Opinião

O impacto das emendas parlamentares impositivas no SUS

Autor

  • Lenir Santos

    é advogada sanitarista doutora em saúde coletiva pela Unicamp professora colaboradora da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

19 de fevereiro de 2019, 12h53

I. A Emenda Constitucional 86, de 2015
As emendas parlamentares ao orçamento público, a partir da EC 86, de 2015, passaram a ter a sua execução orçamentária e financeira obrigatória pelo Poder Executivo, nos termos das novas redações dos artigos 165, 166, em especial o parágrafo 11 do artigo 166.

Essa mudança constitucional fez incidir uma maior participação do Legislativo na definição do orçamento do Poder Executivo, que no nosso país, mesmo em sendo aprovado pelo Legislativo, tem característica de orçamento autorizativo, e não impositivo, uma vez que a sua programação é feita pelo Executivo, não sendo elaborado pelo Legislativo, como ocorre nos Estados Unidos, onde este poder tem a atribuição de definir as despesas públicas. Os orçamentos, quando definidos pelo Legislativo, além de lhe trazer maior responsabilidade em relação ao gasto público, exige maior poder de negociação política entre os poderes.

A partir da EC 86, de 2015, 1,2% da despesa pública (referente à receita corrente líquida do ano anterior, descontadas as contribuições previdenciárias, PIS, Pasep) pode ser definida pelos parlamentares por meio de emendas individuais ou de bancada (artigo 166, parágrafo 9º), cabendo ao Executivo o seu cumprimento, salvo nos casos em que houver impedimento de ordem técnica (parágrafo 12 do artigo 166), quando deverá ser observado o disposto nos parágrafos  9º, III, e 11 do artigo 165.

A alteração constitucional refere-se ao orçamento da União. Contudo essa também é aplicável ao estado e ao município, desde que haja previsão em sua constituição estadual e na lei orgânica municipal, podendo as assembleias legislativas e as câmaras municipais definirem determinados gastos públicos para o Executivo, nos limites da EC 86, o que é uma novidade para o ente federativo municipal. Os entes federativos devem observar as normas da EC 86.

Também houve alteração no artigo 198, parágrafo 2º, I e parágrafo 3º, I, com revogação do inciso IV que submetia à lei complementar o estabelecimento de normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União na saúde. A EC 86 previu, ainda, em seu artigo 3º que: “As despesas com ações e serviços públicos de saúde custeados com a parcela da União oriunda da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural, de que trata o § 1º do art. 20 da Constituição Federal, serão computadas para fins de cumprimento do disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal”. Isso significa que os recursos do pré-sal que eram adicionais aos valores mínimos obrigatórios da saúde passam a integrá-lo, não sendo mais um plus, o que significa uma redução de recursos por ser computado no cálculo mínimo, não sendo mais um valor a acrescer anualmente.

A emenda prevê no parágrafo 14 do artigo 166 as medidas a serem tomadas no caso de impedimento de ordem técnica no empenho de despesa que integre a programação, definindo prazos para o envio das justificativas, em razão do disposto no inciso III do parágrafo 9º que trata dos impedimentos técnicos, a cargo de lei complementar.

Releva notar que este dispositivo (parágrafo 9, III, do artigo 165) reza que deverá haver, por lei complementar, critérios para: a) a execução equitativa da programação; b) o cumprimento de restos a pagar; c) a limitação das programações das emendas no tocante à sua obrigatoriedade (parágrafo 11 do artigo 165).

Tal lei ainda não editada, ressaltando-se o disposto nos parágrafos  16, 17 e 18 do artigo 166, em especial o parágrafo 18 (que peca pela falta de clareza redacional), que leva ao entendimento de que se deve considerar como um dos critérios de equidade na execução das emendas, a sua aplicação em programação obrigatória do ente federativo que possa atender de forma igualitária e impessoal o que foi determinado pela emenda. Os outros dois, o parágrafo 16 impõe limite na execução financeira do resto a pagar, e o parágrafo 17 trata da reestimativa da receita e da despesa que poderá afetar o cumprimento da emenda parlamentar.

II. As emendas na saúde
Qual o impacto das emendas impositivas na área da saúde? Primeiramente, devemos lembrar que a metade do 1,2%, ou seja, 0,6% do orçamento, deve se destinar ao setor saúde e ser computado no gasto mínimo obrigatório do ente, lembrando-se da vedação de utilização desses recursos em gasto com pessoal e encargos sociais.

Pouco tem sido discutido sobre tal aspecto, sendo que as portarias editadas em 2017 e 2018 pelo Ministério da Saúde somente tratam da execução orçamentário-financeira, restando outros aspectos estruturais em relação ao SUS, a serem regulados. No SUS, é imperiosa a execução de forma equitativa da emenda; o que pode ser definido como impedimento técnico; e o resto a pagar. Parâmetros de equidade são obrigatórios na saúde para não criar assimetrias na organização do SUS, tampouco desrespeitar as suas políticas e as necessidades da população para diminuir as disparidades e desigualdades regionais.

III. Aspectos jurídico-sanitários na aplicação das emendas na saúde
Se não eram novidade as emendas parlamentares individuais, a obrigatoriedade de sua execução orçamentário-financeira pelo Executivo o é, tanto quanto o seu limite orçamentário e o percentual que deve ser destinado à saúde, e, ainda, o seu cômputo para o gasto mínimo em saúde do ente federativo responsável pela indicação da emenda. Vários são os aspectos que devem ser observados, obrigatoriamente. O primeiro deles refere-se ao aumento global dos valores das emendas parlamentares, em especial as destinadas ao custeio de atividades em relação aos investimentos. Na maioria das vezes as emendas parlamentares destinavam-se às atividades de capital (despesa de investimento) e agora se voltam mais para o custeio (despesa corrente), sempre de modo episódico e incremental.

Em 2017, as despesas empenhadas foram na ordem de R$ 7,401 bilhões, equivalentes a 6,4% do total das despesas empenhadas em ações e serviços públicos de saúde, sendo que, desse total, R$ 4,364 bilhões corresponderam ao valor das emendas impositivas (0,6% da RCL que foi de R$ 727,253 bilhões)[1]. Como esse valor tem impacto no piso mínimo da saúde, a sua aplicação se submeta aos regramentos do SUS, dentre eles, o planejamento da saúde, o plano de saúde plurianual, a regionalização das redes de atenção e seu plano regional e as programações anuais.

Sabemos das negociações de cunho “paroquial”, o que deve ser coibido por uma regulamentação que exija cumprimento das regras do SUS, em especial o seu planejamento nacional, estadual, regional e municipal e a natureza jurídica dessa emenda, que deve ser considerada como transferência obrigatória e não voluntária, ainda que aparentemente elas possam ser entendidas como subvenção, dado o seu caráter temporário, individualizado e de incremento de atividades. Mas é exatamente isso que precisa ser inibido no SUS.

Aliás, o disposto no parágrafo 18 do artigo 166 reforça o entendimento de que a as programações legislativas para o Executivo na área da saúde deve ser obrigatória, ao dizer que a programação que atende a forma igualitária e impessoal em sua aplicação, estará observando o critério de equidade.

A natureza da transferência na saúde, se classificadas como voluntárias, imporá um alto valor ao piso mínimo da saúde, a cargo de definição individual do parlamentar, muitas vezes, ao largo das regras impostas às transferências obrigatórias, o que seria uma forma desastrosa de utilização dos recursos definidos pelo Legislativo para o Executivo. Esse caráter voluntário não coaduna com a aplicação do piso em saúde, tampouco com os critérios de rateio, a regionalização, o plano de saúde e as programações obrigatórias da LC 141, de 2012. Nesse sentido, entendemos que a melhor hermenêutica é a que define a natureza das programações legislativas como transferências obrigatórias da União para os estados e municípios (e dos estados, quando houver, para os seus municípios).

O artigo 17 da LC 141, de 2012, prevê aplicação equitativa dos recursos das transferências intergovernamentais obrigatórias para diminuir as disparidades regionais na saúde. Com a emenda sendo considerada transferência obrigatória, o enfrentamento das disparidades federativas é imperativa. Isso revela que a melhor hermenêutica à programação das emendas é a que a considera como transferências obrigatórias. O fato de ser indicada por parlamentar (Legislativo) não retira a sua qualidade de recursos públicos transferidos para o SUS; trata-se tão somente de uma programação feita pelo do Poder Legislativo no orçamento público, que não pode se contrapor às regras do SUS; pelo contrário, devem ser de observância obrigatória.

O Ministério da Saúde regulamentou pela Portaria 565, de março de 2018, a aplicação dos recursos das emendas parlamentares para o exercício de 2018. A cada ano deverá ser editada portaria visando à aplicação dos recursos sob a ótica da técnica orçamentária e financeira, em conformidade à LDO federal; contudo, essa regulamentação anual não disciplina as regras previstas no inciso III do parágrafo 9º do artigo 165, por depender de lei complementar. Por isso os aspectos estruturantes do SUS e seu cunho sistêmico, de ordem constitucional (artigo 198, caput, da Constituição) e legal devem ser observados.

Outro aspecto é o respeito ao planejamento da saúde, essencialmente regional, por ser o SUS uma rede integrada e regionalizada de ações e serviços púbicos de saúde dos entes federativos, que permite a participação de pessoas jurídicas de direito privado, como as do terceiro setor; isso torna imperioso seja observado tal planejamento, até porque estes recursos, sob a denominação de incremento, são repassados na modalidade fundo a fundo.

Quantos aos recursos de capital que acrescem custos, eles não devem ser realizados sem a indicação prévia de fonte de custeio futuro. Há a Resolução da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) 10, de 2016, dispondo sobre esse tema.

A Lei 8.080, de 1990, reza que não pode haver alocação de recursos aos entes federativos ou despesas à margem do plano de saúde (artigo 36, parágrafo 2º), impondo-se às emendas parlamentares, bem como os critérios de rateio da Lei Complementar 141, de 2012 (artigo 17)[2], que regula as transferências obrigatórias. Como os recursos das emendas parlamentares entram no cômputo do gasto mínimo obrigatório, deve ser observado também o disposto nos artigos 3º e 4º da Lei Complementar 141, de 2012, quanto ao que pode ser considerado como ações e serviços de saúde para efeito do cumprimento desse gasto mínimo.

IV. As entidades privadas e as emendas parlamentares
Em princípio, as entidades privadas que participam do SUS de forma complementar podem obter recursos de emendas parlamentares. As entidades sem fins lucrativos, tanto quanto as com finalidades lucrativas, que participam do SUS complementarmente, podem ser indicadas pelo Legislativo como executoras das emendas, não havendo dúvidas quanto às entidades sem fins lucrativas, cabendo ao município recebedor da emenda federal repassá-la à entidade destinatária, observado sempre o ajuste existente.

Contudo, no caso das entidades privadas com fins lucrativos, há a vedação imposta pelo parágrafo 2º do artigo 199 da Constituição a impedi-las de receberem recursos de subvenções e auxílios. Isso tem implicação com a hermenêutica quanto à natureza da emenda, se deve ser computada como transferência obrigatória ou como voluntária, conforme mencionado no item III deste trabalho.

Se o entendimento a prevalecer entre os órgãos de controle não for o de transferência intergovernamental obrigatória, as entidades com finalidades lucrativas não poderão recebê-las pelo fato de a sua natureza voluntária assemelhar-se às subvenções e auxílios.

Entretanto, se compreendidas no âmbito das transferências obrigatórias, poderiam destinar-se também às entidades lucrativas, no estrito limite do escopo do contrato firmado, respeitado, ainda, o limite dos acréscimos permitidos pela Lei de Licitações e Contratos (25% do seu objeto). Como exemplo, um contrato de cirurgia de cataratas poderia ser incrementado em até 25%, para, muitas vezes, desafogar as filas existentes. Se o gestor pode contratar serviços de entidades lucrativas com recursos que integram o piso mínimo da saúde, nada há a impedir a indicação pelo Legislativo de programação que permita o incremento ao objeto contratado, no estrito limite da Lei 8.666, de 1993.

Quanto aos recursos para investimentos, não vemos como possível, tendo em vista o benefício implicar em ganhos para a entidade lucrativa por se tratar de bens ou obras de natureza permanente, não se podendo falar em doação pública futura ou concessão de uso do bem, em razão dos fins econômicos dessas entidades.

No tocante às emendas que destinam recursos para investimentos em entidades privadas sem fins lucrativos, devem ser observadas as regras quanto à propriedade pública do bem e de seu uso exclusivo aos usuários do SUS e indenização ao poder público, caso o ajuste administrativo seja rompido antes do prazo previsto, dentre outras restrições.

V. Os processos administrativos de transferência dos recursos
Quanto ao processo de transferência dos recursos para as entidades do terceiro setor (e das lucrativas também, respeitados os limites acima mencionados), uma vez que os recursos do Fundo Nacional de Saúde são transferidos para o ente federativo que mantém contrato ou convênio com a entidade para o repasse, muitas têm sido as incompreensões e dúvidas.

Sendo as emendas incrementais, episódicas, mas que precisam observar regramentos do SUS devem elas estar em acordo ao objeto do contrato ou convênio firmados com os prestadores de serviço, ou este ser aditado desde que o seu objeto não fira o plano de saúde regional ou local. Enquanto não há tal regulamento, a regra é da obrigatoriedade do repasse do valor da emenda, que deve guardar em sua execução, compatibilidade com o objeto do ajuste, em linhas gerais, e com o plano de saúde do ente federativo.

Também o disposto na Portaria MS 3.992, de 2017 (Portaria de Consolidação 6, de 2017), que rege a forma de utilização e não os critérios de transferência de recursos — definindo os blocos de financiamento de custeio (recursos destinados à manutenção das ASPS já implantados e ao funcionamento dos órgãos e estabelecimentos responsáveis) e de investimentos (recursos destinados à estruturação e a ampliação de oferta de ASPS) deve ser observado, pelo fato de se tratar de uma transferência interfederativa, que deve estar em acordo à forma de aplicação dos recursos, preconizada pelo ente federal.

Por fim, esse é um tema vasto e novo pelo fato de a EC 86 ser de 2015, com efeitos a partir do orçamento de 2016 — ainda que desde 2014 e 2015 tenham sido dispostas na LDO federal — que precisa ser mais debatido e melhor disciplinado para que os regramentos do SUS sejam observados na aplicação de recursos públicos da saúde, não podendo a emenda ser vista como recurso à parte, livre da observância de suas regras constitucionais, legais e infralegais.

VI. Conclusões
Por conclusivo e de modo resumido, compreendemos que as emendas parlamentares ao orçamento do Poder Executivo destinadas à saúde devem observar, em sua execução, regras como:

  • as emendas parlamentares são de execução obrigatória pelo Executivo, cabendo a lei complementar definir os impedimentos de ordem técnica;
  • na área da saúde, as programações legislativas no orçamento federal, que integram o seu piso constitucional, devem observar as normas que dispõem sobre a estrutura organizativa e o funcionamento sistêmico do SUS; seu plano de saúde, em especial o regional; as programações anuais; o que são ações e serviços de saúde; os termos dos ajustes com o setor privado sem fins lucrativos que participa do SUS complementarmente, devendo haver aditivos em caso de não conformidade com seu objeto, mas em acordo ao plano de saúde e suas programações e as necessidades de saúde; aos parâmetros assistenciais, vedando-se extrapolações desses limites;
  • os valores das emendas devem ser computados como despesas vinculadas às transferências intergovernamentais obrigatórias, sujeitas, pois, às suas normas;
  • em que pese o Acordão do TCU 2.278, de 2018, quanto à impossibilidade de as entidades privadas lucrativas poderem receber recurso de custeio por emenda, entendo que, se esse recurso tiver caráter incremental ao objeto do seu contrato no limite de 25% da lei de licitação e contratos, mediante termo aditivo, não haveria impedimento por não se caracterizar como subvenção, sendo vedado o de capital pelo fato de acrescer patrimônio para a entidade, conforme proibição do artigo 199, parágrafo 2º, da Constituição, caracterizando-se, neste caso, como auxílio;
  • as emendas de capital devem indicar previamente à sua execução, a fonte de custeio futura, nos termos do disposto na Resolução CIT 10, de 8/12/2016; e
  • há necessidade de disciplinar a aplicação das emendas para a observância correta dos parâmetros, diretrizes, estruturas do SUS.

[1] Fonte: Comissão de Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde, 2018. www.conselho.saude.gov.br.
[2] Os critérios de rateio têm três eixos ou natureza: 1ª eixo destinado a promover a equidade federativa sanitária, atendendo necessidades de saúde da população em razão de suas características socioeconômicas, demográficas, geográficas e epidemiológicas; 2ª eixo destinado ao financiamento das redes de serviços; 3ª eixo, vinculado ao desempenho dos serviços do ano anterior.

Autores

  • é advogada, especialista em Direito Sanitário pela USP, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora dos cursos de especialização do Idisa — Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!