Opinião

Embargos infringentes e de nulidade: outra sensível mudança do projeto "anticrime"

Autores

  • Felipe Fernandes de Carvalho

    é sócio do escritório Mudrovitsch Advogados doutorando em Direito Penal pela USP mestre pela mesma instituição e especialista em corrupção e crime organizado pela Universidade de Salamanca.

  • Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

    é sócio do escritório Almeida Castro Castro e Turbay Advogados Associados mestre em Direito Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo IDP e em Compliance e Governança pela UnB. Bacharel em Direito pela UnB.

19 de fevereiro de 2019, 6h34

No começo deste mês, o ministro Sergio Moro encaminhou anteprojeto de lei à Câmara dos Deputados, indicando diversas propostas de alteração de leis penais, processuais penais e de execução penal, com o intuito de promover maior efetividade ao sistema de Justiça penal, bem como recrudescer o combate ao crime organizado, à corrupção e aos crimes violentos.

Algumas das modificações encampadas pelo anteprojeto já eram esperadas pela comunidade jurídica, tais como a da execução provisória da pena após o esgotamento da jurisdição ordinária e a do acordo de não persecução penal, temas que vieram, inclusive, a ser debatidos sob a ótica constitucional. Outras, por sua vez, foram, de fato, inovações e ocasionaram um debate público acalorado.

Vê-se, contudo, uma proposta de modificação na legislação processual penal que, ao que tudo indica, não despertou tanta atenção da comunidade acadêmica e da própria mídia, qual seja, as denominadas “medidas para alteração das regras do julgamento dos embargos infringentes”.

O anteprojeto propõe significativa alteração na redação do atual do parágrafo único do artigo 619 do Código de Processo Penal — que passaria a ser o parágrafo 1º —, substituindo a expressão “quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu” por “quando houver voto vencido pela absolvição em segunda instância”, com a exclusão da parte final “se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência” e a inclusão de um novo parágrafo no sentido de que “os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência e suspendem a execução da condenação criminal”.

Tal proposta de alteração merece especial atenção no atual contexto de reformas processuais, haja vista que, além de ser uma modificação na sistemática recursal, tem aptidão de influir diretamente na execução provisória da pena.

A partir do nome dado ao recurso, a doutrina costuma fazer a distinção de que os embargos são infringentes quando o acórdão impugnado possuir divergência em matéria de mérito e de nulidade quando a impugnação versar sobre questão processual capaz de gerar nulidade. A divergência apta a ensejar a interposição dos embargos infringentes e de nulidade deve ser vista de forma ampla, não se exigindo que o voto vencido seja contrário aos vencedores, mas, sim, diferente no tocante à conclusão. Se houver interesse jurídico na fundamentação — cível, ilustrativamente —, também será cabível o recurso.

Dessa forma, o objetivo dos embargos infringentes e de nulidade é sanar divergência existente nos votos de uma decisão colegiada de tribunal de segundo grau desfavorável ao réu, possibilitando que um órgão de maior amplitude passe a deliberar sobre o ponto de discordância do julgamento anterior. E mais: o recurso igualmente viabiliza a uniformização da jurisprudência dentro de uma mesma corte, pois o órgão colegiado com competência para julgar os embargos infringentes e de nulidade é normalmente formado pela junção de ao menos duas turmas ou câmaras que examinam a matéria penal, as quais podem ter entendimentos diversos.

Por sua vez, o anteprojeto apresentado pelo governo almeja restringir sensivelmente as hipóteses de cabimento dos embargos infringentes e de nulidade, admitindo-os somente quando houver voto no sentido da absolvição. Ou seja, a única divergência que poderá ensejar os referidos embargos será entre condenação e absolvição.

De pronto, percebe-se a exclusão da possibilidade de o recurso em questão atacar discordância estritamente processual, objetivando o reconhecimento de alguma nulidade, haja vista que eventual desacordo nessa seara não estaria abarcado, em regra, por um voto absolutório. Destarte, sob o ângulo da nova redação, não há falar em “embargos de nulidade”.

Ademais, de forma exemplificativa, restarão afastadas do cabimento desse recurso divergências afetas aos equívocos na dosimetria da pena, ao concurso de crimes, à continuidade delitiva e ao regime inicial de cumprimento de pena, dentre outras. É incontestável que essas matérias possuem reflexos diretos no status libertatis do jurisdicionado.

A limitação proposta não deve ser enxergada isoladamente, mas, sim, a partir de um panorama geral de diminuição de acesso aos tribunais superiores pela via recursal e pelos meios de impugnação autônomos, assim como de autorização — ou determinação, conforme o anteprojeto — da execução provisória da pena após o esgotamento das instâncias ordinárias.

O atual contexto do processo penal demanda não a retirada dos instrumentos de ampliação do debate e de uniformização de entendimento dentro de um tribunal de segunda instância, mas a potencialização deles. A uma, pois essas cortes terão, em geral, a competência para determinar expedição do mandado de prisão para cumprimento provisório da pena. A duas, porque o acórdão proferido no âmbito desses tribunais encerra a controvérsia sobre a matéria de fato. A três, porque o acesso aos tribunais superiores vem sendo restringido em termos legais e jurisprudenciais, diminuindo as possibilidades de que haja uma adequação na interpretação conferida pela turma de um tribunal em um caso concreto.

Porquanto os votos dos integrantes de uma turma têm o mesmo peso, sempre que um acórdão condenatório for formulado sem que haja unanimidade entre os julgadores, é natural que recaia maior dúvida sobre a fundamentação por ele invocada. Por essa razão, justifica-se a realização de novo julgamento, mediante aumento de membros do órgão colegiado — com possibilidade de prevalência do voto anteriormente vencido. Tal necessidade de reanálise pelo novo órgão fracionário é corroborada pela possibilidade — ou determinação, conforme o anteprojeto — de execução provisória da pena pelo mesmo tribunal prolator do acórdão.

Assim, a maior extensão dos embargos de infringência e de nulidade, cujo processamento ampliará o número de julgadores, é indispensável para minimizar a chance de erro diretamente relacionada à liberdade. Com efeito, como aponta o eminente ministro Celso de Mello, os embargos infringentes e de nulidade se revestem de alto significado por possibilitar uma nova visão sobre a controvérsia jurídica, relembrando as observações Pontes de Miranda no sentido de que não só “os melhores julgamentos, os mais completamente instruídos e os mais proficientemente discutidos, são os julgamentos das câmaras de embargos”, assim como que “muita injustiça se tem afastado com os julgamentos em grau de embargos”[1].

Por fim, a limitação proposta pouco contribui com a denominada celeridade do processo penal, pois o novo órgão colegiado somente se debruça sobre o específico ponto de divergência, conforme expressa previsão legal. Se o objetivo da mudança legislativa era viabilizar com mais agilidade a execução provisória da pena — independentemente do juízo que se faça sobre a proposta apresentada nesse tocante —, seria mais adequado que o texto apresentado veiculasse a possibilidade, sempre que cabível, de a parte incontroversa da demanda ser executada antes do julgamento dos embargos infringentes e de nulidade perante o novo órgão colegiado[2].

O projeto, nesta parte, necessita de revisitação ou, pelo menos, de aprimoramento, pois se encontra em descompasso com relevantes nuances processuais penais.


[1] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/voto-celso-mello-embargos-infringentes.pdf
[2] Posicionamento semelhante já foi adotado pelo Supremo Tribunal Federal: HC 67818, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 12/12/1989, DJ 16-02-1990 PP-00930 EMENT VOL-01569-03 PP-00516; AP-QO-décima primeira 470, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, julgado em 13/11/2013, publicado em 19/02/2014, Tribunal Pleno.

Autores

  • é sócio do Mudrovitsch Advogados, mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Corrupção e Crime Organizado pela Universidad de Salamanca (Espanha) e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

  • é advogado do Mudrovitsch Advogados, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e graduado em Direito pela UnB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!