Opinião

Nossas penitenciárias são verdadeiros campos de extermínio

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24 de fevereiro de 2019, 16h05

Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo, maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.”
(Pe. Antônio Vieira)

Não são antinomias ou contradições inerentes ao intelecto humano. É descumprimento franco e aberto da Constituição Federal. Quem não tem coragem de chamar nossos presídios de “campos de extermínios” inertemente opta pela enganadora fórmula denominada: “estado de coisas inconstitucional”.

O que antes denominávamos “promessas” a serem implementadas, hoje, passados mais de 30 anos, convolaram-se em mentiras constitucionais brasileiras.

Se não bastassem as abusivas prisões processuais midiáticas, aniquilando irremediavelmente reputações, para posterior aferição de inocência ou grau de culpa, desfila eloquente diante de nossos olhos, em caos humanitário, um cruel e pervertido sistema prisional que não respeita limite físico de ocupação, sem quaisquer possibilidades de ressocialização, em absoluto abandono das diretrizes da Lei de Execuções Penais. Enquanto isto, bocejante, nosso Judiciário vive dias de Pilatos, referendando absurdos e cada vez mais coveiro que guardião dos direitos fundamentais. Nossas presumidas “casas de penitência” são campos de extermínio que corporificam o inferno de Dante: lasciate ogni speranza, voi ch’entrate (“deixai aqui toda a esperança, vós que entrais”).

A marcha é inversa ao experienciado processo civilizatório de influxo cristão. O próprio cristianismo, que imaginamos cultuar no Brasil, claudica sonambulamente, enceguecido aos seus basilares ensinamentos: “não vim chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento”.

Assim, como muitos cristãos do Brasil não têm praticado a verdadeira filosofia cristã, a quase unanimidade de juízes brasileiros, embora prometam solenemente em suas cerimônias de posses, não cumprem nosso Direito posto (perjúrio democrático). Sem vergonha alguma e em completa irracionalidade, impõem despoticamente suas vontades pessoais e transtornos obsessivos compulsivos, ao tempo em que, hipocritamente, travestidos de legalistas e sem assegurar sequer as “Regras de Mandela”, criticam regimes prisionais ditatoriais de países como Coreia do Norte, Venezuela, Cuba, China e Rússia, como se Auschwitz-Bikernau e Treblinka não fossem aqui e agora.

É forçoso admitir que vivenciamos a opressiva ditadura togada que subverte a ordem, contra expressos ditames constitucionais, com o colaboracionismo do jornalismo sensacionalista, que, com suas deturpadas versões dos fatos, passa aos inscientes que nossas prisões são espécies de “colônias de férias”, estimulando a paranoia coletiva. E estes mesmos incautos, de pronto, inundam as redes sociais com suas falsas impressões.

O macabro espetáculo do “indevido processo ilegal” é imposto, e seus protagonistas, maliciosamente, fazem a massa ignara crer que estão “prestando um relevante serviço à nação”. Na outra ponta, autênticos magistrados, cada vez mais raros, sofrendo bullying dos ladrões da liberdade e do Estado Democrático de Direito. Nos seus delírios medonhos, profanadores discípulos de ninguém se autoproclamam deuses, fazendo dos processos espécies de “juízos finais” com seus tronos, anjos, trombetas e execrações públicas.

Voltando aos campos de extermínio, a nossa mentirosa Constituição Federal enuncia: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Nosso descumprido Código Penal traz em seu artigo 38: “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades respeito à sua integridade física e moral”. E sua fraudulenta parceira, a Lei de Execuções Penais, estabelece: “impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios”. Mesmo nossa falsa lei, que trata da tortura, tipifica: “submeter alguém, sob guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”, ou, “aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena…”. Para fechar este quadro de incontáveis inverdades legislativas brasileiras, nossa iludente maior, em seu artigo 5º, XLI, traz: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Que o digam nossos ruidosos delinquentes processuais, vitalícios carreiristas de estado…

Entre incontáveis exemplos que a advocacia criminal brasileira tem testemunhado, no pedido de Habeas Corpus protocolizado em 29 de janeiro no STF, que figuro como impetrante, juiz de primeira instância, TRF-4, STJ e STF negaram direito cristalino de preso provisório, com câncer e septuagenário, em ter acesso a exames e cirurgia tida como a única capaz de dar-lhe chances maiores de sobrevida. No preâmbulo da peça, destacamos:

“Lamentavelmente, Instâncias inferiores parecem ter perdido a exata noção do limite divisor do que venha a ser penitenciária e campos de extermínio. O paciente, septuagenário, com dores indescritíveis, está em situação de doença irreversível (câncer), com medicamentos e indicação de cirurgia, pelo próprio Complexo Médico Penal.

Apesar de toda a prova anexada teve, impiedosamente, negado seu pedido de prisão domiciliar, com monitoramento, para poder realizar os exames prévios e a própria cirurgia. Apenas uma Desembargadora[1], que restou vencida no TRF4, teve a sensibilidade de realmente aplicar o direito à espécie. Insensibilidade, teratologia e flagrante ilegalidade, saltam aos olhos”.

Com este quadro clínico[2], a defesa técnica pugnou para que a autoridade coautora, obviamente, concedesse providências urgentes a fim de viabilizar os atos preparatórios da cirurgia do paciente, eis que a demora agrava o quadro e aumenta a dor, em decorrência de o tumor comprimir o nervo ciático. Inacreditavelmente, repita-se, foi negado o pedido em todas as instâncias.

É a advocacia que faz a interlocução entre decisões judiciais e os seus destinatários. Registramos aqui o marcante momento no parlatório do Complexo Médico Penal de Curitiba, do dia em que demos ao preso conhecimento das impiedosas negativas de seu tratamento conducente a cirurgia, os inesquecíveis gritos de dor e indignação de um ser que deve ser considerado humano, apesar e acima de quaisquer acusações ainda não devidamente processadas ou julgadas, que não podem ser ignorados por expressar falta de compromisso do Judiciário mesmo com a vida das pessoas.

Não vislumbro juridicamente nem a montanha, quanto mais o túnel e a possível luz no final dele, pois a cada minuto que passa as chances de sobrevida do paciente tecnicamente diminuem e as dores aumentam. Qualquer médico, ainda que não especializado no tema do quadro clínico do paciente, concluirá pela gravidade e extrema urgência.

Em sofisticado arremedo dos idealizadores da década de 1940, a “solução final” à brasileira é que, em nossos campos de extermínio, uns matem os outros e que morram todos de doenças ou por ordens das facções criminosas, toleradas pelo sistema, que devem até ser vistas como “úteis” pelos déspotas punitivistas na medida em que asseguram eliminação dos “indesejáveis”. E todos o são!

Aliás, agora pretendem “evoluir” o Direito Penal para a era da “vingança pública”, com penas de mortes sumárias aplicadas pelas polícias, sob falácias de “novas excludentes”. Em perspectiva, “forças tarefas de extermínios”, calamidades artificiais e trevas!

Com o desrespeito devido, qual a diferença de Guantánamo para o que eles denominaram “presídios de segurança máxima”?

No caso do nosso Habeas Corpus e terrível trato, convidarei todos os magistrados que atuaram nele e pessoal dos seus gabinetes para o previsível e breve enterro do paciente, para que a advocacia não fique sozinha testemunhando o sangrar da desprotegida cidadania brasileira. Sei que os ímpios não irão e dirão friamente apenas que “a morte extingue a punibilidade”.

É a imposição oblíqua da pena capital que a sedutora CF diz que “não haverá” ou, pior que ela, o que restar da vida nesses ambientes degradantes de penas cruéis que a embusteira, no mesmo artigo, também diz que “são vedadas”.

Tem razão Lenio Streck: “Hoje, defender a legalidade constitucional é um ato revolucionário”.

Subversivos são eles. Queremos apenas o Brasil conforme a Constituição Federal prometeu! O rei está nu!


[1] Judicioso voto vencido da desembargadora da turma julgadora do TRF-4: “Pedi vista para melhor exame da situação fática posta nos autos e, detidamente analisados, concluo por divergir da Relatora, especificamente no que respeita à possibilidade de concessão da prisão domiciliar. Segundo se depreende, o paciente é comprovadamente portador de neoplasia mesenquimal liomatosa atípica desde 2011, com indicação de tratamento cirúrgico eletivo que não pode ser realizado no Complexo Médico Penal em que se encontra custodiado. Entretanto, parece-me que o feito comporta solução diversa. Nos termos do artigo 318, II, do CPP, a prisão preventiva pode ser substituída por prisão domiciliar na hipótese de o agente estar extremamente debilitado por doença grave. O paciente possui doença grave – neoplasia -, e embora não esteja extremamente debilitado, possui 70 anos de idade e relata dores insuportáveis em razão da compressão do nervo ciático pelo tumor. De fato, compulsando os documentos acostados pela defesa com a inicial, verifica-se que o resultado de ressonância magnética realizada em 21/11/2017 (há mais de um ano) aponta lesão de tamanho significativo na coxa esquerda, a qual está em íntimo contato com o nervo ciático (evento 1, EXMMED13). Ademais, embora a doença esteja evoluindo lentamente desde 2011, é possível verificar-se o surgimento de nova lesão não existente anteriormente. Por outro lado, há indicação de tratamento médico cirúrgico eletivo, o qual, embora não seja de urgência, é capaz de aliviar as dores sentidas pelo paciente, em razão da extração do tumor. Tal tratamento cirúrgico não é disponibilizado no Complexo Médico Penal em que se encontra custodiado. Assim, entendo que é caso de deferir parcialmente a ordem, a fim de conceder a prisão domiciliar ao paciente, associada ao monitoramento eletrônico (artigo 319, IX, do CPP), oportunizando que faça o tratamento médico indicado. Acrescento que a medida poderá ser, a qualquer momento, reapreciada pelo juízo de origem, nos termos do disposto no artigo 282, § 5º, do CPP. Ante o exposto, voto por conceder parcialmente a ordem, nos termos da fundamentação…” (HC/TRF4 50459047620184040000).
[2] A pedido dos impetrantes, em Curitiba, o médico do Complexo Médico Penal enfatizou:
“Atesto para fins médicos que o sr. (fulano de tal), foi atendido em consulta no dia 28.nov.2018 no CMP. Com diagnóstico de tumoração em coxa esquerda há +- 1 ano. Sendo que o mesmo deverá realizar uma cirurgia de caráter eletivo para tratamento da patologia, sendo que o mesmo já possui médico assistente. E este tipo de cirurgia não poderá ser realizado neste CMP. Quanto aspecto de dor o mesmo está sendo medicado e aguarda tratamento cirúrgico no momento não apresenta deficit motor, vascular e neurológico”.

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