Opinião

Apenas o Poder Legislativo pode criminalizar a homofobia

Autor

  • Luiz Augusto Rutis

    é advogado criminalista mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e associado ao escritório Peixoto Bernardes Advogados.

20 de fevereiro de 2019, 6h38

Certa feita, opinando sobre o que passou a ser denominado de “esquerda punitiva”[1], Nilo Batista e Vera Malaguti Batista falaram a frase que sintetiza a razão de ser desta breve reflexão: “O Poder Punitivo nunca caminhou com a promoção dos direitos humanos”.

Profunda desconfiança permeia essas linhas. Desconfiança no poder punitivo. Especificamente, desconfiança de que ele tenha fins pedagógicos, de que possa ser usado para promover aceitação, integração ou, no mínimo, respeito.

É claro que é injustificável e inquestionável a omissão do Estado brasileiro em proteger a população LGBTQIA. Contudo, a proteção dessa comunidade não pode passar, por vedação constitucional, pela flexibilização das garantias que cercam o processo de criminalização de condutas.

A absoluta imponderabilidade do princípio da legalidade penal deve ser encarada como o obstáculo primário à criminalização da homofobia e da transfobia sem o crivo do Poder Legislativo. Sob esse ponto de vista, alguns aspectos foram negligenciados na discussão do julgamento conjunto da ADO 26 e do MI 4.733 diante do STF. Propõem os autores dos referidos instrumentos, com fulcro no que se toma como a mora inconstitucional do Congresso Nacional em não ter criminalizado tais condutas, que o STF reconheça a referida omissão e, caso ela permaneça, elabore a normatização (inclusive criminal) relativa a esse “dever constitucional de criminalização”.

Quando se pretende aplicar, em sede de lei penal, um entendimento jurisprudencial relacionado ao Direito do Trabalho, percebe-se que o pedido parte de uma incompreensão em torno da rigidez normativa da legalidade penal.

Nos termos da ADO 26 e do MI 4.733, em caso de continuidade da omissão arguida, caberia a expansão, via Poder Judiciário, do conceito de racismo (Lei 7.716/89) para abranger discriminações relacionadas à orientação sexual e à identidade de gênero. O entendimento pretoriano, em sede de matéria trabalhista, que ampliou o espaço normativo da Lei 7.783/89 para os servidores públicos (MI 670, 708 e 712), denotaria a liberdade jurisprudencial para aplicar o mesmo raciocínio para a legislação penal sem ferir a reserva legal absoluta.

Ademais, a noção de que não existe hierarquia entre as normas constitucionais corroboraria a construção dos proponentes. Logo, diante da mora legislativa, o caminho para compatibilizar o “mandamento de criminalização do racismo” (artigo 5º, XLII, CF) — com o conceito de raça já alargado, in malam partem, para abarcar a orientação sexual e a identidade de gênero — e a legalidade penal (artigo 5º, XXXIX, CF) seria a “normatização criminal” desse dever de proteção. Idealmente, através do Congresso Nacional, mas, em caso de omissão desse, através do STF. A PGR corrobora o pleito, defendendo uma interpretação sistemática do inciso XXXIX que levaria ao cenário suscitado.

O raciocínio é de causar arrepios. A posição tem uma roupagem técnica que não se sustenta. Afinal, a proposta de flexibilização da legalidade busca sua sustentação teórica na ponderação de princípios. Ocorre, contudo, que, em matéria penal, isso não é possível.

Alguém poderia discordar desta última frase, alguns certamente o farão. Provavelmente, usando como marco a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, muitos exemplos surgiriam, comparando a ponderação entre a privacidade e o direito de informação ou o sopesamento simplista entre segurança e liberdade, a fim de dizer que a ponderação entre princípios não só é possível como, muitas vezes, indispensável. Partilhar desse entendimento, no entanto, não é um bom caminho.

A defesa da imponderabilidade dos princípios em matéria penal e, no caso, da legalidade penal, deve começar na fala do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada.

Salta aos olhos a austeridade na inamovibilidade dos conceitos. Nesse sentido, e talvez para a surpresa de muitos, a inflexibilidade da principiologia penal não só não enfrenta resistência nas principais teorias de direitos fundamentais como por elas é referendada.

Vale destacar, nem mesmo na teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy, que possui maior aceitação (ao menos, no discurso) no meio jurídico e pela maior parte dos ministros da suprema corte, encontra-se espaço para “ponderar” “princípios” em matéria penal[2].

A expressão “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” inclui, em concepção doutrinária clássica, a noção de lei prévia, escrita, estrita e determinada. Esse é o conteúdo normativo do que se denomina princípio da legalidade.

Não há qualquer mandamento de otimização no artigo 5º, XXXIX, CF. A aplicabilidade da referida norma não está sujeita às possibilidades fáticas e jurídicas de cada caso concreto. Não existe espaço para ponderações aqui. A legalidade penal é aplicada na lógica do “tudo ou nada”. Ou a norma incriminadora foi elaborada previamente à conduta tipificada, está escrita, seguiu todas as formalidades legislativas, prescrevendo uma conduta determinada, e, por tudo isso, é legítima; ou, faltando algum desses requisitos, a criminalização será inidônea, inconstitucional.

O que se quer dizer é que, em matéria penal, as normas de direito fundamental denominadas como “princípios” pela comunidade jurídica, dentro da concepção teórica construída por Robert Alexy, devem ser consideradas “regras”. “Não há crime sem culpabilidade”, “não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal”, “a prova ilícita é ilegal”, “o processo penal observará o contraditório e a ampla defesa”, nada disso está sujeito à ponderação com a ordem pública, com a segurança ou com qualquer outro valor. Essas normas perfazem mandamentos de definição, devendo ser aplicados na lógica do tudo ou nada.

Não cabe ponderar a legalidade penal com o resto do ordenamento constitucional. Não cabe ponderar a legalidade penal com o dever de proteção suficiente da comunidade LGBTQIA, por mais importante que este último seja. A legalidade penal é imponderável, a reserva legal é absoluta.

Em tempo, a legalidade penal em nada se toca com a legalidade trabalhista. Pouco importa se não houve lesão à legalidade trabalhista por ocasião dos MI 670, 708 e 712. Em sede criminal, a questão é totalmente diferente.

Os poderes das partes envolvidas no processo, a formação histórica dos conceitos, as sanções cominadas, tudo leva a uma profunda diferenciação entre o Direito Penal e o Direito do Trabalho e, por consectário lógico, entre a legalidade penal e a legalidade trabalhista. Em que sentido? No sentido de que, pela sanção criminal se tratar da mais grave, restritiva e danosa punição prevista dentro do Estado Democrático de Direito, as garantias constitucionais que regem sua aplicação devem ser dotadas do mais alto grau de rigidez normativa possível.

Por outro lado, de fato, não existe hierarquia entre as normas constitucionais. Porém, de modo algum isso autoriza a “normatização penal” através do STF. Ainda que se entenda haver um dever de criminalização no caso, a forma de compatibilizar os dispositivos constitucionais é o mais absoluto respeito a ambos. E como se pode fazer isso? A criminalização do racismo — bem como a ampliação do conceito de “raça”, por ser conteúdo da tipicidade da conduta — só é constitucionalmente aceitável se for feita através do Poder Legislativo.

Não se vê conflito entre as referidas normas constitucionais do mesmo jeito que não se enxerga hierarquia entre elas. A rigidez normativa da legalidade não lhe confere um caráter de maior importância dentro do ordenamento constitucional. De forma alguma. O que ela faz é colocar a reserva legal no seu lugar de direito: como o primeiro standard pelo qual qualquer processo de criminalização deve passar, inclusive, aqueles porventura constitucionalmente dirigidos.

O tema é muito sensível para uma análise tão sumária. Contudo, é necessário criticar o que Zaffaroni chama de uso utilitário do poder dos juristas[3]. Expandir o poder punitivo já é algo em si desaconselhável. Expandir o poder punitivo, flexibilizando as garantias constitucionais que regem a aplicação da lei penal, é ilegítimo.

O respeito ao outro — fim precipuamente bom que se pretende promover com a demanda — não é alcançado com a expansão do poder punitivo, muito menos com o desrespeito à legalidade. É o desafio de todos nós, à luz da revolta que a situação de vulnerabilidade da comunidade LGBTQIA enseja, não se esquecer disso.


[1] Em definição sumária, define-se como esquerda punitiva a organização de movimentos sociais ligados a minorias que buscam a proteção e a promoção de seus interesses através da expansão do poder punitivo. Cf. KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 1, número 1, 1º semestre de 1996; e ______, Maria Lúcia. Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas. Justificando, 2015. Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas>. Último acesso em: 27/10/2015.
[2] Com vênias pela brevidade e simplicidade, no que importa a essa exposição, a teoria estrutural dos direitos fundamentais proposta por Robert Alexy será resumida a seguir. As normas de direito fundamental podem assumir a estrutura de “regras” ou “princípios”. “Regras” são as normas que assumem o caráter de mandamentos de definição, aplicáveis na lógica do tudo ou nada. Conflitos entre “regras” são solucionados conforme os tradicionais critérios de antinomia: hierárquico, temporal e especial. “Princípios” são mandamentos de otimização cuja aplicabilidade se revela de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas de cada caso concreto. Conflitos entre “princípios” são solucionados através do princípio da proporcionalidade latto sensu, envolvendo três máximas parciais: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação). Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 43, 90-93. O raciocínio de fundo dessa reflexão também se encontra desenvolvido, com maiores detalhes, em RUTIS, Luiz Augusto. A rigidez normativa dos princípios penais em Alexy. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 136, 2017, p. 35-67.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema pena. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 84, 263-267.

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