Contas à Vista

Se o Congresso não aprovasse o orçamento, teríamos um shutdown à brasileira?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

19 de fevereiro de 2019, 8h05

Spacca
Conflitos entre Executivo e Legislativo acerca do uso do dinheiro existem há muitos anos, como o que ocorreu durante a unificação alemã[1] no final do século XIX, quando surgiu o entendimento de ser o orçamento uma lei em sentido formal, o que influiu na jurisprudência do STF até o início do século XXI[2].

Tais disputas orçamentárias são conhecidas nos Estados Unidos pela expressão shutdown. O atual conflito norte-americano ocorre em torno de verbas para a construção de um muro na fronteira com o México. A negativa do Legislativo em aprovar esse gasto resultou no mais longo shutdown da história daquele país entre dezembro de 2018 e janeiro de 2019, com diversos serviços públicos paralisados e cerca de 800 mil servidores públicos sem receber salários.

Em uma segunda etapa desse conflito, o presidente Trump decretou emergência nacional a fim de poder remanejar livremente as verbas destinadas a outros órgãos públicos e alocá-las para a finalidade almejada. Consta que remanejará dinheiro destinado ao Pentágono para a construção do “seu” muro. Tudo indica que o assunto será judicializado, pois há substancial diferença com situações anteriormente ocorridas, uma vez que agora houve expressa rejeição parlamentar da verba pretendida, enquanto que nas anteriores a emergência nacional ocorreu por eventos imprevistos, como o furacão Katrina ou o atentado de 11 de setembro de 2001.

Aguardemos o desfecho da crise norte-americana para aprender um pouco mais sobre a efetividade do sistema de freios e contrapesos voltado para o controle orçamentário naquele país.

É possível ocorrer semelhante conflito orçamentário no Brasil? Um shutdown à brasileira?

O atraso na aprovação dos projetos de lei orçamentária é rotina no Brasil. O que deveria ocorrer antes do encerramento do ano, para vigorar no ano seguinte, é usualmente aprovado já com o ano em curso. A lei orçamentária que deveria reger o ano de 1992 (Lei 8.409) foi aprovada em 28 de fevereiro de 1992; a de 1993 (Lei 8.652) também foi aprovada pelo meio do ano em curso (em 29 de abril de 1993); a de 1994 (Lei 8.933) foi um escândalo, pois foi aprovada em 9 de novembro de 1994. Mais recentemente a lei orçamentária de 2015 (Lei 13.115) foi aprovada em 20 de abril de 2015; a de 2016 (Lei 13.332) também teve um retardo escandaloso, tendo sido aprovada em 1º de setembro de 2016. Tais períodos coincidiram com enormes disputas entre os Poderes Executivo e Legislativo da União, que culminaram com o impeachment de dois presidentes e o rearranjo econômico do país.

A partir de 2017 quase não se pode falar de atraso (2017: Lei 13.414, de 10 de janeiro de 2017; 2018: Lei 13.587, de 2 de janeiro de 2018; e 2019: Lei 13.808, de 15 de janeiro de 2019).

Como o país pode funcionar sem a lei orçamentária aprovada? Em comparação com o shutdown norte-americano, nenhum servidor público ficou sem receber salários, bem como os serviços públicos não foram paralisados no Brasil por falta de dinheiro.

No âmbito da Constituição de 1967, alterada pela Emenda 1/1969, havia previsão expressa a respeito no artigo 66, prevendo que, “se, até trinta dias antes do encerramento do exercício financeiro, o Poder Legislativo não o devolver para sanção, será (o projeto de lei orçamentária) promulgado como lei”[3]. Ou seja, no silêncio do Legislativo, seja em razão de atraso ou rejeição, o projeto enviado se transformaria em lei. José Afonso da Silva criticava tal norma, comentando sob a hipótese da rejeição, pois transformaria o Legislativo “num mero órgão a que nada mais praticamente caberia em matéria orçamentária do que dizer amém ao que pretende o Executivo”, e aventava a solução de prorrogação da lei orçamentária, a despeito de ser uma norma de prazo certo[4].

A Constituição de 1988 dispôs a respeito no artigo 169, parágrafo 8º: “os recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes poderão ser utilizados, conforme o caso, mediante créditos especiais ou suplementares, com prévia e específica autorização legislativa”. A lógica é que, cancelada uma despesa, a receita “ficará sobrando” e só poderá ser gasta mediante autorização legislativa, entendimento corroborado por José Afonso da Silva ao comentar a norma atual[5].

Parece-me, contudo, que existem três diferentes situações em debate: (1) rejeição pelo Legislativo da íntegra do projeto de lei orçamentária enviado pelo Executivo; (2) não aprovação de um item específico de gastos previsto no projeto de lei orçamentária enviado ao Legislativo; e (3) atraso na aprovação da lei orçamentária pelo Legislativo.

Havendo rejeição integral do projeto, hipótese altamente improvável no âmbito federal e sem precedentes, cada gasto deverá ser expressamente autorizado pelo Legislativo consoante o artigo 169, parágrafo 8º, CF, mediante créditos especiais, sendo incabível o uso de créditos suplementares — afinal, se vai suplementar o que se nada tiver sido aprovado em face da rejeição in totum? A classificação adotada pelo artigo 41 da Lei 4.320/64 é clara acerca disso[6].

A mesma norma regula a segunda hipótese, de ter havido veto ou emenda parlamentar que ocasione a existência de receitas sem o correspondente gasto. Se tais receitas efetivamente ocorrerem, ficariam disponíveis para uso pelo Executivo desde que autorizadas pelo Legislativo mediante créditos especiais ou suplementares. Ou ainda, se as receitas não ocorrerem e o gasto vetado se tornar necessário, deverá haver expressa autorização do Legislativo para permitir transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma programação para outra ou de um órgão para outro (artigo 167, VI, CF).

A situação é mais nublada em caso de atraso na aprovação da lei orçamentária pelo Legislativo. Aqui há uma aparente lacuna normativa, sendo adotada a prática de seguir a mesma programação da lei orçamentária do ano anterior, rubrica a rubrica, obedecidos os tetos estabelecidos, até que ocorra a aprovação da nova lei.

Expostas estas diferentes situações, retorna-se à pergunta: poderia ocorrer no Brasil algo semelhante ao shutdown norte-americano? A resposta é: em termos.

Se o Legislativo rejeitar totalmente o projeto enviado pelo Executivo, o que, repete-se, é uma hipótese muito pouco provável, haveria um completo shutdown orçamentário, devendo o Executivo solicitar as devidas autorizações legislativas caso a caso. Um verdadeiro caos no país.

Outra hipótese seria a de haver a rejeição pelo Legislativo de item(ns) orçamentário(s) previsto(s) no projeto enviado pelo Executivo. Neste caso, aqueles gastos não poderiam ser realizados e algum serviço público específico poderia ser afetado. Basta imaginar o Legislativo não aprovando no orçamento os gastos do Tribunal de Contas da União, como ameaçou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Sem orçamento, o TCU simplesmente pararia. Todavia, o shutdown brasileiro seria parcial, localizado, semelhante ao norte-americano atual, porém com uma diferença importante: o salário dos servidores públicos estaria garantido porque algumas despesas públicas não podem sequer ser objeto de emendas parlamentares, o que equivale a dizer que estão imunes ao debate parlamentar, constituindo-se em algo como uma cláusula pétrea orçamentária.

Explico melhor: o artigo 166, parágrafo 3º, da Constituição prevê que as emendas ao projeto de lei orçamentária ou aos projetos que a modifiquem somente podem ser aprovadas sob duas condições: (i) caso sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias e (ii) caso indiquem os recursos necessários, a partir de anulação de despesas, o que implica em dizer que o Legislativo não pode aumentar a estimativa de receita enviada pelo Executivo para abrigar mais despesas, apenas anular as despesas apresentadas no projeto. Ocorre que dentre as despesas que não podem ser anuladas estão as dotações para pessoal e seus encargos e o pagamento da dívida pública. Logo, o que estiver previsto no projeto de lei orçamentária acerca de gastos com pessoal (o que inclui os gastos previdenciários) e o pagamento da dívida, está blindado contra qualquer emenda parlamentar, razão da expressão cláusula pétrea orçamentária[7]. Em breves palavras: o que está no projeto enviado pelo Executivo acerca desses dois itens de gastos não pode ser alterado pelo Legislativo, o que faz o projeto se transformar automaticamente em lei referente as essas matérias. Logo, é inexistente a possibilidade de ocorrer no Brasil um shutdown no qual os servidores públicos não venham a receber seus salários, tal como nos EUA. Seria uma espécie de shutdown à brasileira.

Por outro lado, em caso de atraso na aprovação do orçamento os serviços públicos se mantêm funcionando, em face da prática que consagra o entendimento de realizar as despesas sob a programação orçamentária do ano anterior. Logo, os gastos necessários ao funcionamento do serviço público permanecem intactos. Todavia, tal prática estará de acordo com a Constituição? Haverá mesmo uma lacuna normativa que permita esse entendimento?

Relembremos que a Constituição veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual (artigo 167, I) e impede a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários (artigo 167, II). E que o projeto de lei orçamentária deva ser devolvido pelo Congresso para sanção até o encerramento da sessão legislativa (artigo 35, III, ADCT), que ocorre em 22 de dezembro de cada ano (artigo 57, CF)[8].

Logo, a prática adotada labora em favor da continuidade dos serviços públicos, o que parece adequado ao perfil cordial do povo brasileiro, porém infringe o que dispõe a Constituição. Como gastar sem lei, mesmo que tal ausência decorra da inércia do Legislativo? Para cumprir a Constituição, deveria haver um completo shutdown, um verdadeiro apagão financeiro por falta de aprovação lei orçamentária em tempo hábil — respeitado o pagamento dos salários e da dívida, como exposto. Já imaginaram a pressão popular sobre o Legislativo em tal hipótese? Seria interessante ver em concreto como isso ocorreria, se o povo brasileiro se manteria cordial caso jeitinho encontrado para driblar a Constituição fosse considerado inconstitucional.

O fato é que o Legislativo brasileiro está descobrindo, pouco a pouco, sua importância e relevância, e que tem a chave do cofre público para controlar muitas coisas (embora algumas estejam fora de seu campo de deliberação). É preciso, contudo, que a sociedade preste mais atenção às eleições para o Legislativo — afinal, passados quatro meses das eleições de outubro/18 você lembra em quem votou para deputado federal, estadual e senador?

O modo como um país cuida das suas finanças revela muito sobre a sociedade que nele habita.


[1] Sobre o assunto, ver meu Orçamento Republicano e Liberdade Igual (Belo Horizonte: Fórum, 2018, item 1.3.5).
[2] Para essa análise jurisprudencial ver o texto que escrevi a quatro mãos com Francisco Sérgio Rocha denominado A trajetória do controle concentrado de constitucionalidade do orçamento e sua ultrapassagem como lei formal, inserido na obra Direitos Fundamentais e Estado Fiscal – Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres (Salvador: Juspodivm, 2019) coordenada por Carlos Alexandre Campos, Gustavo Vital de Oliveira e Marco Antonio Macedo, a ser lançada durante o IV Congresso Internacional de direito tributário do Rio de Janeiro, organizado pela ABDF – Associação Brasileira de Direito Financeiro, entre os dias 27 e 29 de março de 2019.
[3] CF 67, alterado pela EC 1/69, art. 66: “O projeto de lei orçamentária anual será enviado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, para votação conjunta das duas Casas, até quatro meses antes do início do exercício financeiro seguinte; se, até trinta dias antes do encerramento do exercício financeiro, o Poder Legislativo não o devolver para sanção, será promulgado como lei”. No texto foram apostos parêntesis.
[4] José Afonso da Silva, O Orçamento Programa no Brasil. São Paulo: RT, 1973, pág. 301/303.
[5] José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 29ª Ed. São Paulo: Malheiros, pág. 748. Registra-se que o autor trata da rejeição e não do atraso na aprovação da lei orçamentária.
[6] Lei 4.320/64, art. 41: Os créditos adicionais classificam-se em: I – suplementares, os destinados a reforço de dotação orçamentária; II – especiais, os destinados a despesas para as quais não haja dotação orçamentária específica; III – extraordinários, os destinados a despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública.
[7] Sobre o assunto, ver meu Orçamento Republicano e Liberdade Igual (Belo Horizonte: Fórum, 2018, item 3.5).
[8] Não pode ocorrer a interrupção da sessão legislativa sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias, nada sendo referido acerca da lei orçamentária anual (Art. 57: § 2º A sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias).

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    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, Professor Titular de Direito Financeiro da USP e Professor Titular de Direito Financeiro e Tributário da UFPA.

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