Firme defesa de minorias

Leia o voto do ministro Celso de Mello sobre a criminalização da homofobia

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20 de fevereiro de 2019, 21h25

Em voto que, quando proferido, já foi considerado histórico pelos colegas de Plenário, Celso de Mello foi uma voz firme na defesa dos direitos das minorias, do relevo e importância da Constituição e seus dizeres e das prerrogativas e competências do Supremo Tribunal Federal. O decano da corte concluiu, nesta quarta-feira (20/2), a avaliação que fez da ação por omissão que relata e que pede a criminalização da LGBTfobia.

Foram 155 páginas em que, por fim, declarou a mora inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar homotransfobia e, por isso, defendeu interpretação conforme a Constituição enquanto não houver legislação específica, do próprio Legislativo, para equipara a prática à de racismo. Mais do que isso, no entanto, fez um discurso contundente e bastante conectado à conjuntura brasileira dos últimos meses.

Celso se dirigiu diversas vezes ao presidente Jair Bolsonaro (PSL), ao primeiro escalão governamental e às ideias por eles propagadas. Desde a eleição, o decano planejava fazê-lo. O processo que foi distribuído ao seu gabinete foi oportuno para o momento. Ele chegou a pedir que fosse pautado ao Plenário em novembro, pouco depois da eleição. Acabou tendo de esperar o novo ano, mas entrou na pauta do primeiro mês de votações.

Logo nos primeiros momentos pontos do voto que se dividiu em 18 tópicos, Celso de Mello fez referência a fala da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que afirmou em vídeo, logo no dia seguinte à posse presidencial, em 2 de janeiro, que o Brasil está em "nova era" em que "menino veste azul e menina veste rosa". Ele respondeu à ministra ao tratar dos conceitos de gênero e da formatação da sociedade brasileira em um modelo heteronormativo tóxico.

“Essa visão de mundo, senhores ministros, fundada na ideia, artificialmente construída, de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papéis sociais (‘meninos vestem azul e meninas vestem rosa’), impõe, notadamente em face dos integrantes da comunidade LGBT, uma inaceitável restrição às suas liberdades fundamentais, submetendo tais pessoas a um padrão existencial heteronormativo, incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, impondo-lhes, ainda, a observância de valores que, além de conflitarem com sua própria vocação afetiva, conduzem à frustração de seus projetos pessoais de vida”, afirmou.

Na sequência, ele cita Simone de Beauvoir e a obra clássica de sua autoria, O Segundo Sexo, na qual há reflexões sobre liberdade, autenticidade dos indivíduos e distinções provocadas pelo sexo e pelo gênero. A filósofa e escritora francesa é alvo frequente de bolsonaristas. A chamada, por eles, ideologia de gênero, é um dos motivos pelos quais o presidente deseja conferir previamente a prova do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.

A marginalização imposta a integrantes dos grupos LGBTs foi duramente criticada pelo ministro em vários momentos do voto, como uma afronta à própria democracia. Democracia esta que requer igualdade. Vulnerar populações por aspectos da própria existência é uma ofensa frontal ao Estado Democrático de Direito, afirmou Celso de Mello.

Ainda em disputa eleitoral, em outubro, Bolsonaro prometeu acabar com o que julga como “coitadismo” de alguns grupos da sociedade. Ele completou que “não tem que ter uma política” específica para grupos vulneráveis e enumerou: “Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso”.

“Essa injustificável negação da realidade social e dos aspectos inerentes à personalidade humana objetiva impedir, arbitrariamente, que os membros da comunidade LGBT possam reivindicar, legitimamente, o direito de exercerem, com plena liberdade, as prerrogativas inerentes à sua condição pessoal e de pretenderem acesso à proteção estatal no âmbito de suas relações socioafetivas”, disse Celso de Mello na primeira parte do voto.

O decano lembrou ainda que o Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, assinalou que o direito à autodeterminação do próprio gênero ou à definição de sua orientação sexual, enquanto expressões do princípio do livre desenvolvimento da personalidade – “longe de caracterizar mera ‘ideologia de gênero’ ou teoria sobre a sexualidade humana” – qualifica-se como poder fundamental de qualquer pessoa.

“A questão da homossexualidade, surgida em um momento no qual ainda não se debatia o tema pertinente à ‘ideologia de gênero’, tem assumido, em nosso País, ao longo de séculos de repressão, de intolerância e de preconceito, graves proporções que tanto afetam as pessoas em virtude de sua orientação sexual (ou, mesmo, de sua identidade de gênero), marginalizando-as, estigmatizando-as e privando-as de direitos básicos, em contexto social que lhes é claramente hostil e vulnerador do postulado da essencial dignidade do ser humano.”

Celso de Mello faz, no voto, um resgate histórico das perseguições sofridas por este grupo, lembra casos recentes de violências, traz dados de mortes de ódio – e lembra que estas são subnotificadas – trata da separação entre Estado e Igrejas, respondendo aos grupos religiosos conservadores que não há restrição da liberdade religiosa ao se proteger de defender a dignidade da população LGBT. Ele conceituou o racismo e ressaltou a amplitude do conceito, sendo entendido como uma lógica de exclusão e intolerância.

Chegando às conclusões da reflexão que promoveu, o ministro fez a defesa da competência e, mais do que isso, do dever do Supremo em acolher o tema e conhecer da demanda. Neste ponto, exaltou a corte como aquela que não se curva, nem diante de governantes prepotentes, nem de grupos majoritários opressores.

“É por isso que se pode proclamar que o Supremo Tribunal Federal desempenha as suas funções institucionais e exerce a jurisdição que lhe inerente de modo compatível com os estritos limites que lhe traçou a própria Constituição, pois esta Corte Suprema não tolera a prepotência dos governantes, não admite os excessos e abusos que emanam de qualquer esfera dos poderes. Esta Corte Suprema não se curva a pressões de grupos sociais majoritários que buscam impor exclusões e negar direitos a grupos vulneráveis e isso significa portanto reconhecer que a prática da jurisdição constitucional quando provocadas por aqueles atingidos pelo arbítrio, pela violência, pelo preconceito, pela discriminação, e pelo abuso não pode ser considerado, ao contrário do que muitos erroneamente supõem e afirmam, um gesto de indevida interferência da Suprema Corte na esfera orgânica dos demais poderes da República. O STF, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar com este gesto o respeito incondicional que os juízes deste tribunal pela atualidade da lei fundamental da República.”

Clique aqui para ler a íntegra do voto do ministro.
ADO 26

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