Crime e Castigo

A jurisdição criminal brasileira: propostas para o milênio

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

24 de fevereiro de 2019, 10h20

Spacca
O Judiciário brasileiro atual, que se formou e se consolidou na segunda década do século XXI, tem características bastante diferenciadas da magistratura atuante no final do século XX.

De forte colorido ideológico, o juiz médio da atualidade nega possuir qualquer ideologia e imputa aos demais, que pensam de forma diferente sobre quaisquer questões, a submissão a doutrinas e a obediência a direcionamentos partidários. O magistrado médio define-se como neutro e faz juras de amor eterno à técnica e à isenção. Por mau uso dos conceitos teóricos, ele desconhece que ideologia é o conjunto de pressupostos, compreensões e concepções que definem o modo de pensar e de ser no mundo. Não percebe que é impossível não ter ideologia e que é uma cegueira egocêntrica se imaginar não ideológico — neutro —, imputando o epíteto ao outro que lhe é contrário.

Faz parte da ideologia dominante no Judiciário de hoje o moralismo, o punitivismo, o conservadorismo, a intolerância e o desejo de ruptura com regras de igualdade racial, religiosa e sexual, e também alguma fobia de compreensões econômicas apoiadas na igualdade. Também há fobias de liberalismo comportamental que sempre fora uma bandeira de compreensões liberais ocidentais, sem qualquer vinculação com o comunismo e muito menos com o marxismo.

A ideologia dominante no Judiciário cria o juiz legislador, o juiz ativista, o juiz moralista e o juiz iluminado. Tais perfis têm ocupado de tal modo espaço na sociedade brasileira que o equilíbrio entre os Poderes e a sua salutar divisão encontram-se sensivelmente ameaçados. O juiz de hoje não é mais um árbitro: é um combatente; é um jogador. Não é correto falar — ainda — na ditadura da toga ou em golpe de toga, mas é fácil observar um ameaçador grau de invasão das decisões judiciais na seara dos Poderes Legislativo e Executivo. Essa hiperbolização do Judiciário vem sempre acompanhada de argumentos de superioridade moral e qualidade pessoal do julgador, o que é no todo perigoso, para dizer o mínimo, pois, de fato, é assustador.

Isso claramente se demonstra quando observamos os fundamentos das prisões cautelares. Tais encarceramentos, em sua maioria, são vinculados a conceitos abstratos, à materialidade do crime, à prova do delito e à sua repercussão midiática. São prisões que têm por objetos fatos pretéritos, que de forma alguma poderiam justificar aprisionamento preventivo.

Nesse aspecto, o Judiciário superinterpreta o Direito Processual Penal e reduz a esfera de liberdade do cidadão, tudo a partir de um ativismo criacionista repressor, corroborando teses de legitimação do hiperencarceramento e hipertrofiando a exclusão social, a partir do Direito Penal.

Por diversos fatores que talvez possam ser explicados sociologicamente e psicologicamente, os juízes criminais da segunda década do século XXI são mais afetos a punições e encarceramentos exagerados do que comprometidos com o respeito aos direitos fundamentais e às garantias do devido processo legal.

Isso em parte se explica quando percebemos estas características como integrantes de um movimento geracional de natureza global, que contempla os desejos de lei e de ordem. Tais desejos acoplam-se à ideia de que mais prisões trazem mais segurança e colocam mais ordem na sociedade.

Demais disso, o crescente gosto pelo ativismo judicial imbrica-se com uma compreensão cada vez mais heroica do papel do juiz na sociedade. É como se coubesse ao magistrado o protagonismo e a liderança na luta contra as mazelas do mundo e também a correção dos males da sociedade. A postura ativista chega às raias do descenso da imparcialidade e se imola num autêntico complexo Marvel, no qual o juiz é tomado pelo desejo de super-herói, pela responsabilidade de guia e líder de todos na busca por melhores dias.

Tudo que um juiz não deve ser e não poderá jamais ser.

Na última década o Judiciário vem sendo colonizado por compreensões acerca do mundo que não são fruto da vivência cotidiana nem possuem origens em quaisquer atividades humanas que permitam compreensão minimamente empírica da vida. A era da virtualidade se impôs, e a compreensão PlayStation do universo — onde tudo é um jogo de videogame — tomou de assalto o Judiciário.

A alegoria do bacharel em Direito que passa as noites e os dias alternando o foco entre resumos pré-fabricados e o joystick do videogame — sempre com jogos de tiro em primeira pessoa — e ao passar no concurso — com ajuda de um coach — se vê como macho alfa é mais presente do que nunca.

A Justiça criminal se vê repleta de punitivistas com pendores salvacionistas que se utilizam do ativismo judicial para punir mais, condenar mais, desconhecendo o Direito Positivo Penal e Processual Penal e os direitos e garantias fundamentais.

Em parte, o que pode ser caracterizado como uma onda é também fruto de um status de impunidade, que transformou em fetiche a ampla defesa, ao encobrir atos de total inaplicação ou aplicação seletiva do Direito Penal sob o manto das garantias. A impunidade chegou às raias do absurdo e contribuiu para esta viragem de 180 graus.

Punia-se mal, absolvia-se muito e punia-se seletivamente. Continuamos a punir mal e seguimos sendo seletivos. Os polos se inverteram, mas continuamos a aplicar mal o Direito Positivo.

Por essas razões, o senso comum dos juízes exige e trabalha pela punição, além do que a mídia dispersa, a mídia concentrada e as redes sociais passaram a não somente valorizar o juiz condenatório como também a desvalorizar e perseguir o magistrado não punitivista. É corrente o estigma negativo de garantista, mesmo que Luigi Ferrajoli nada tenha a ver com as decisões absolutórias por falta de provas ou com o desfazimento de cautelares absurdas. Menos ainda quando o caso é de pura aplicação direta de texto legal.

O frágil juiz passou a seguir as exigências midiáticas e o senso comum, segue encorpando a onda por mais punição e menos absolvição, mesmo que isso signifique prisão sem justa causa e condenação sem provas. A onda gera uma autêntica covardia institucional mesclada com negação do Direito Positivo.

O caminho a ser seguido parece claro: a) desacoplar o pensamento do juiz criminal do senso comum das redes sociais; b) aplicar o Direito Positivo Penal e Processual Penal independente do desejo da maioria; c) reduzir o ativismo judicial penal aos limites da Constituição; d) reduzir o protagonismo político do juiz e o consequente desequilíbrio entre os Poderes.

A compreensão segundo a qual a atividade judicante precisa se recolher aos limites que a Constituição e o jogo democrático lhe impõem é fundamental para o equilíbrio da sociedade.

Em palavras muito claras, nunca foi tão necessário reverenciar Kelsen.

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    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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