Opinião

Online Dispute Resolution — perspectivas de Direito Comparado

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26 de fevereiro de 2019, 6h35

Com o advento da sociedade de informação, por meio da qual as transações comerciais virtuais foram paulatinamente incrementadas, o comércio eletrônico alçou papel de protagonista[1].

Nada obstante, à medida que a aquisição eletrônica de produtos e serviços pelo consumidor foi virando rotina, novos problemas de confiança e fiabilidade nas relações de consumo foram surgindo, traduzindo-se, muitas vezes, em demandas judiciais.

A resposta a esses problemas decorrentes do comércio eletrônico tem origem nas ODRS (Online Dispute Resolution). Em síntese, são mecanismos alternativos de resolução de conflitos[2], instrumentalizadas através do uso de comunicações eletrônicas, ou outras tecnologias de informação e comunicação[3]. Há quem entenda[4] que a ODR é simplesmente uma forma de exprimir as ADRs[5], incorporando nessa feita o uso da internet, sites, comunicações por e-mail, transmissão de mídia e outras tecnologias da informação como parte do processo de resolução de disputas.

O processo embrionário de resolução do conflito em linha tem nascedouro em 1996 nos Estados Unidos através da plataforma Virtual Magistrate[6], instrumento que tinha como função principal dirimir os conflitos entre os utilizadores da internet e seus operadores. A parte preenchia um formulário limitado a 200 caracteres das informações do conflito, e, uma vez aceita a resolução em linha pela contraparte, a plataforma dispunha de até 72 horas para julgar a demanda.

Nesse contexto, através do Ato 262 de 2001, a Suprema Corte de Michigan[7] aprovou a legislação que estabeleceu o primeiro tribunal público e totalmente virtual dos Estados Unidos, precursor do caminho trilhado pelas ODRs no país.

De acordo com o ato[8], os juízes nomeados para serem integrantes do cybercourt deveriam ter experiência em litígio comercial ou interesse em tecnologia. A norma também dispunha que todas as ações instauradas no cybercourt poderiam ser conduzidas por meios de "comunicações eletrônicas", que incluíam, mas não se limitavam a conferências de vídeo e áudio e conferência na internet entre o juiz e pessoal do tribunal, testemunhas e outras pessoas necessárias ao processo[9]. Muito embora o juiz ainda pudesse marcar alguma audiência presencial, as partes poderiam ser ouvidas de suas residências e os advogados poderiam participar de seus escritórios.

Hodiernamente já existem nos Estados Unidos cybercourts com instalações físicas, como o cybercourt de Michigan, situado nas instalações do Tribunal de Michigan. No entanto, com a demanda crescente de tribunais eletrônicos ou cortes de arbitragem eletrônica, deve-se preferir a sede eletrônica em detrimento da estrutura física, notadamente pelos custos reduzidos e por ser mais eficiente.

Há quem defenda que o sistema internacional de cybercourt deveria ser uniformizado no que toca aos procedimentos atinentes às demandas judiciais em linha, alcunhada de International Cybercourt of Justice[10].

Nesse compasso, desde 2005, a American Arbitration Association, através do Model Standards of Conduct of Mediators, oferece, em sua plataforma on-line, serviços de reclamações, promove transferência de documentos, serve como intermediária de eventuais pagamentos e acordos e escolhe árbitros neutros, dentre outros atributos.

Em 2010, a criação do ICDR (International Centre for Dispute Resolution) permitiu que vários conflitos fossem resolvidos de forma on-line com baixos custos, não excedendo o valor de US$ 10 mil, e de forma célere, sem ultrapassar o total de 66 dias.

Na União Europeia, por sua vez, a Diretiva 2013/11/UE foi seguida pelo Regulamento (UE) 524/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução de litígios de consumo em linha, que criou uma Plataforma de Resolução de Litígios em Linha desses conflitos.

A Plataforma RLL está em vigor desde fevereiro de 2016, conservada e financiada pela Comissão Europeia[11].

Esse mecanismo tem como configuração um site interativo[12], acessível de forma eletrônica e gratuita em todas as línguas oficiais da União Europeia. Na prática, o mecanismo configura um sistema ODR (Online Dispute Resolution) e assume uma posição intermediária entre o consumidor e comerciantes, recebendo[13] queixas de ambas as partes[14], permitindo-lhes que possam resolver eletronicamente os seus litígios através de procedimentos extrajudiciais conduzidos pelas entidades de Resolução Alternativa de Litígio (RAL) em cada Estado-membro[15].

As matérias[16] contempladas pela plataforma cingem-se àquelas relativas às obrigações contratuais resultantes de contratos de venda ou serviço em linha, entre um consumidor residente na União Europeia e um comerciante também estabelecido na União Europeia[17].

Outrossim, a plataforma tem como objetivo facilitar a acessibilidade dos consumidores, a fim de resolverem suas demandas derivadas do comércio eletrônico, por meio do acesso gratuito à plataforma, a qual pode ser conectada em todas as línguas oficiais dos Estados-membros da União Europeia.

Ao mesmo tempo, muitas empresas como eBay e PayPal instituíram seus próprios sistemas ODR para lidar com reclamações dos consumidores e criaram "tribunais virtuais"[18] para resolverem disputas oriundas do comércio eletrônico.

Na prática, as entidades que realizam as ODRs oferecem às empresas e aos consumidores um processo simples e confiável através do qual se resolvem conflitos mediante interações on-line[19]. Na verdade, não se trata necessariamente de albergar toda e qualquer disputa, mas, sim, preferencialmente àquelas destinadas a “(…)help settle high volumes of relatively low value disputes — robustly, but at much less expense and inconvenience than conventional courts (…)[20].

Em suma: seja onde for, os benefícios que as ODR oferecem atingem ambas as partes[21]: os consumidores, que conseguem resolver seus problemas rapidamente[22] e sem a burocracia da esfera judiciária; e os comerciantes, que solucionam os problemas com os consumidores, promovendo a imagem da empresa, bem como permitindo que os clientes continuem depositando confiança em seus serviços.


[1] O estudo “Um dia das nossas vidas na Internet”, promovido pela Nova Expressão em parceria com a Marktest, revela que atualmente 79% dos portugueses afirmam fazer compras ou vendas on-line. Em 2011, eram cerca de 15%. Disponível em: <www.novaexpressao.pt>. Acesso em: 27.ago.2015.
[2] Sob outra ótica, o professor Mark Kawakami previu um mecanismo em que o consumidor se tornaria independente de um sistema jurídico eminentemente falho e demorado. A autonomia do consumidor seria consubstanciada com a criação de uma plataforma on-line para os consumidores opinarem sobre os sites dos fornecedores, promovendo o efeito cascata entre os consumidores acerca dos comerciantes negligentes e ineficientes, numa espécie de collaborative consumer protection. Cf.:KAWAKAMI, Mark. Adjusting EU consumer protection mechanisms to the needs of private actors: collaborative consumer protection and the ex ante avoidance of conflict. European Review of Private Law. Alphen aan den Rijn, v. 21, n. 5, pp. 1255-1276, 2013. pp. 1265 e ss.
[3] Cf.: UNCITRAL. Online Dispute Resolution for Cross-border Electronic Commerce Transactions: Draft Procedural Rules, A/CN.9/WG.III/WP.119. 2013. Em seu artigo 2º, n.1, assim dispõe: “‘ODR’ means online dispute resolution which is a mechanism for resolving disputes facilitated through the use of electronic communications and other information and communication technology.” Disponível em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/LTD/V13/816/52/PDF/V1381652.pdf?OpenElement> Acesso em: 10.fev.2018. No mesmo sentido, WANG, Faye Fangfei. Internet jurisdiction and choice of law: Legal practices in the EU, US and China. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. pp. 272 e ss. A Professora Julia Hörnle define ODR como “(…)ODR is therefore dispute resolution carried out by combining the information processing powers of computers with the networked communication facilities of the Internet(…)”. Cf.: HÖRNLE, Julia. Cross–border Internet Dispute Resolution. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. pp. 74-75. Por sua vez, o Professor Colin Rule define da seguinte forma: “(…)Online Dispute Resolution (ODR) is the application of information and communications technology to the prevention, management, and resolution of disputes(…)”. Cf.: RULE, Colin; KATSH, Ethan. What we know and need to know about Online Dispute Resolution. South Carolina Law Review. Columbia, v. 67, pp. 329-344, 2016. p. 329.
[4] Sobre o tema, Cf.: AMERICAN BAR ASSOCIATION. Addressing Disputes In Electronic Commerce: Final Recommendations and Report of The American Bar Association’s Task Force on Electronic Commerce and Alternative Dispute Resolution. Chicago: American Bar Association, 2002. Disponível em: <https://www.americanbar.org/content/dam/aba/migrated/dispute/documents/FinalReport102802.authcheckdam.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2017. Cf. também: KAUFMANN-KOHLER, Gabrielle; SCHULTZ, Thomas. Online Dispute Resolution: challenges for contemporary justice. The Hague: Kluwer Law International, 2004. pp. 5 e ss.
[5] Os meios de resolução alternativa de litígios (RAL), tradução livre para ADR (Alternative Dispute Resolution), é um conjunto de procedimentos de resolução de conflitos alternativos aos meios judiciais, sendo que alguns mais formais: negociação, conciliação, mediação e arbitragem; e outros menos formais: serviços de atendimento ao cliente, call centers, e a figura do ombudsman.
[6] Sobre o tema, Cf.: PONTE, Lucille. The Michigan Cyber Court: a bold experiment in the development of the First Public Virtual Courthouse. North Carolina Journal Of Law & Technology. Chapel Hill, v. 4, n. 1, pp. 51-92, 2002. pp. 56 e 57. Cf. também: FRIEDMAN, George H; GELMANN, Robert. An information superhighway “on ramp” for alternative dispute resolution. New York State Bar Journal. New York, v. 68, n. 4, pp. 38-42, 1996. Para mais informações, Cf. em <http://www.vmag.org>. Acesso em: 08 nov. 2017.
[7] Desde 1997, o tribunal já oferecia serviços pontuais de mediação e arbitragem on-line.
[8] Cf.: MICHIGAN. Act n. 262. 2001. Disponível em: <http://www.legislature.mi.gov/documents/2001-2002/publicact/pdf/2001-PA-0262.pdf>. Acesso em: 18.fev.2019.
[9] Cf.: Act n. 262 de 2001 (Ibid.), Sec. 8015. “All matters heard in the cyber court shall be heard by means of electronic communications, including, but not limited to, video and audio conferencing and internet conferencing among the judge and court personnel, parties, witnesses, and other persons necessary to the proceeding.” Disponível em: <http://www.legislature.mi.gov/documents/2001-2002/publicact/pdf/2001-PA-0262.pdf>. Acesso em: 18.fev.2018.
[10] Sobre o tema, a professora Wang assim registrou: “(…) The ‘International Cybercourt of Justice’ or ‘International Cybercourt Central’ could be regarded as a full-scale cybercourt, which would benefit participating countries immensely, because it would eliminate problems concerning recognition of foreign judgments. Participating nations would gain the benefit of enforcing cyber laws against foreign individuals in return for agreeing to recognise the international court’s judgments against their own citizens. Any number of consenting countries could create a cybercourt central pursuant to a treaty, convention or any other agreement, similar to the creation of the International Court of Justice, the European Court of Justice or the European Court of Human Rights. The aim should be to create a dispute resolution forum that is just, fair, impartial, convenient, practical and economical for all parties concerned.(…)”. Cf.: WANG, Faye Fangfei. Online Dispute Resolution: technology, management and legal practice from an international perspective. Oxford: Chandos Publishing, 2009. p. 63.
[11] Cf.: artigo 5º, n.1, do Regulamento 524/2013.
[12] Para o professor Félix Valbuena González, a Plataforma RLL tem sido comparada ao sistema multiportas ou, na doutrina inglesa, the multi-door court house, “(…) puesto que recibe las reclamaciones y las deriva a una entidad de resolución alternativa, como evolución de la operativa de un centro de resolución de disputas, donde el conflicto ingresa y tras ser analizado por un operador, éste sugiere a las partes acudir a una de las varias posibilidades para abordarlo (…)” Cf.: GONZÁLEZ, Op. cit., 2015. p. 70. Cf. também: CONFORTI, Oscar Daniel Franco. Mediación electrónica (eMediación). Diario La Ley. Madri, n 8519, 2015. pp. 5 e ss.
[13] Cf.: PASSINHAS, Sandra. Alterações recentes no âmbito da Resolução Alternativa de Litígios de Consumo. In: MONTEIRO, António Pinto (Org.). O contrato na gestão do risco e na garantia da equidade. Coimbra: Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015. p. 376.
[14] Vale dizer que, em Portugal, os centros de arbitragem de consumo de competência genérica não têm competência para tratar reclamações apresentadas por um profissional (arts. 4.º-4 dos regulamentos e 2º, n.2, d, da Lei n.º 144/2015).
[15] Cf.: artigo 5º, n.2, do Regulamento 524/2013. Vale ressaltar que cada Estado membro tem a responsabilidade de coordenar todas as entidades aderentes. Vide artigo 5º, n.5, do Regulamento UE 524/2013. Cf.: Lista atualizada das entidades: Disponível em www.arbitragemdeconsumo.org. Acesso em: 19.dez.2017.
[16] Vide artigo 2º do Regulamento 524/2013.
[17] O objeto do estudo não se aplica aos contratos de venda ou contratos de serviços que não sejam celebrados em linha. Cf.: artigo 2º, n.1, da Lei n. 144/2015.
[18] A experiência do eBay é no sentido de que os projetos de sistemas ODR devem evitar requisitos específicos que limitam a flexibilidade dos disputantes e administradores para evoluir sistemas ODR que melhor compreendam os vários tipos de disputa, mercados e anseios de consumidores. Nesse sentido, entende-se da seguinte forma: “(…) Where possible, ODR rules should articulate higher level process requirements and values (e.g. due process, transparency, impartiality) as opposed to detailed procedural requirements (e.g. three neutrals per case, seven days to respond)(…)”. Cf.: DUCA, Louis Del; RULE, Colin; RIMPFEL, Kathryn. eBay ’s De Facto low value high volume resolution process: lessons and best practices for ODR systems designers. Arbitration Law Review. Old Main, v. 6, pp. 203-219, 2014. pp. 219 e ss. Sobre o tema, o Professor Richard Susskind pontuou: “(…) A staggering 60 million disagreements arise each year amongst eBay users, hardly any of which reach conventional courts. Instead, ODR is used – swiftly, cheaply and usually to good effect (…)”. Cf.: SUSSKIND, Op. cit., 2015.
[19] Os professores Arno Lodder e John Zeleznikow entendem que o modelo ideal das ODRs, para ter maior efetividade, deve ter a seguinte sequência: a) No primeiro plano, a plataforma de suporte à negociação deve fornecer feedback sobre o (s) resultado (s) provável (eis) da disputa; b) Em segundo lugar, a plataforma deve tentar resolver quaisquer conflitos existentes usando as técnicas de diálogo; b) Em terceiro lugar, para as questões não resolvidas no segundo instante, a plataforma deve empregar análises de decisão técnicas e estratégias de compensação para facilitar a resolução da disputa. Se as partes não chegarem a um denominador comum, ainda existem outras formas adequadas de Resolução Alternativa de Disputas, como o caso da arbitragem. Sobre o tema, Cf.: LODDER, Arno R; ZELEZNIKOW, John. Artificial intelligence and online dispute resolution. In: Online Dispute Resolution: Theory and practice a treatise on technology and dispute resolution. The Hague: Eleven International Publishing, 2012. pp. 73 e ss.
[20] Cf.: SUSSKIND, Op. cit., 2015.
[21] Cf.: DUCA, Louis Del; RULE, Colin; LOEBL, Zbynek. Facilitation expansion of crossborder ecommerce- developing a global online dispute resolution system. Penn State Journal of Law & International Affairs. Old Main, v. 1, n. 1, pp. 58-85, 2012. pp. 62 e ss.
[22] No Brasil, um processo que venha a tramitar na Justiça estadual tem lapso temporal médio de 2 anos e 9 meses na primeira instância (fase de conhecimento), de 1 ano na segunda instância (fase recursal) e de 5 anos e 2 meses na fase de execução, totalizando um tempo médio total de 8 anos e 11 meses. Cf.: BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2017: ano-base 2016. 2017. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf>. Acesso em: 22.fev.2018).

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