Senso Incomum

Uma proposta séria para fazer a plea bargain a sério!

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21 de fevereiro de 2019, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Quem me inspirou a escrever esta coluna foi o Elio Gaspari, na Folha de domingo. Preocupado com a importação “a bangu” de institutos, Gaspari diz:

Oito em cada dez magistrados brasileiros querem importar o instituto saxônico do "plea bargain" sem que exista sequer tradução consolidada dessas palavras para o português. O ministro Sergio Moro fala em "solução negociada". Trata-se de aceitar que um réu reconheça sua culpa, negocie um acordo com o Ministério Público e obtenha alguma leniência do juiz. Muito bonito na teoria, mas a prática será outra.

O Brasil importou o mecanismo da delação premiada e criou o monstrinho da doutrina da "bosta seca". (…) … poucas delações foram anuladas por mentirosas.

O direito saxônico funciona melhor que o brasileiro, mas a pirataria de mecanismos obrigará orquestras de frevos a tocar rock.

Tenho aqui referido que fazer barganha penal por aqui, simplesmente pensando que aqui é o common law, pode repetir a gambiarra que foi/é a delação premiada (ou premiadíssima), sem critérios e sem controle, ao ponto de o Supremo Tribunal Federal anular ações baseadas apenas na palavra do delator.

Alertei para a crise da plea bargain nos EUA. Alertei para a falta de prognose do pacote “anticrime” [sic] de Moro. Mas parece que grande parte da comunidade jurídica é a favor. Gaspari alerta: oito em cada dez magistrados. Conselho nacional de Procuradores-Gerais do MP já se manifestou a favor. Fóruns de magistrados também. O Parlamento parece que também aprovará. Provavelmente, de cambulhada.

Bom, já que a aprovação é inevitável, tentemos redução de danos. Ou seja, resta-nos colocar salvaguardas. Lembro que, por ocasião do pacote das dez medidas, um grupo expressivo de parlamentares tentou colocar um conjunto de medidas que defenderiam a sociedade (e os réus) de arbitrariedades. Eram as medidas que puniam o abuso de poder. Bom, não passou nem um, nem outro pacote. Agora Moro repristina algo parecido com as dez medidas. Mas não propõe nenhuma salvaguarda ou garantia contra o arbítrio.

Bem, vamos lá. Às salvaguardas.

Parece evidente, primeiro, que são necessárias medidas de anteparo ao abuso de poder/abuso de autoridade. Devemos colocar essas salvaguardas.

A primeira coisa a fazer é tirar o Ministério Público de seu papel de agir estrategicamente, isto é, o MP deve agir como um magistrado, atuando de forma isenta-imparcial. Que tipo de acordo vai sair entre duas partes quando uma delas não precisa ser imparcial, como diz o TRF-4 sobre o MP?

Imaginemos, então, uma lei autorizando a barganha sem anteparos. Perigoso. Pois esse é o pacote de Moro. Por isso, além dos mecanismos de coibir abusos, há um modo de trazer (um pouco de) tranquilidade à barganha tupiniquim.

Como fazer? Simples. Basta que se obrigue ao MP trazer à baila, (aos autos, ao inquérito, ao processo) também TODOS os elementos favoráveis à defesa, como, aliás, exigem o Estatuto de Roma, incorporado desde 2002 ao direito brasileiro. Está no artigo 54, “a”, que diz que a acusação deverá

A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.

É muito claro. Quer à acusação… quer à defesa. Fica, pois, a sugestão (que venho fazendo de há muito).

É o mesmo que exige a US Supreme Court desde 1963: por uma questão de due process, a promotoria tem um dever constitucional de trazer aos autos tudo que puder inocentar o réu. Ah, vejam o alerta do editorial do NY Times: não basta reconhecer a obrigação; se a regra não for imposta, se não houver responsabilização a quem não a seguir, o negócio não funciona. Para bonito não serve.

Detalhe. O Estatuto de Roma copiou esse mecanismo “anti-agir-estratégico do MP” lá da Alemanha. Querem ver? Leiamos o que diz o parágrafo segundo da seção 160 do CPP da Alemanha. O dispositivo diz, e traduzo livremente, que

“[o] ‘Ministério Público deve buscar [no sentido de investigar] não apenas as circunstâncias incriminatórias como também as que exoneram [o réu].” („Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist.“

Está aqui, e já falei sobre isso aqui. Insisto. E insisto. Aqui está a maior salvaguarda.

Portanto, trazendo às claras: uma das medidas de accountability seria, além da exigência de que qualquer investigação do MP também deva ser feita para buscar a verdade inclusive a favor da defesa, seria a de punir ao agente que, de algum modo, deixasse de apresentar elementos objetivos a favor do réu (ou do barganhante, no caso de a ação não ser instalada por efeito do plea). Sabem por que isso? Imagine um caso em que, havendo elementos a favor do indiciado, este aceita o acordo porque desconhece os elementos que poderiam levar ao arquivamento ou à sua absolvição. Deu para entender?

Não se tem tentado importar institutos? Pois é. Não estou inventando nada. O que eu digo está baseado na Constituição do Brasil e o papel que deu ao MP, no CPP Alemão, na Suprema Corte dos EUA e no Estatuto de Roma – já reconhecido pelo Brasil.

Se é para se importar, que se importe direito. Importar pela metade, importar só a parte que se encaixa no discurso dominante que atende à reivindicação “da sociedade” (essa abstração…), da “voz das ruas” (quem disse que é essa “a voz das ruas”? E mesmo que seja, ela vale mais que a Constituição?) … essa importação não serve.

Porque, ora, se for assim, que segurança nós teremos com relação ao tipo de importação que se fará de qualquer outra coisa? Esse é o ponto, e é isso que não se entende quando critico ativismos, subjetivismos, e outros ismos que são aceitos quando nos favorecem.

Qual é a segurança? Que garantia nós temos quando abrimos mão dos critérios? Hoje é para nosso lado. E amanhã? É como dirigente de futebol que aceita o árbitro ladrão. O pênalti mal marcado para o nosso time nesse domingo pode muito bem ser marcado a favor do rival no domingo seguinte. Só que aí não adianta chorar. Quem vibra com gol de mão…

Querem importar? Importem direito. Estou à disposição para ajudar. Importem na íntegra. Afinal, Elio Gaspari alertou:

Piratear mecanismos é obrigar orquestras de frevo a tocar rock.

Por fim, para quem gosta de importar, atente para o que o que se faz na Alemanha com quem distorce o Direito causando prejuízo ou dano à parte ou ao réu. Com efeito, entre outras medidas punitivas a abusos, a Alemanha pune, no artigo 339, do Código Penal, a Rechtsbeugung (prevaricação) com penas de 1 a 5 anos,

juiz, promotor ou qualquer outro funcionário público ou até mesmo um juiz arbitral que direcione o Direito para decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes.

Portanto, fica a informação de como isso funciona na Alemanha. Isso que não falei da Lei Alemã dos Juízes (Deutsches Richtergesetz), versão de 19 de abril de 1972, com as modificações do parágrafo 62, inciso 9, dadas pela Lei de 17 de junho de 2008. Ou a Lei que trata do MP alemão. Ou da França. Como gostamos de coisas estrangeiras, quem sabe… É muito duro? Muito forte? Bem, quem sabe as salvaguardas antes elencadas já sejam um bom começo. Portanto, barganhar, sim, mas com salvaguardas!

Post Scriptum: A Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) publicou nota na qual rebate o pacote anticrime (sic) de Sergio Moro. Os juízes não deixam pedra sobre pedra do pacote. Portanto, recomendo a leitura da nota produzida por parte da magistratura. Com isso, podem ver que as críticas não são apenas de advogados. Com efeito.

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