Interesse Público

Direitos e proibições sobre o porte e a posse de armas no Brasil

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

21 de fevereiro de 2019, 8h05

Spacca
Cumprindo promessa de campanha, o presidente Bolsonaro editou o Decreto 9.685, de 15/1/2019, alterando o Decreto 5.123/04, o qual regulamenta a chamada Lei do Desarmamento (Lei 10.826/03). O novo decreto foi duramente criticado, injustamente, por armamentistas e desarmamentistas. Estes, por não admitirem qualquer alteração no desarmamento geral e irrestrito, e aqueles, por se decepcionarem com a timidez e a quase inocuidade do decreto. Ambos estão errados. Decreto não pode modificar a lei, portanto, o presidente não poderia ter avançado sobre temas realmente substanciais, embora pudesse ter melhorado um pouco mais o antigo regulamento. No mínimo, não precisava acrescentar bobagens, como é o caso do cofre para guarda de armas. Ora, piscinas são mais perigosas que armas e facas são muito mais utilizadas na violência doméstica. Acidentes com automóveis matam muito mais gente.

Substancialmente, o Decreto 9.685/19 tem dois pontos positivos. Primeiro, presume a veracidade dos fatos e circunstâncias alegadas por quem argumenta pela necessidade de ter uma arma, apenas invertendo o ônus da prova, pois a Polícia Federal poderá examinar as alegações. Segundo, relaciona uma série de situações (de uma obviedade total) nas quais já se considera presente a necessidade da arma. Porém, em compensação, tem dois pontos bastante negativos. Primeiro, ao tomar como referência o índice de 10 homicídios por 100 mil habitantes como parâmetro para a identificação de áreas urbanas com elevado índice de violência. O que é área urbana? O bairro? O município? A região metropolitana? O estado? Ora, o estado de São Paulo é substancialmente o mais armado da federação, mas é o único que está abaixo desse parâmetro. Ou seja: mais armas; menos crimes. Segundo, o aumento para 10 anos do prazo de validade do registro da arma é um absurdo jurídico. Com efeito, o chamado registro é, tecnicamente, uma licença para a aquisição da arma. Pergunta-se: passados 10 anos (se não renovar a licença) o proprietário pode “descomprar” a arma, ou comete um delito por ter a propriedade de uma arma legalmente adquirida? Direito vira crime; ex lege.

Porém, o objetivo deste artigo não é comentar o decreto, mas, sim, procurar diminuir um pouco as confusões existentes sobre os direitos e as proibições em matéria de armas, evidenciando as diferenças entre posse e porte de armas e, ainda, as atividades de caça, tiro esportivo e colecionamento de armas. A gritante inconstitucionalidade da Lei do Desarmamento já foi objeto de outro estudo publicado neste informativo jurídico (Direito de andar armado pode ser limitado, mas não aniquilado, coluna "Interesse Público", 23/11/2017). Consideram-se mantidos todos os argumentos lá expostos. Aqui se fará uma análise mais direta e objetiva dos textos normativos, visando simplesmente a melhor compreensão dos mandamentos neles contidos.

Começando pelo começo. A Constituição Federal, no caput do artigo 5º, dispõe que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além de garantir a incolumidade pessoal, a inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da honra. Dispensa comentário o indecente índice anual de homicídios, estupros, roubos e invasões de propriedades.

A licença (definitiva) para a aquisição e posse de arma de fogo permite apenas que ela seja mantida em um local determinado. A autorização (precária e temporária) de porte de arma habilita seu uso na via pública. Ambos são instrumentos de exercício do direito à legítima defesa e de todos aqueles direitos garantidos pelo artigo 5º da CF.

Entretanto, a Lei do Desarmamento (10.826/03) proibiu, como regra geral, tudo aquilo que a Constituição protege, ressalvando, entretanto, apenas para algumas pessoas, aquelas mesmas garantias que são constitucionalmente atribuídas a todos, sem distinção. Essa famigerada lei, entretanto, para ter eficácia, dependia de sua aprovação em referendo popular, que foi realizado em 2005 e não foi aprovada. Vale transcrever: “Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei. §1º Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. §2º Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral. A simples leitura mostra o ululantemente óbvio: se a entrada em vigor dependia da aprovação e considerando que o referendo popular não aprovou, a única conclusão lógica é a de que essa proibição geral não entrou em vigor!

A diferenciação entre brasileiros, uns desfrutando das garantias constitucionais e outros delas privados, já era um absurdo, mas ficou muito mais absurdo diante do resultado do referendo. É um atentado à lógica manter as exceções a uma regra geral inexistente! A constitucionalidade dessa lei foi submetida ao crivo do STF, mas o relator, ministro Lewandowski, tomou o referendo de 2005 apenas como um fato material ocorrido no passado, sem consequências jurídicas.

Não faz sentido algum o argumento de que, para assegurar a efetividade das garantias estabelecidas pelo artigo 5º da CF, existe a segurança pública. Nos exatos termos da CF, legítima defesa e segurança pública não são conflitantes; são complementares. Isso fica muito claro no artigo 144, ao dizer que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Além de ser um dever do Estado, a segurança pública é, também, concomitantemente, uma responsabilidade dos cidadãos. Estes devem colaborar, na medida de suas possibilidades, com os órgãos incumbidos da segurança pública. Uma forma de colaboração é exatamente cuidar da autodefesa. É um disparate privar o cidadão de meios para sua legítima defesa. No limite, levada ao extremo esse absurdo suposto conflito entre segurança pública e privada, poder-se-ia entender como constitucionalmente proibido que pessoas e empresas cuidassem de sua proteção. Por exemplo (para demonstrar o absurdo), bancos seriam proibidos de manter guardas armados, que estariam invadindo a área de competência da segurança pública. Enfim, a experiência concreta mostra que essa colaboração é necessária e eficiente. Já disse e escrevi muitas vezes: a Lei do Desarmamento é uma lei de proteção aos assassinos, estupradores e assaltantes, ao lhes assegurar que as vítimas estarão indefesas.

Cabe agora um esclarecimento sobre a situação jurídica dos caçadores, atiradores esportivos e colecionadores. Seus direitos e deveres são delineados por normas infralegais, que disciplinam a compra, uso e disposição dos chamados produtos controlados, os quais abrangem (além de outras coisas) as armas destinadas àquelas finalidades. Não há lei alguma sobre essa questão; as normas atualmente em vigor são inconstitucionais. Como se sabe, o inciso II do artigo 5º da CF dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O vocábulo “lei”, aqui, é tomado em sentido estrito, como uma “espécie” do “gênero” norma, que não se confunde com o “decreto”. Só a lei cria, extingue e modifica direitos. O decreto serve para dispor sobre meios e modos de cumprimento da lei. Ao estabelecer as competências do presidente da República, a CF (artigo 84, inciso IV) é muito clara ao dizer que cabe a ele “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Decretos servem para regulamentar o exercício dos direitos e aplicação dos deveres criados por lei. Não existe regulamento autônomo: criando, extinguindo ou modificando direitos. O fundamento de validade de qualquer decreto sempre estará na lei por ele regulamentada.

No caso em exame, o Decreto 9.493, de 5/9/2018, não tem fundamento legal de validade. Sua ementa diz, claramente, que ele “aprova o Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados”. Seu único dispositivo diz: “Fica aprovado o Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados, na forma do Anexo I”. Tal anexo tem 150 artigos, os quais, com seus desdobramentos (parágrafos, itens, alíneas — e mais outros dois anexos), criam, extinguem e modificam direitos, deveres, proibições e penalidades, numa frontal agressão ao princípio constitucional da legalidade.

Para que não paire dúvida, convém transcrever seu preâmbulo: “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o Art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 8º da Lei 9.112, de 10 de outubro de 1995, na Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, e no art. 2º da Lei nº 10.834, de 29 de dezembro de 2003, DECRETA”. Porém, nenhum desses dispositivos legais invocados atribui competência ao presidente para expedir o Decreto 9.493/18, com tamanha amplitude. Conferindo: o artigo 8º da Lei 9.112, de 10 de outubro de 1995, cuida apenas da exportação de produtos controlados; a Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, é a abominável Lei do Desarmamento, cujo artigo 23 autoriza apenas a classificação de armas de fogo, o que é muito diferente de legislar amplamente sobre armas: a Lei 10.834, de 29 de dezembro de 2003, cuida somente da Taxa de Fiscalização de Produtos Controlados, e seu artigo 2º diz apenas que a relação completa das atividades e dos produtos controlados pelo Exército é a constante de regulamento próprio. Convém insistir: não há “lei” alguma conferindo, nem ao presidente da República nem ao Exército competência para criar proibições, deveres e penalidades sobre armas, a qual pudesse vir a ser regulamentada. Sem qualquer fundamento legal, o Decreto 9.493/18 é uma clamorosamente inconstitucional delegação de poderes em branco, algo como uma atribuição de competência ao Exército para legislar conforme lhe aprouver.

Não se confunda essa aberração com uma lei delegada, que é outra coisa. Nos termos do artigo 68, inciso II, da CF, “as leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional”, mas não podem versar sobre “direitos individuais”. No caso, parece estar havendo uma subdelegação de uma delegação proibida e inexistente.

No caso específico dos atiradores esportivos, eles foram alvejados pela legislação castrense, que determinou sua obrigatória participação em campeonatos. Porém, a Lei 9.615, de 24/3/1998, conhecida como Lei Pelé, que cuida do esporte formal e, muito especialmente, dos direitos dos atletas profissionais, diz no parágrafo 2º de seu artigo 1º que a prática desportiva não formal é caracterizada pela liberdade lúdica de seus praticantes. O tiro esportivo informal é uma atividade de lazer, que, nos termos do artigo 217, parágrafo 3º, da CF, deve ser incentivada pelo poder público, não dificultado ou impedido.

Por último, um pequeno exemplo de que a discussão sobre armas atingiu as raias do ridículo. No momento atual, o Supremo Tribunal Federal, no HC 131.943, discute a situação jurídica penal de uma pessoa que ingressou no país com uma espingardinha de pressão, no valor de R$ 185, que atira chumbinhos e que não é arma de fogo, mas está no rol de produtos controlados, do Decreto 9.493/18. O relator, ministro Gilmar Mendes, entendeu tratar-se de descaminho, mas o ministro Fachin divergiu, entendendo tratar-se de contrabando. Diante disso, a ministra Cármen Lúcia pediu vista do processo. Enquanto o STF brinca com uma espingardinha de chumbinho, não tem tempo de cuidar dos vergonhosos processos de corrupção dos detentores de foro privilegiado.

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