Opinião

Projeto Moro — o imperador não está acima dos gramáticos!

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20 de fevereiro de 2019, 9h10

1. Introdução
Há duas semanas, como amplamente noticiado, o ministro da Justiça, Sergio Moro, apresentou o seu “projeto de lei anticrime”, um conjunto de medidas contra a corrupção, o crime organizado e os delitos praticados com grave violência à pessoa. Já prevendo as inúmeras críticas que o disegno di legge sofreria, em razão das manifestas inconstitucionalidades e inconsistências dogmáticas nele contidas, sua excelência apressou-se em declarar que o mesmo fora elaborado “para alcançar efeitos práticos” e não “para agradar professores de Direito Penal”. A asserção mostra-nos uma preocupante atitude de “inimizade ou ojeriza à Ciência” e leva-nos, inevitavelmente, à seguinte reflexão: estaria o projeto do ministro Sergio Moro acima da nossa secular dogmática, já (praticamente) convertida em gramática internacional do Direito Penal[1]?

Para oferecer uma adequada resposta a tal elucubração, começo por um breve relato de significação histórica. Conta-se que no famoso Concílio de Constança, celebrado nesta cidade alemã entre 1414 e 1418, o Sacro Imperador Romano-Germânico Sigismundo I, em seu discurso inaugural dirigido aos eclesiásticos lá reunidos, utilizou como feminino o substantivo neutro “schisma”. Um dos presentes, o Cardeal Placentio, ao perceber o equívoco do Imperador, observou: “Senhor, Vossa expressão é gramaticalmente incorreta, pois schisma é de gênero neutro” (Domine, ista locutio tua est parum grammatica, cum schisma sit generis neutrius). Visivelmente irritado com a correção, Sigismundo I exclamou que ele era o Imperador e que, por ser o senhor das terras, dos homens e das leis, também poderia utilizar as palavras como bem lhe aprouvesse. A resposta de Placentio, entretanto, foi exemplar: “O Imperador não está acima dos gramáticos!” (Caesar non est supra grammaticos)[2].

Nas linhas seguintes, pretendo demonstrar as razões pelas quais um projeto de lei nunca deve prescindir da nossa vetusta gramática do Direito Penal. É preciso, com urgência, construir um modelo de política criminal científica.

2. Política criminal científica
Já em 1970, em seu famoso escrito programático Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, Claus Roxin propugnava pela superação das barreiras existentes entre política criminal e sistema jurídico-penal, e com isso assentava as bases de uma dogmática de caráter teleológico[3]. De fato, no mencionado trabalho, Roxin criticava a concepção de von Liszt do Direito Penal como barreira intransponível da política criminal[4][5], apontando para a necessidade de que as decisões político-criminais penetrassem em cada uma das categorias do delito[6]. Roxin dirige críticas ao método classificatório-categorial próprio do naturalismo, acusando-o de um excessivo grau de abstração e de isolar a dogmática das valorações político-criminais[7]. Roxin também lança um ataque ao método lógico-axiomático do finalismo: este, observava Roxin, ao deduzir e ordenar as entidades fundamentais do sistema a partir de determinadas estruturas ontológicas, acaba por afastar a dogmática de considerações político-criminais[8]. E concluía: se se quer uma dogmática frutífera, é dizer, caracterizada por seu realismo, ordem, clareza conceitual e orientação às consequências, então há de se buscar a unidade sintética entre política criminal e sistema jurídico-penal[9].

Passados quase 30 anos, num Congresso realizado na Academia de Ciências de Berlin-Brandenburg sob o auspicioso título “A ciência alemã do Direito Penal diante do novo milênio: reflexão retrospectiva e perspectiva futura” (Die Deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende: Rückbesinnung und Ausblick), Claus Roxin, em sua intervenção, observou que uma das tarefas futuras da Ciência do Direito Penal consistiria na orientação das reformas legislativas. De acordo com Roxin, este haveria de ser um campo central da Ciência do Direito Penal. Roxin deixava claro, naquela ocasião, que a relação entre política criminal e dogmática jurídico-penal deveria ser de caráter recíproco, como numa espécie de círculo virtuoso: não somente é necessário que a política criminal exerça sua influência sobre a dogmática, como também que esta colabore com a construção de uma “política criminal científica”. Com tal expressão, Roxin referia-se não somente a um necessário assessoramento técnico na elaboração das leis penais, como também “ao aprofundamento nos conceitos da reforma que serão apresentados a uma disciplina universal para discussão, e ao legislador para estimular iniciativas legislativas”. E arrematava o catedrático da Universidade de Munique: se até hoje isto aconteceu muito pouco, deve-se possivelmente à tradicional concepção de que a criação de novas leis consiste numa tarefa exclusivamente política, e não num mister também científico[10].

Ora, tomando-se por base tais considerações, pode-se falar em dois tipos de dogmática: (a) uma dogmática de lege lata e (b) uma dogmática de lege ferenda ou dogmática da política criminal[11]. (a) Uma dogmática de lege lata deve perseguir os seguintes objetivos: descrever o Direito vigente (dimensão empírico-descritiva); analisá-lo de forma sistemática e conceitual (dimensão lógico-analítica); e, por fim, elaborar propostas para casos problemáticos, oferecendo, assim, à prática judicial um modelo racional e seguro de aplicação das leis penais (dimensão prático-normativa)[12]. (b) Por sua vez, uma dogmática de lege ferenda deve estar orientada à construção de uma política criminal ilustrada (aufgeklärte Kriminalpolitik) e científica. Ilustrada, pois comprometida com a observância dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, distanciando-se, portanto, de um modelo de política criminal irracional, compreendida como uma espécie de “cruzada contra o mal” (Kampf gegen das Böse)[13]. Com isto, quer-se evitar propostas meramente populistas e/ou oportunistas, exclusivamente orientadas à obtenção ou manutenção do poder. Esta política criminal, por óbvio, deve ser também científica. Em um duplo sentido: por um lado, suas propostas devem se adequar ao atual estágio evolutivo de nossa dogmática[14]. Por outro, deve ser dotada de instrumentos capazes de investigar as reais condições de aplicação do Direito penal na sociedade e suas prováveis consequências. Quer-se assim escapar de um manejo meramente simbólico ou mesmo intuitivo do Direito Penal.

É incontestável que grande parte da responsabilidade pelo lamentável triunfo de uma política criminal “acientífica” (inclusive em termos globais) é nossa. De fato, até pouco tempo, a comunidade acadêmica não demonstrava qualquer interesse pelo método de elaboração das leis penais[15]. A nossa deferência à dogmática de lege lata contrastava frontalmente com o absoluto desprezo por uma dogmática de lege ferenda[16]. É claro que, ao longo da história de nossa disciplina, há honrosas exceções a essa regra, como é o caso da monumental obra La scienza della lesgislazione, do iluminista napolitano Gaetano Filangieri, cujo primeiro volume (de um total de sete) veio a lume em 1780. De qualquer sorte, insista-se, tais obras eram como oásis num deserto.

Eram múltiplas as razões do nosso desinteresse pela política criminal. Em primeiro lugar, compartilhávamos da obtusa visão de que a criação das leis consiste numa tarefa exclusivamente política, ignorando, portanto, a dimensão científica de tal fenômeno. Mas não só isso. Costumávamos também cultivar um estilo despudoradamente “aristocrático”, “elitista”[17]. Encastelados e ensimesmados em nossa torre de marfim, recusávamo-nos a dialogar com os “não iniciados” ou outsiders, considerando-os, absurdamente, como “espíritos menos elevados”. Metaforicamente falando: fechávamos as portas da nossa comunidade à “plebe adogmática”. Inspirávamo-nos em Platão, que logo na entrada de sua Academia fez constar a seguinte advertência: “Que se mantenha longe daqui todo aquele que não seja um geômetra”[18]. Evidentemente, dentro desse insulamento, também éramos inaptos a lidar com o discurso político.

Entretanto, ao longo dos anos, aprendemos a lição. Percebemos os efeitos deletérios de nossas práticas narcisistas. Hoje estamos convictos (pelo menos a grande maioria de nós) de que o Direito Penal não pode ser simplesmente uma “ciência de professores” (uma art pour l'art), devendo ser também (e fundamentalmente) uma ciência da realidade. E por isso mesmo queremos dialogar. Desejamos abrir o nosso método científico à discursividade do método democrático[19], por acreditarmos que um sistema penal deve ser sempre o produto de uma coletividade. Por isso mesmo, não nos parece razoável figurar como meros espectadores da reforma vindoura. Temos muito a contribuir! Claro, que ninguém espere de nós qualquer tipo de adulação ou mesmo complacência. O vigor de nossa disciplina científica está, justamente, em sua habitual “descortesia”. Recentemente, por exemplo, Luís Greco, eminente catedrático da Universidade Humboldt, de Berlim, demonstrou, com sólidos argumentos, que a proposta acerca da legítima defesa contida no Projeto situa-se entre a nocividade e a inutilidade[20].

Poderíamos ainda, em nossa permanente “impolidez”, apontar outras tantas absurdidades lá contidas, a exemplo da execução antecipada da pena e do instituto do plea bargaining[21]. Seria impossível, nesse curto espaço, proceder a uma análise minimamente rigorosa de todos os equívocos contidos no projeto. De qualquer sorte, tecerei aqui brevíssimas considerações a respeito de um ponto que me parece ainda negligenciado pela doutrina crítica, mas cujo potencial lesivo, em termos macrossociais, é superlativo. Refiro-me à proposta de adoção da figura do “informante do bem” (whistleblower). Em primeiro lugar, observe-se que a denominação “informante do bem” é claramente enganosa, pois, na maioria dos casos, tais agentes não se moverão por propósitos altruísticos, mas, sim, por desígnios menos nobres ou até mesmo abjetos. Note-se que a própria proposta prevê a possibilidade de remuneração desses indivíduos. Ademais, a figura do whistleblower parece contrastar frontalmente com um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa, qual seja, a construção de uma sociedade solidária (artigo 3º, I, da CF). Com efeito, tal instituto fomenta um perigoso clima de desconfiança entre os cidadãos. Já não se verá o outro como alguém com quem cooperar na construção de um mundo em comum, mas sim como um potencial inimigo, cujas atividades devem ser constantemente monitoradas e reportadas. Seria o alvorecer de uma sociedade da suspeita, que opta pela vigilância total por já não crer.

3. Conclusão
Há inúmeros motivos para convidar a nossa secular Ciência do Direito Penal ao debate. Não há nenhum para não fazê-lo. Somente uma rigorosa e exaustiva análise dogmática do projeto poderá apontar todos os seus equívocos. Esta é uma tarefa para o futuro. Definitivamente, temos fundadas e sobradas razões para reafirmar: Caesar non est supra grammaticos!


[1] Faz referência a uma gramática internacional (universal?) do Direito Penal, Fletcher, The Grammar of Criminal Law, vol. I, New York, 2007, pág. 9. Já antes, o mesmo, Basic Concepts of Criminal Law, New York/Oxford, 1998, pág. 5.
[2] Fumagalli, Chi L´ha Detto? Tesoro di citazioni italiane e stranieri, di origine letteraria e storica, 10ª ed., Milano, 1989, págs. 506-507.
[3] Antes mesmo de Roxin, uma sistemática teleológica do delito já havia sido proposta por Schmidhäuser, Zur Systematik der Verbrechenslehre in Gedächtnisschrift für Radbruch, Göttingen, 1968, págs. 268 e ss. Cfr. o ulterior desenvolvimento de sua concepção em Strafrecht, AT. Lehrbuch, 2ª ed., Tübingen, 1975, passim. De qualquer sorte, observe-se que a abordagem de Roxin é maisl ampla que a de Schmidhäuser, pois enquanto este defende uma orientação das categorias dogmáticas a partir da pena, aquele vai mais além, propondo a construção de cada uma das categorias do fato punível a partir das finalidades político-criminais.

[4] Dizia von Liszt, Ueber den Einfluss der soziologischen und anthropologischen Forschungen auf die Grundbegriffe des Strafrechts in Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, vol. II, Berlin, 1905, pág. 80: “(…) das Strafrecht ist die unübersteigbare Schranke der Kriminalpolik (…)”.
[5] Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, 2ª ed., Berlin/New York, págs 1 e ss.
[6] Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, págs 10 e ss.
[7] Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, págs. 11-12.
[8] Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, págs. 13-14.
[9] Sobre isto cfr., por exemplo, as exposições de Bringewat, Funktionales Denken im Strafrecht. Programmatische Vorüberlegungen zu einer funktionalen Methode der Strafrechtswissenschaft, Berlin, 1974, págs 30 e ss.; Schünemann, Strafrechtssystem und Kriminalpolitik in Festschrift für Schmitt, Tübingen, 1992, págs 119 e ss.; Moccia, Il diritto penale tra essere e valore, Napoli, 2006, págs. 26 e ss.
[10] Roxin, Die Strafrechtswissenschaft vor den Aufgaben der Zukunft in Eser/Hassemer/Burkhardt (edts.), Die deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende – Rückbesinnung und Ausblick, München, 2000, págs. 369 e ss.
[11] Nesse sentido, cfr. Robles Planas, Zur Dogmatik der Kriminalpolitik in Festschrift für Frisch, Berlin, 2013, págs. 115 e ss.; Silva Sánchez, Mallum pssionis, Barcelona, 2018, págs. 57 e ss.
[12] Cfr. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, Frankfurt a. M., 1983, págs. 308 e ss.; Hruschka, Kann und sollte die Strafrechtswissenschaft systematisch sein? in JZ, 1985, págs. 1 e ss.
[13] Sobre tal disjuntiva cfr. a impressionante coletânea de artigos (em 5 tomos) organizada por Lüderssen sob o título Aufgeklärte Kriminalpolitik oder kampf gegen das Böse?, Tomos I-V, Frankfurt a. M., 1998. Resumidamente sobre tal questão cfr. Silva Sánchez, ¿Crisis del sistema dogmático del delito?, Bogotá, 2007, págs. 35 e ss.
[14] Cfr. Silva Sánchez, Mallum passionis, pág. 59.
[15] Cfr. Noll, Von der Rechtssprechungswissenschaft zur Gesetzgebungswissenschaft in Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, Tomo II, Düsseldorf, 1972, págs. 524 e ss.
[16] Cfr. Noll, Strafrechtswissenschaft und Strafgesetzgebung in ZStW 92, 1980, págs. 75-76; Díez Ripollés, La racionalidad de las leyes penales, Madrid, 2003, págs. 73-74.
[17] Cfr. Vogel, Strafrecht und Strafrechtswissenschaft im Internationalen und europäischen Rechtsraum in JZ 1, 2012, págs 25 e ss.
[18] Como lembra Sloterdijk logo no início da nota preliminar a Sphären, vol. I (Blasen), Frankfurt a. M., 1998.
[19] Cfr. Donini, La relación entre Derecho Penal y Política in El Derecho Penal frente a los desafíos de la Modernidad, Lima, 2010, pág. 295.
[20] Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/analise-sobre-propostas-relativas-a-legitima-defesa-no-projeto-de-lei-anticrime-07022019
[21] Um excelente panorama crítico já se encontra em Moreira/Minervino, http://www.justificando.com/2019/02/08/observacoes-sobre-a-proposta-de-alteracao-na-legislacao-criminal-brasileira

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