Opinião

A proposta de reestruturação do Carf e os méritos da sua composição paritária

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28 de fevereiro de 2019, 15h07

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) voltou a ser destaque nas manchetes dos jornais do país nos últimos dias. Não em razão da operação zelotes, mas devido a manifestação expressada pelo Sindifisco Nacional (Sindicato Nacional dos Auditores da Receita Federal do Brasil).

De acordo com o jornal Valor Econômico[1], o Sindifisco teria apresentado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, uma proposta de reestruturação do contencioso administrativo, com propósito de acelerar o processo de contestação de dívidas no âmbito federal e, consequentemente, aumentar a arrecadação tributária no país. Para fundamentar a proposta, o Sindifisco alegou que o Carf mantém um estoque de cerca de R$ 584 bilhões em processos e leva de cinco a dez anos para julgá-los, de modo que o conselho tomaria cerca de 77 anos para zerar o estoque se o ritmo atual fosse mantido e nenhum novo processo ingressasse para julgamento.

A notícia causou incômodo e gerou reações imediatas do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e de diversos advogados. Por meio de nota[2], a OAB refutou os dados apresentados pelo Sindifisco. Dando destaque ao fato de que cerca de 52,4% do volume de autuações é cancelado pelo Carf, a Ordem afirmou que os auditores fiscais da Receita Federal não têm respeitado a legalidade na maioria das decisões e que a proposta do Sindifisco estaria desconectada dos próprios valores da Receita.

Diante da polêmica, o presidente do Sindifisco veio a público desmentir que a proposta sugeriria a extinção do Carf e esclarecer que a reestruturação pretendida envolveria manter apenas duas instâncias na esfera administrativa: um julgamento em 1ª instância, a ser realizado pelas Delegacias da Receita de Julgamento (DRJ), e outro em 2ª instância, com as funções de uniformização de jurisprudência hoje exercidas pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF)[3]. Além disso, todo o julgamento administrativo seria realizado dentro da RFB, sem a participação de conselheiros representantes dos contribuintes e sem a participação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

Ainda em decorrência do debate levantado pelo Sindifisco, o próprio Carf tratou de rebater os dados apresentados pelo sindicato e publicou em seu site dados sobre a sua performance em 2018[4]. De acordo com o órgão julgador, o estoque atual é de 122.371 processos, que somam R$ 603,77 bilhões em crédito tributário. Apesar do aumento do estoque em volume de crédito tributário, o órgão destaca que, em razão da reestruturação do conselho, com a publicação de um novo regimento interno em 2015 e a implementação de ações voltadas ao aprimoramento de gestão, a estimativa de tempo de julgamento do estoque foi revista. Em razão das medidas voltadas para a celeridade processual, como a intensificação do julgamento de processos na sistemática de recursos repetitivos e a criação de turmas extraordinárias, para julgamento de processos de até 60 salários mínimos, o prognóstico de 77 anos (calculado pelo próprio órgão em 2015) foi reduzido para cerca de seis anos.

A controvérsia que se criou a respeito da sugestão do Sindifisco levanta outras questões a respeito do julgamento no Carf. Este artigo tem o objetivo de tratar de um ponto em específico: demonstrar como o desenho institucional desse tribunal administrativo influi no melhor desempenho deliberativo entre os seus membros, especialmente quando comparado com a deliberação ocorrida nos órgãos colegiados de tribunais judiciais[5].

Com efeito, o objetivo de estruturar um órgão de julgamento no formato da colegialidade — isto é, em que o resultado final do julgamento resulta do exame da questão por mais de um julgador — é a promoção da interação dos membros julgadores para, a partir da construção conjunta da decisão, potencializar o melhor resultado.

De fato, a opção pela estruturação dos tribunais em órgãos colegiados advém de quatro principais razões: (i) a despersonificação; (ii) a contenção do arbítrio individual; (iii) a abertura a várias vozes e ao desacordo; e (iv) o reforço das chances de acerto[6].

A despersonificação, em que a decisão tomada pelo colegiado se torna algo construído pela instituição, dissociada de seus membros, pode ser apontada como um reforço do caráter da impessoalidade, da independência e da imparcialidade dos membros julgadores do órgão colegiado. Com a contenção do arbítrio individual, evita-se a concentração de muito poder nas mãos de uma só pessoa, tutelando o administrado e o conteúdo da decisão final. A abertura a várias vozes e ao desacordo, além de traduzir o reconhecimento de que o conceito de Direito (ou a interpretação do Direito) é algo que, por sua complexidade, deve estar aberto à argumentação e à divergência, proporciona a concretização do princípio constitucional do contraditório, enquanto garantia de participação influente das partes na elaboração do provimento final. Pelas três razões anteriores, a colegialidade, ao aumentar o número de julgadores na tomada de decisões, amplifica a possibilidade de que o resultado seja uma melhor decisão, por instigar o diálogo, a difusão de novas ideias, a consideração atenta das críticas e a percepção de que o resultado do julgamento é coletivo e não individual.

Nesse sentido, o órgão colegiado deve se afastar da ideia de mera contagem agregativa dos votos individuais dos membros julgadores, instigando, ao máximo, a deliberação entre eles. A deliberação, nessa ordem de ideias, consiste na atividade interativa e cooperativa entre os participantes, que expõem e discutem as razões que justificam as suas preferências, dispostos a mudá-las, com o propósito (não necessário) de se alcançar consenso sobre a melhor decisão[7].

O Carf, pode-se dizer, é exemplo de um órgão com bom desempenho deliberativo. Vários podem ser os motivos para se chegar a essa conclusão: a informalidade do processo administrativo, a especialização temática (matéria tributária), as normas procedimentais estabelecidas no Regimento Interno e a composição paritária (Fisco e contribuintes) dos seus órgãos julgadores.

A informalidade do processo administrativo permite que os conselheiros estejam em constante diálogo com as partes na sessão de julgamento. A título exemplificativo, não é incomum que indagações, especialmente de fatos, sejam feitas pelos julgadores às partes quando da realização de sustentação oral em julgamentos ocorridos no conselho. Essa conduta demonstra dois elementos da disposição dos julgadores em deliberar: primeiro, evidencia a atenção dada pelos conselheiros à defesa oral do contribuinte; segundo, expressa a intenção dos julgadores em obter maiores esclarecimentos acerca do caso em julgamento. Ou seja, munidos de mais informações, são maiores as chances de um melhor julgamento.

No que se refere à especialização temática, o conhecimento mais profundo da matéria pode ser um fator a intensificar a deliberatividade do órgão colegiado. Estando todos os julgadores num mesmo nível técnico, é razoável dizer que a deliberação tenderá a ser mais profunda e, consequentemente, de melhor qualidade.

Quanto às normas procedimentais estabelecidas no Regimento Interno do Carf, alguns destaques devem ser feitos. Um bom exemplo é a previsão de que, após o voto do relator, será dada a palavra aos demais conselheiros “para debate e esclarecimentos” (artigo 58, V). Ou seja, neste tribunal administrativo, a abertura para debate e para esclarecimentos é uma fase procedimental obrigatória anterior à tomada dos votos.

Outro exemplo interessante é a figura da vista coletiva (artigo 58, parágrafo 10). Como se sabe, na sessão de julgamento, há a possibilidade de que um conselheiro retire o processo de pauta para vista. A fim de evitar que na sessão seguinte outro conselheiro peça vista e atrase ainda mais o julgamento, o presidente do órgão colegiado pode converter o pedido de vista em vista coletiva. Assim, todos os conselheiros terão vista dos autos, estando aptos para julgar. Embora o pedido de vista reforce o caráter individualista do julgador — pois o conselheiro opta por retirar o processo da sessão para refletir isoladamente sobre a questão —, a previsão de vista coletiva permite a todos os julgadores a terem maiores informações para a formação de sua opinião. Embora se saiba que, na prática, a vista coletiva não significa que todos os conselheiros acessem os autos, a possibilidade de que o façam oportuniza os conselheiros a obterem mais elementos fáticos e jurídicos, de modo que, nesta hipótese, a sessão seguinte pode se tornar mais deliberativa.

Ainda no Regimento Interno do Carf há a previsão de que, no caso de mudança de composição da turma, seja determinada a releitura do relatório e seja concedida às partes a faculdade de realizar nova sustentação oral (artigo 59, parágrafo 3º). A norma explicita que a realização de sustentação oral é direito das partes, concretizador da garantia do contraditório enquanto participação dos interessados na elaboração do provimento final.

Porém, o ponto que mais interessa a este artigo é justamente a composição paritária (Fisco e contribuintes) dos seus órgãos julgadores. É que, como visto, a proposta do Sindifisco tem como um de seus aspectos inserir todo o contencioso administrativo no âmbito da Receita, sem a participação da PGFN e, ainda, sem a participação de conselheiros representantes dos contribuintes. Isto é, com a retirada da participação dos conselheiros representantes dos contribuintes, a intenção do Sindifisco é acabar com paridade na composição do Carf, de modo que todos os julgadores sejam auditores fiscais da Receita.

Com efeito, a paridade do órgão colegiado é um dos elementos que melhor estimula a deliberatividade no Carf. Organizado em órgãos colegiados paritários, suas turmas de julgamento são compostas de oito conselheiros, sendo quatro representantes da Fazenda Nacional e quatro representantes dos contribuintes. Por determinação do Decreto 70.235/72, os cargos de presidente das turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), das câmaras e das turmas do Carf serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, possuem o voto de qualidade. Isto é, o seu voto, neste caso, vale por dois, desempatando o julgamento.

A especificidade do Carf, portanto, é que parte de sua composição é representante da Fazenda Nacional — que, naturalmente, tende a compreender a controvérsia mais facilmente pelo olhar do Fisco — e outra parte é representante dos contribuintes — que, igualmente, possui a propensão de enxergar este lado da moeda. Isso não lhes retira a imparcialidade, mas demonstra que a heterogeneidade de histórico e experiências influencia as perspectivas e os posicionamentos dos julgadores.

De fato, considerando a diversidade num determinado grupo, os indivíduos estão propensos a um maior acesso a informação, tendo em vista o compartilhamento de diferentes pontos de vista na interação do colegiado. Nesse sentido, a diversidade gera um impacto positivo no aumento de habilidades, informação e conhecimento num processo de trabalho em grupo[8]. O compartilhamento de informações, portanto, tem íntima relação com a atividade interativa, cooperativa e criativa dos membros do órgão colegiado.

Ou melhor, quanto mais diversificado um órgão colegiado, maior é possibilidade de que se tenha à mesa diferentes experiências, especialidades, conhecimentos e habilidades. Cuida-se, assim, da efetivação de um dos elementos inerentes à colegialidade: a abertura a várias vozes e ao desacordo.

Visto de outra perspectiva, a homogeneidade dos membros julgadores gera o efeito oposto: o da polarização do grupo, consistente no fato de que, em grupos formados por pessoas com mesma forma de pensar, existe a tendência de que se alcancem entendimentos extremos[9].

Três razões explicam a polarização do grupo. A primeira delas é a presença de diversos argumentos numa só direção. Isto é, a polarização decorre do fato de que, num grupo homogêneo, todos os participantes apresentam diferentes argumentos para uma mesma conclusão. O entendimento inicial de cada julgador só tende a se reafirmar a cada novo argumento, permitindo que posições moderadas cheguem a extremos. O segundo motivo seria a pressão social advinda da comparação. Segundo esse argumento, o posicionamento inicial (e moderado) de um membro do colegiado pode ser alterado para se adaptar ao posicionamento mais extremo de outros julgadores, como decorrência da vontade de agradar os demais julgadores. Por fim, a terceira causa da polarização de grupo advém da percepção de que pessoas com convicções extremas tendem a ter maior confiança e de que, ao adquirirem mais confiança, pessoas pendem a posições extremas. Em sentido contrário, pessoas com menos confiança e mais inseguras sobre suas convicções têm a tendência à moderação. Nessa linha de raciocínio, não é difícil imaginar que, ao ter seus argumentos corroborados pelos demais membros, um julgador se torne mais confiante de suas razões[10].

Dessa forma, vê-se que a composição do órgão julgador pode afetar o grau de deliberatividade entre os seus membros: de um lado, a heterogeneidade advinda da paridade do colegiado permite que o órgão julgador tenha diferentes pontos de vista e mais elementos para um melhor julgamento; de outro, a homogeneidade de um órgão julgador não paritário pode ensejar a polarização do grupo e acentuar posições extremas.

Em conclusão, o que se tem é que a proposta do Sindifisco de excluir a composição paritária do contencioso administrativo fiscal não é digna de elogios. Ao contrário: submeter as defesas administrativas a órgãos compostos apenas de auditores fiscais da Receita diminui a heterogeneidade do colegiado e tende a limitar a possibilidade de que novos e diferentes enfoques e interpretações surjam para a compreensão completa da controvérsia em julgamento e para a melhor decisão à luz da legalidade. Entre os dois modelos, certamente o atual, em que a composição do órgão é paritária, tem mais méritos.


[1] Disponível em: <https://www.valor.com.br/brasil/6104155/para-elevar-arrecadacao-auditores-da-receita-propoem-guedes-fim-do-carf>. Acesso em 12/2/2019.
[2] Disponível em <https://www.oab.org.br/noticia/56977/oab-emite-nota-em-defesa-do-carf>. Acesso em 12/2/2019.
[3] Disponível em <https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/presidente-sindifisco-fim-do-carf-06022019>. Acesso em 12/2/2019.
[4] Disponível em <https://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/situacao-do-atual-estoque-do-carf>. Acesso em 12/2/2019.
[5] A deliberatividade nos órgãos colegiados nos tribunais foi objeto de pesquisa que empreendi na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que resultou na publicação do livro O julgamento nos Tribunais: colegialidade e deliberação, disponível no site do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG (https://pos.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/colecao-ppgd-ufmg-2018/O%20Julgamento%20nos%20Tribunais%20-%20Andr%C3%A9%20Garcia%20Le%C3%A3o%20EB.pdf).
[6] MENDES. Conrado Hübner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 63-65.
[7] MENDES. Conrado Hübner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 14. Neste mesmo sentido: SILVA, Virgílio Afonso da. Deciding without deliberating. International Journal of Constitutional Law, v. 11, 2013, p. 564.
[8] WILLIAMS, Katherine Y.; O’REILLY, Charles A. Demography and diversity in organizations: a review of 40 years of research. Research in Organizational Behavior, v. 20, 1998, p. 87.
[9] SUNSTEIN, Cass. R.; [et al.]. Are judges political?: an empirical analysis of the federal judiciary. The Brookings Institution: Washington, 2006, p. 72.
[10] SUNSTEIN, Cass. R.; [et al.]. Are judges political?: an empirical analysis of the federal judiciary. The Brookings Institution: Washington, 2006, p. 72.

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