Opinião

Uma abordagem psicossociológica da Advocacia-Geral da União

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25 de fevereiro de 2019, 14h00

Há cerca de 15 anos estamos pesquisando a advocacia pública nacional, publicando livros e artigos que abordam os vários aspectos dessa relevante função essencial à Justiça, à luz da Constituição Federal de 1988. Mais recentemente, esses estudos têm focado uma série de aspectos metajurídicos, que influenciam a organização e o funcionamento dos órgãos da advocacia pública, principalmente da Advocacia-Geral da União.

O escopo deste artigo é analisar, sob os prismas sociológico e psicológico, a identidade institucional dos membros da Advocacia-Geral da União. Nesse sentido, partiremos de duas indagações mais amplas: “como esperar coesão por parte de agentes públicos que atuam num mesmo órgão, mas sem princípios expressos que guiem sua atuação coletiva? Como esperar que a sociedade reconheça uma instituição cujos membros somente se preocupam com suas atividades individuais, sem compartilhar valores que permitam planejar e efetivar metas organizacionais?”[1].

O motivo para esses questionamentos é o fato de, 26 anos após a criação da Advocacia-Geral da União, ainda serem poucos os estudos publicados acerca dessa instituição. Isso, certamente, decorre do reduzido nível de coesão interna na AGU e de uma indefinição nos princípios que regem sua atuação institucional. Nesse cenário, a ciência jurídica não possui todas as respostas para os dilemas que afligem a Advocacia-Geral da União, devendo-se buscar subsídios noutros campos do conhecimento, visando melhor compreender sua organização e seu funcionamento.

Considerando tais premissas, dois aspectos serão considerados neste artigo, haja vista seu influxo sobre a identidade institucional dos membros da Advocacia-Geral da União: a) o elevado número de cargos em comissão (ou funções comissionadas) na estrutura da AGU; b) a existência de quatro carreiras na advocacia pública federal.

Num artigo recentemente publicado, a advogada da União Vanessa Affonso Rocha demonstrou que: “a AGU se utiliza de mais cargos comissionados/funções comissionadas do que Ministério da Justiça + Defensoria Pública Federal + Polícia Federal + Polícia Rodoviária Federal, tudo na forma dos decretos de estrutura regimental vigentes”. Nesse contexto organizacional, “cada ‘parcela de poder’ representada pelos cargos em comissão acaba por tornar-se um pequeno mundo particular, o que, em vez de garantir a uniformidade de atuação, acaba por afastá-la”[2].

Decerto, o principal impacto dessa profusão de cargos em comissão (ou funções comissionadas) ocorre sobre a identidade institucional dos membros da Advocacia-Geral da União, afastando-a do seu enquadramento constitucional como função essencial à Justiça. A esse respeito, num detalhado estudo acadêmico sobre a AGU, Adriano Martins de Paiva elucida que:

“O uso dos cargos comissionados reflete uma tendência maior da Advocacia-Geral da União à sujeição de mecanismos de manutenção da lealdade política com o projeto de governo em execução do que a neutralidade burocrática.

[…]

O uso do cargo de DAS[3] como ferramenta de controle não só burocrático mas também político pode ser considerado a partir das respostas dos próprios advogados da União, ocupantes ou não desses cargos, os quais em sua maioria consideram relevante o comprometimento do ocupante do cargo em comissão com a política do governo”[4].

A partir dos questionários distribuídos aos membros de dois órgãos de direção superior da AGU, Adriano Martins de Paiva chegou ao seguinte resultado: “60% entendem que a Presidência da República e os ministros dos gabinetes e gestores exercem influência no trabalho por eles desempenhado”[5].

Todo esse quadro possui duas principais consequências, num viés sociológico:

a) vários membros da AGU deixam de se identificar como advogados públicos de Estado (responsáveis por uma atuação estritamente técnico-jurídica), passando a identificar-se como agentes governamentais, alinhados com as cambiantes e partidárias diretrizes políticas;

b) a AGU passa a dividir-se em duas realidades funcionais: b.1) aquela dos ocupantes de cargos em comissão ou funções comissionadas, os quais tendem a uma maior identificação com as políticas governamentais; b.2) aquela dos membros que não ocupam cargos em comissão ou funções comissionadas, muitos dos quais se ressentem da pouca participação na definição dos rumos da Advocacia-Geral da União.

Essas divisões internas são agravadas pela existência de quatro carreiras na AGU, com distintas atribuições e órgãos de lotação, quais sejam: advogados da União, procuradores da Fazenda Nacional, procuradores federais e procuradores do Banco Central do Brasil. Sob o prisma psicológico, isso contribui para a formação daquilo que Freud denomina de “narcisismo das pequenas diferenças. Trata-se do “fenômeno das comunidades vizinhas, e sob outros aspectos também muito próximas, que se atacam […] umas às outras”[6]. Esses dissensos na advocacia pública federal remontam à própria criação da AGU, como afirma Paulo Álvares Babilônia ao analisar a Constituinte de 1987/1988: “a desunião e o confronto de forças entre os membros da própria Advocacia de Estado, que se apresentaram divididos e contrapostos em relação à proposta de se criar uma nova instituição jurídica no âmbito da União”[7].

Tendo em vista esses aspectos sociológicos e psicológicos, é compreensível o fato de poucos membros da AGU se dedicarem ao estudo da própria instituição, publicando artigos e livros acerca dessa função essencial à Justiça. Como bem sintetiza Freud, “nenhuma outra técnica de condução da vida ata o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a insistência no trabalho, que ao menos o inclui com segurança numa parte da realidade, da comunidade humana”[8]. Ocorre que, “para que sensações, representações, pensamentos etc. alcancem uma certa importância mnêmica, é necessário que não permaneçam isolados, mas estabeleçam conexões e associações do tipo apropriado”[9].

Em suma, é muito desafiador estudar uma instituição marcada por divisões entre carreiras, entre atribuições, entre ocupantes e não ocupantes de cargos comissionados, espalhados por centenas de órgãos num país de dimensões continentais. Nesse emaranhado de visões díspares e autoimagens distorcidas, qualquer membro da AGU poderia corroborar aquele personagem de Dostoiévski, para quem: “Tudo se pode dizer da história […]. Só uma coisa não se pode dizer: que ela seja sensata”[10].


[1] MACEDO, Rommel. AGU deve se legitimar institucionalmente efetivando seus princípios. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jan-08/rommel-macedo-agu-legitimar-efetivando-principios>. Acesso em 22 fev. 2019.
[2] ROCHA, Vanessa Affonso. Problema de cargos e funções na AGU e em outros órgãos é a má distribuição. Disponível em <https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/problema-de-cargos-e-funcoes-na-agu-e-em-outros-orgaos-e-a-ma-distribuicao/>. Acesso em 22 fev. 2019.

[3] Cargos em comissão.
[4] PAIVA, Adriano Martins de. Advocacia-Geral da União: instituição de Estado ou de governo?. São Paulo: LTr, 2015. p. 96.
[5] Ibidem, p. 96.
[6] FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 128-129.
[7] BABILÔNIA, Paulo Álvares. Advocacia-Geral da União: dos bastidores da Assembleia Constituinte de 1988 aos dias atuais. Brasília: Trampolim Jurídico, 2018. p. 306-307.
[8] Ibidem, p. 70.
[9] FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. v. 1. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2018. p. 61.
[10] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do subsolo. Trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre: L&PM, 2018. p. 40.

Autores

  • é advogado da União e mestre em Direito. Foi conselheiro seccional e presidente da Comissão da Advocacia Pública e do Advogado Empregado da OAB-DF (2010-2012), coordenador científico da pós-graduação Lato Sensu em Advocacia Pública, coordenador-geral substituto de Processos Judiciais e Disciplinares da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça, coordenador-geral de Análise de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e coordenador jurídico de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Comunicações.

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