Federação americana

Suprema Corte dos EUA limita confisco de bens de traficante

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23 de fevereiro de 2019, 8h32

A prática de governos estaduais e municipais de impor multas e confiscar bens de maneira desproporcional à gravidade de infrações ou delitos foi significativamente limitada pela Suprema Corte dos EUA. Diversos estados, condados e municípios adotaram essa prática de cobrar multas e de confiscar bens em valores exorbitantes como forma de aumentar suas receitas.

Liountmila Korelidou
Suprema Corte declarou que cobranças exorbitantes minam outras liberdades constitucionais do cidadão.
Liountmila Korelidou

Em voto unânime, a Suprema Corte declarou que cobranças exorbitantes minam outras liberdades constitucionais do cidadão. “Multas excessivas podem ser usadas, por exemplo, para retaliar contra inimigos políticos ou reprimir suas falas. Mesmo sem motivação política, multas podem ser empregadas em uma medida que não está de acordo com os objetivos penais de retribuição e prevenção”, escreveram os ministros.

O caso perante a Suprema Corte se referia a confisco exorbitante de bens. O estado de Indiana confiscou o carro de Tyson Timbs, uma SUV Land Rover, que ele havia acabado de comprar por US$ 42 mil, com dinheiro que recebera do seguro após a morte do pai. Quando ele foi preso por vender o equivalente a US$ 200 em heroína a dois policiais disfarçados, o estado confiscou a SUV com o argumento de que Timbs a usava no tráfico.

Depois de confessar a culpa por traficar uma substância controlada e conspirar para cometer roubo, Timbs foi sentenciado a um ano de prisão domiciliar e cinco anos de sursis, que incluiu a obrigação de fazer tratamento contra uso de drogas, uma vez que era usuário, e o pagamento de uma multa de US$ 1.203.

Em uma audiência para discutir o confisco, o juiz de primeiro grau decidiu que o valor de US$ 42 mil do veículo era exorbitante — mais de quatro vezes o valor máximo de US$ 10 mil que deveria ser aplicado a Timbs pelo delito que cometeu. E, portanto, o confisco da SUV era inconstitucional.

O Tribunal de Recursos de Indiana manteve a decisão, mas o Tribunal Superior do estado a anulou. O Tribunal Superior não decidiu se o confisco foi excessivo. Em vez disso, decidiu que a cláusula constitucional sobre multas excessivas restringe apenas ações federais e não se aplica aos estados, de modo algum.

Essa cláusula faz parte da Oitava Emenda da Constituição dos EUA, que diz: “Fiança excessiva não deve ser exigida, nem multas excessivas impostas, nem punições cruéis e incomuns infligidas”.

A Suprema Corte já havia decidido que dois desses comandos da Constituição do país se aplicam aos estados: os que se referem a fiança excessiva e punições cruéis e incomuns. Agora, pela primeira vez, a corte decidiu que a cobrança monetária excessiva, através de multas ou confisco, também é uma proibição constitucional que se aplica a governos estaduais e municipais.

Federal x estadual
Nem tudo que está na Constituição do país se aplica aos estados. Por exemplo, a Sexta Emenda da Constituição requer unanimidade nas decisões do júri na Justiça criminal federal, mas não na Justiça criminal estadual. 

Para entender por que a Suprema Corte tem de declarar que tais cláusulas constitucionais se aplicam ou não aos estados, é preciso entender que a federação dos Estados Unidos pouco se parece com a brasileira, onde muito poder se concentra nas mãos do governo federal.

A federação americana tem várias características que a distinguem, como a da divisão de poderes. O governo federal e cada governo estadual funcionam dentro de uma esfera de funções separadas. A federação americana também é caracterizada pela administração dupla — uma comum a todos os cidadãos do país, que é a do governo federal, e outra comum aos cidadãos de cada unidade federativa, que frequentemente varia de estado para estado.

Na federação americana, todos os cidadãos têm dupla cidadania: uma uniforme, de todo o país, e outra do estado em que o cidadão reside. Isso está previsto na 14ª Emenda da Constituição dos EUA: “Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à jurisdição do mesmo são cidadãos dos Estados Unidos e do estado onde elas residem”.

Assim, na vida cotidiana, um cidadão é, antes de tudo, um cidadão da Flórida, da Califórnia ou de qualquer outro estado, antes de ser um cidadão americano. Por exemplo, não há no país uma carteira nacional de habilitação. Cada estado tem sua carteira de motorista — e, na falta dela, uma carteira de identidade.

Se o cidadão se muda de um estado para outro, tem de um a seis meses para adquirir a carteira de motorista (ou de identidade) em seu novo estado de residência. Se um casal quiser se divorciar, só pode fazê-lo nas cortes locais se morar no estado por seis meses ou, em outros, por um ano.

Os estados têm uma enorme autonomia administrativa, econômica e jurídica — incluindo tributária. Cada estado cobra seu próprio imposto de renda, em alíquotas variadas — em alguns, a alíquota é zero.

Cada estado tem sua própria estrutura judicial, com tribunais de primeiro grau, tribunais de recursos e tribunais superiores. O país só tem uma Suprema Corte, mas a maioria dos estados, que têm um alto grau de soberania, chama seu tribunal superior de “Suprema Corte do Estado de…”.

Leis federais à parte, cada estado faz suas próprias leis. Assim, na maioria dos casos, a legislação vigente no país é uma colcha de retalhos. Por exemplo, se alguém perguntar como está a legalização da maconha nos EUA, a resposta é: o governo federal não legalizou; 10 estados legalizaram para uso recreativo; 18 estados legalizaram para fins medicinais; os demais estados ainda não tomaram medidas legislativas.

Os advogados precisam fazer exame de ordem e obter licença em cada estado que quiserem atuar. De outra forma, terão de trabalhar com advogados correspondentes.

Em muitos casos, os estados peitam o governo federal e até mesmo a Suprema Corte. É por isso que a Suprema Corte tem, às vezes, de dizer aos estados que tais comandos da Constituição se aplicam a eles e outros, não.

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