido:

artigo 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Não é apenas em âmbito nacional que o direito à saúde encontra guarida, a Assembleia Geral da ONU aprovou, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o objetivo de explicar o que seriam direitos humanos. Por sua vez, a Carta Internacional dos Direitos Humanos é oriunda do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (que entrou em vigor em 23 de março de 1966, incluindo o Brasil, nos 148 Estados signatários), do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (que entrou em vigor em 03 de janeiro de 1976, incluindo o Brasil, nos 145 Estados signatários) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Atualmente, disponibilizam-se mais de 140 tratados e protocolos adicionais que impõem obrigações jurídicas aos Estados, no que se refere a tratados de direitos humanos, sendo que se subdividem em: tratados gerais (por abordarem vários direitos humanos, tendo alcance universal); os específicos (por abordarem questões específicas); os que protegem certas categorias de pessoas (nestes estariam incluídas as pessoas com deficiência) e os que dispõem contra as discriminações em geral (incluídas, as pessoas com deficiência). Portanto, para fins de compreensão do significado dos direitos humanos, iniciemos pela análise do conceito de direito humano à saúde, verificando o teor do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa humana tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar para si e sua família, saúde e bem-estar…”.

No aludido artigo, a Declaração define de forma integrada, o direito à saúde, bem como resguarda o caráter subjetivo e coletivo do mesmo, portanto, saúde é qualidade de vida, e não apenas vista como doença e cura, e deve ser garantida à pessoa, tanto individualmente, quanto ao seu grupo familiar. O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 12, reafirma a universalidade e a integralidade do direito humano à saúde, preconizando que: “toda pessoa deve desfrutar do mais alto padrão de saúde física e mental”, indicando, na seqüência, formas concretas de implementar esse direito, quais sejam: “diminuindo a mortalidade infantil, garantindo condições saudáveis no trabalho e meio ambiente, prevenindo e tratando de doenças e epidemias e assegurando assistência médica em casos de enfermidades”. Neste contexto, como mencionado, a Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 196, veio consagrar a universalidade da saúde e em 1990, foi engendrado no nosso ordenamento jurídico, as Leis 8.080 e 8.142, que regulamentaram ambas, o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo a primeira fortalecido o caráter universal e público do direito humano à saúde, pois é para todas as pessoas e é dever do Estado (governos federal, estadual e municipal) e com esta ampliação, estabeleceu uma novidade: a descentralização dos serviços de saúde, colocando-os mais próximos da população e de acordo com sua realidade; já, a segunda decreta que sem participação não se efetiva o direito humano à saúde, determinando a necessária criação das Conferências e Conselhos, além de definir os recursos. Ademais: o Brasil, é um dos signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conclamando esta, em seu bojo, a preservação do direito à vida, à integridade física e moral, o respeito à dignidade humana de todas as pessoas indistintamente, salvaguardando os direitos fundamentais (aqui compreendidos sob os lindes territoriais do Estado e numa maior amplitude, em sendo considerados na seara internacional, com o significado de direitos humanos), de forma ampla, irrestrita e incondicionada. Isto significa que a responsabilidade pela disponibilização de meios destinados à concretização de direitos vários, a serem usufruídos pelo ser humano, recai sobre o Estado brasileiro, signatário que é da aludida Convenção, portanto deve promover mecanismos eficazes à observância dos mesmos, sendo exatamente este o enfoque a ser atribuído à questão das pessoas com deficiência.

Mais que ter resguardado o direito à saúde, aí englobado o acesso a medicamentos, tratamentos terapêuticos e internação hospitalar, compreendida a interpretação do texto constitucional, em seu artigo 196, repisada em ampla proteção infraconstitucional, importa asseverar, desta feita, que estas pessoas dispõem de proteção em âmbito internacional, para que consigam alcançar a usufruição do direito à saúde, vivendo dignamente, através da atuação estatal. Constituindo-se a omissão estatal, além de inconstitucionalidade, uma real ruptura para com os compromissos firmados internacionalmente, diante da violação a direitos humanos, que são. Consta no artigo 63 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), à qual o Brasil aderiu, por meio do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deverá atuar, intervindo em favor daquele (aqui compreendido o próprio jurisdicionado) que sofrer lesão, praticada pelo Estado signatário da Convenção e que venha transgredir a observância de suas normas, face a ocorrência de violação a direitos fundamentais.

Conclui-se que o Estado brasileiro tem a responsabilidade de, sob a perspectiva dos direitos humanos, resgatar a dignidade da pessoa humana como patamar comum de diálogo e luta, e, neste âmbito, está o direito humano à saúde como uma dimensão dos direitos humanos imprescindível à garantia da dignidade humana, pois não basta alegar que este aderiu aos termos do Tratado Internacional, faz-se necessário que desenvolva políticas públicas eficazes, que viabilizem a efetivação destes seus propósitos.

Considerações finais
As pessoas com deficiência podem contar com um Estatuto para poder reivindicar seus direitos. À sociedade, à família e ao Estado são impingidas imposições, que se transfiguram em obrigações atitudinais, de forma que, o que antes da entrada em vigor do mencionado Estatuto requeria a adoção de uma verdadeira técnica interpretativa ampliativa, ancorada por certo, no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, após 05/01/2016 transmutou-se para a singela leitura do texto normativo, que dada a sua clareza e objetividade dispensa qualquer indução requintada. A saúde, bem buscado por todas as pessoas, sedimentado pela significância de resguardo à existência digna, contemplada está pela proteção ao direito à vida, por isso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é concebida como fonte protetiva aos direitos de todas as pessoas, simultaneamente abriga as pessoas com deficiência.


Referências
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Autores

  • Brave

    é procuradora jurídica municipal, professora do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva (SP). Mestre em Direito Constitucional pelo Centro de Pós-Graduação da ITE/Bauru (SP). Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional de Sorocaba (SP).

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