Tribuna da Defensoria

Investigação defensiva é direito decorrente das regras do ordenamento jurídico

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19 de fevereiro de 2019, 8h00

Recentemente, a Ordem dos Advogados do Brasil editou o Provimento 188, de 11 de dezembro de 2018, regulamentando a atividade de investigação criminal defensiva a ser desenvolvida por advogado.

Circula pelas redes sociais, agora, nota técnica assinada pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal do Ministério Público manifestando o seu entendimento pela inconstitucionalidade e ilegalidade da proposta da autarquia profissional da advocacia.

Em linha de síntese, o Ministério Público alega que a aptidão para investigação demandaria suporte normativo no seio da Constituição Federal ou nas normas infralegais que regulamentam o exercício da advocacia. Portanto, a OAB jamais poderia, por meio de sua iniciativa regulamentar, dispor sobre atos de investigação conduzidos por advogado.

Em coro à percepção restritiva do Ministério Público, podemos também citar recente artigo publicado pelo colega delegado de Polícia Henrique Hoffmann[1], que também encara a iniciativa inconstitucional por associar os conceitos de investigação criminal e polícia judiciária, sugerindo haver uma concentração destas atividades nas mãos da polícia, a partir da interpretação do artigo 144 da Constituição Federal.

Se é certo que o tema da investigação direta pela defesa se revela demasiadamente complexo, a ponto de embasar nossa tese de doutorado recém defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro a ser publicada em breve, demonstraremos aqui, superficialmente, que o bradar do Ministério Público e dos colegas da polícia judiciária não reverbera no espaço de normas jurídicas brasileiras.

De início, importante pontuar a grande contribuição fornecida por André Augusto Mendes Machado a respeito da investigação criminal defensiva nos sistemas norte-americano e italiano.

O trabalho desenvolvido por André Machado é um importante marco na pesquisa sobre a investigação defensiva e talvez um dos primeiros estudos que se propuseram a indicar uma abordagem analítica do instituto no direito comparado. A grande controvérsia que se desenha atualmente é saber se há amparo normativo das normas vigentes para o desempenho de uma investigação direta pela defesa.

A nosso ver, a resposta é positiva. Alçados ao nível constitucional e convencional, a ampla defesa e o contraditório previstos no artigo 5º, LV, da Constituição representam os elementos-chave para o embasamento da investigação criminal defensiva, os seus pilares de sustentação no sistema jurídico interno.

Ademais, em decorrência dos compromissos e tratados firmados pelo Brasil no plano internacional, especialmente os diversos instrumentos de proteção dos direitos humanos, torna-se possível identificar outra fonte de suporte normativo para o exercício da defesa técnica e da atividade investigativa defensiva, esta última como corolário do direito à prova assegurado a todo imputado na investigação e no processo criminal.

A Convenção Americana de Direitos Humanos prevê em seu artigo 8º, itens 1 e 2, ‘b’, ‘c’, ‘d’, ‘e’ e ‘f’, as garantias judiciais mínimas para o acusado e dali se extrai o direito à atividade probatória, especialmente quando são assegurados a defesa técnica, o tempo e os meios necessários para preparação da defesa[2]. Consequentemente, alberga-se também a investigação direta pela defesa

A investigação defensiva, como bem pontua André Mendes, é: “Garantia fundamental do imputado, inerente a um processo de partes, na medida em que constitui instrumento para a concretização dos direitos constitucionais de igualdade e defesa”[3].

Em certo ponto, há receio de que a investigação criminal defensiva não tenha espaço no Brasil por conta da ausência de regras que disciplinem o seu modo de realização. Pensar dessa forma seria negligenciar o conteúdo do princípio do devido processo legal e efetuar uma errônea leitura da ampla defesa, do contraditório, do direito à atividade probatória e da própria isonomia (o Ministério Público, que é parte, pode investigar sem previsão expressa na Constituição e nas normas infralegais, fazend-o por meio de interpretações abertas de alguns dispositivos, com base na jurisprudência do STF e ato normativo do CNMP).

Por que a defesa não pode também interpretar abertamente as normas que regem a sua atividade e, diante do exercício da investigação direta, levar o tema aos tribunais superiores tal como fez o Ministério Público?

A investigação direta pela defesa significa que não só o imputado possa buscar fontes de prova, mas também a própria vítima, em suas mais variadas posições (querelante e assistente de acusação).

No contexto da investigação defensiva, é importante destacar que a atividade de coleta de elementos informativos guarda relação direta com o direito à produção probatória, de modo que a prévia regulamentação sobre o tema seria despicienda, já que a falta de norma sobre a procedimentalização desses atos não representa obstáculo ao seu exercício.

Dentre seus vários escopos[4], a investigação defensiva se presta a permitir a coleta de elementos que forneçam a construção de teses defensivas baseadas em certos fatos; favorecer a aceitação dessas teses defensivas; permitir a formação de um percurso defensivo no processo quando o agente tenha parcela de responsabilidade pelo fato praticado; desanuviar a percepção da defesa quanto à oportunidade e conveniência na aceitação de institutos despenalizadores; antecipar a visualização de futuras colidências de defesa entre acusados; refutar a validade de provas produzidas pela acusação; ou até mesmo na própria elucidação da conduta criminosa, nesse caso, situação mais comum quando a vítima quiser participar da apuração por meio de investigação própria.

A partir desses objetivos, a defesa realiza diligências com o propósito exclusivo de identificar elementos que possam favorecer a sua situação jurídica, sem a necessária preocupação com a apuração da verdade. Poderá, entretanto, agir imbuída no espírito de clarificação da verdade, trazendo ao conhecimento da acusação informações negligenciadas pelos órgãos de Polícia Judiciária.

As vantagens da investigação desenvolvida pela defesa serão inúmeras. Com um maior aproveitamento do tempo entre a data do fato e o trânsito em julgado da causa, permitir-se-á que a defesa exerça maior intervenção nos estágios iniciais, em que os elementos de formação do convencimento estão com maior frescor, proporcionando uma imediatidade entre a prática de atos investigativos e a presença da diligência.

Uma visão prévia dos elementos que pesam em desfavor do imputado permitirá uma avaliação mais acertada do seu comportamento na relação processual, com a aceleração do curso da persecução penal e a consequente aceitação de benefícios e institutos despenalizadores previstos em lei.

A pergunta a ser feita então é: o ordenamento jurídico brasileiro possui disposições normativas capazes de solidificar uma atividade investigatória da defesa? Cremos que a resposta da presente demanda levará em conta a teoria da investigação defensiva, que será exposta ao longo do presente capítulo.

É possível concluir que a investigação criminal defensiva pode ser iniciada no Brasil independentemente de alteração no Código de Processo Penal. Na Itália, a partir de um simples dispositivo das disposições de atuação do Código de Processo Penal (artigo 38) deu-se início a uma profícua reflexão que culminou na alteração do Código e na criação de uma extensa regulamentação do tema.

O exercício de diligências como a coleta e registro de declarações, a requisição de documentos e informações, a utilização da assistência técnica, a visualização do local e de instrumentos do crime, o acesso a bancos de dados e de informações pessoais, inclusive de fontes abertas, são instrumentos exemplificativos que podem ser empregados na investigação de defesa, seja pela Defensoria Pública ou pelo advogado, a partir da leitura das normas em vigor.

Nos Estados Unidos, a falta de norma regulamentadora também não foi obstáculo ao exercício das atividades defensivas, já que a American Bar Association trouxe importantes contribuições nesse campo a partir dos seus Standards sobre função defensiva e a Suprema Corte forneceu grande instrumento por meio do caso Brady v. Maryland e o reconhecimento do dever de compartilhamento por parte da acusação (duty to disclosure).

Apesar de louvável o intento do legislador reformador, o único dispositivo incluído no PLS 156/2009 (artigo 13) não se revela suficiente para disciplinar a matéria. Pensamos que uma regulamentação inicial e não exaustiva da investigação defensiva pelo Código deva prever: 1 – o reconhecimento da atividade propriamente dita e os momentos em que ela pode ser realizada; 2 – as diligências e o seu modo de agir, estabelecendo limites e comportamentos, especialmente em relação aos terceiros abordados por essa investigação; 3 – o grau de publicidade da investigação defensiva e a possibilidade de utilização no inquérito policial, procedimento investigatório, ação penal ou qualquer outro momento procedimental; 4 – a possibilidade de investigação defensiva em favor de vítimas; 5 – o responsável pela condução da investigação defensiva e os sujeitos que dela farão parte; 6 – a possibilidade de amparo judicial quando houver obstáculo ao exercício da investigação defensiva.

De certo que a atividade regulamentar advinda da lei ordinária jamais será exaustiva e se conciliará também de ajustes promovidos pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil por meio de seu poder regulamentar (Provimentos) e dos órgãos normativos das respectivas Defensorias Públicas (Conselho Superior), enquanto não houver um órgão nacional com essa aptidão.

Note-se que não há uma relação de antecedência entre essas atividades, o que implica admitir que os órgãos de defesa podem se antecipar ao Parlamento e editar, desde logo, normas relativas à investigação defensiva, como é o caso do recente Provimento aprovado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

É preciso um debate qualificado sobre a investigação direta da defesa, sem corporativismos.


[1] https://www.conjur.com.br/2019-jan-29/academia-policia-advogado-nao-realizar-investigacao-criminal
[2] Artigo 8. Garantias judiciais
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[…]
comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.
[3] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: RT, 2010, p. 119.
[4] “Por ultimo, se as investigações judiciárias pecam por serem muitas vezes centradas na solução do crime, ao invés de serem dirigidas em função das necessidade de prova especificamente impostas pela lei processual penal para a condenação efectiva dos eventuais agentes do crime, pelo contrário, as investigações criminais levadas a cabo pelo próprio arguido deverão ser sempre preferencialmente dirigidas para a comprovação dos factos que depende a sua Defesa e não à solução crime, propriamente dita, pelos menos enquanto tal não for tido por necessário.” (OLIVEIRA, 2008, p. 57-58).

Autores

  • Brave

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito Processual pela Uerj. Professor da Universidade Cândido Mendes, da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – FESUDEPERJ e de cursos preparatórios para a carreira da Defensoria Pública. Membro da Banca do I Concurso para Ingresso na Carreira de Defensor Público do Estado do Paraná.

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