Opinião

O projeto de reformas e a competência para julgar os crimes conexos ao de caixa 2

Autor

  • Felipe Américo Moraes

    é advogado no escritório Beno Brandão Advogados Associados mestre em Direito pela Universidade Curitiba especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial e autor do livro "Bitcoin e Lavagem de Dinheiro".

18 de fevereiro de 2019, 16h31

Com a recente apresentação do projeto "anticrime" do governo federal, muitos se dedicaram a fazer alguns esclarecimentos sobre o tema. Aqui, tratarei especificamente do caixa 2.

Antes de falar propriamente sobre as alterações, valem algumas considerações iniciais. No Brasil, a expressão “caixa 2” possui dois significados: a simples manutenção de uma contabilidade paralela àquela exigida pela legislação por determinada pessoa jurídica, ou, em sentido distinto e bastante utilizado pela mídia, o ato de não declarar verba recebida em campanha eleitoral. Acredita-se que a nomenclatura mais adequada para este caso seria “caixa 2 eleitoral”.

É fato que, atualmente, não existe um crime específico para o caixa 2, em que pese condutas a ela relacionadas possam ser, sim, criminosas.

O mais preciso crime que adequaria ao conceito é previsto no âmbito do Sistema Financeiro Nacional (artigo 11 da Lei 7.492/86). Entretanto, os delitos previstos nessa legislação são próprios de instituição financeira (artigo 25 da Lei 7.492/86), não existindo, portanto, um crime específico de movimentação paralela de contabilidade para empresas privadas. Ainda assim, o fato pode configurar crime. Se o caixa 2 é mantido por empresa privada, poderá configurar crime de falsidade ideológica (artigo 299, CP)[1], ou, se extrapolar a simples omissão fraudulenta, passando a pretender a redução ou supressão do pagamento de tributo, haverá crime de sonegação fiscal.

Ainda assim, importante destacar que não será toda manutenção de dinheiro em caixa 2 que configurará crime. É possível que dinheiro seja retirado da empresa sem que tenha ocorrido uma falsidade e com todos os tributos referentes à operação pagos, de modo que a transação não configure crime em nossa legislação[2].

Quanto ao uso de caixa 2 em campanhas eleitorais, é fato que não há tipificação específica, sendo que, atualmente, configura crime de falsidade ideológica eleitoral (artigo 350, CE)[3], entendimento esse já consolidado pela jurisprudência[4].

Ou seja, em inexistindo no Direito Penal um crime específico para o chamado caixa 2 eleitoral, a questão se cinge à punição pelos crimes citados acima[5].

Além desses, possível ocorrer prática de crimes correlatos. Caixa 2 eleitoral poderá, a depender de outras circunstâncias, configurar corrupção e/ou lavagem de dinheiro. Mas isso não ocorrerá obrigatoriamente.

É fato que doações realizadas via de caixa 2 não implicarão no automático reconhecimento de que o dinheiro possua proveniência ilícita. É plenamente possível que o dinheiro assim armazenado seja fruto da própria atividade lícita da empresa (como prestação de serviço ou venda de produtos), mas que tenham sido colocados à margem da contabilidade para que, futuramente, fosse doado para campanha política; isso com o único objetivo de não fazer aparecer publicamente a doação desses valores. Essa distinção, inclusive, já foi feita pelo ministro Gilmar Mendes em entrevista concedida à BBC Brasil[6].

Por evidente, somente quando houver origem ilícita do dinheiro de caixa 2 que ocorrerá, concomitantemente, crime de lavagem de dinheiro, mas que sempre será aleatório e eventual[7].

Quanto ao crime de corrupção, deve ser verificada a existência ou a promessa da realização de um ato de ofício condicionada à entrega de uma vantagem pelo particular ao agente público. Ou seja, doa-se dinheiro para campanha com a existência de uma contraprestação futura, que poderá ou não acontecer. E isso pode ocorrer com a doação declarada, via caixa 1, ou aquela feita às escondidas, via caixa 2. O entendimento é que doações ilegais podem servir de indício, mas não constituem por si só crime de corrupção[8].

Para Alaor Leite, “o elemento decisivo do crime de corrupção é o chamado pacto de injusto, ou seja, a conexão entre a vantagem e a contrapartida do funcionário público”. E, nesse sentido, já se manifestou o ministro Luiz Edson Fachin, esclarecendo que “tenho que, em tese, doações contabilizadas até podem ser vantagem indevida, para fins do tipo do art. 317 do CP. O político não pode colocar o seu mandato à disposição de quem se dispuser a pagar o preço, via Caixa um ou dois”[9].

Em que pese os casos da operação "lava jato" tenham apurado crimes de caixa 2, corrupção e lavagem e dinheiro, não houve praticamente distinção entre essas modalidades no âmbito dessa operação. Isso se deveu ao fato de que os maiores elementos de prova estavam, justamente, na corrupção, a qual deu lastro à investigação dos demais fatos. Ou seja, o foco central da discussão são os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, deixando à margem o de caixa 2 eleitoral.

Maior incursão houve no caso do mensalão[10]. Nele, fora arguida como tese defensiva dos dirigentes partidários e detentores de mandatos eletivos que o recebimento durante a campanha eleitoral de recursos não contabilizados configuraria caixa 2 eleitoral. Particularidade do caso fora de que esses pagamentos eram mensais, em grande monta e que, principalmente, não fora comprovado o uso do dinheiro em campanha eleitoral. Por tais motivos, o Supremo Tribunal Federal não acolheu o argumento de que seria tão somente caixa 2 eleitoral, mas também crimes de corrupção e lavagem e dinheiro. Com isso, os ministros discorreram sobre as distinções entre esses delitos, valendo resumir, aqui, que a simples doação ilegal de campanha não se confunde, obrigatoriamente, com lavagem de dinheiro e corrupção, eis que nestes casos há o uso de recursos obtidos ilicitamente, bem como haveria ato de ofício (ou, ou menos, promessa) pelos agentes públicos.

Feitos os esclarecimentos iniciais, fala-se sobre o projeto "anticrime" do atual governo, apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. Como noticiado pela imprensa[11], a promessa de apresentação ainda no mês de fevereiro foi cumprida. E ele prevê, em seu “item XIV”, o que chamou de “medida para melhor criminalizar o uso de Caixa dois em eleições”.

Com a alteração, passará a ser previsto expressamente o crime de caixa 2 eleitoral, tornando-se crime toda conduta de arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral, bem como aquele que doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas mesmas circunstâncias. A pena, que antes era prevista de “até cinco anos”, passou a possuir um mínimo de 2 anos, podendo ser aumentada de 1/3 a 2/3 caso haja alguma participação de agente público (como ocorrera reiteradamente nos casos da operação "lava jato").

Além disso, passou a ser expressamente previsto como crime, também, qualquer contribuição prestada pelos candidatos ou integrantes de partidos políticos.

Em que pese significativa a alteração da pena, não é esse o maior destaque do projeto quanto ao caixa 2. Outra de extrema importância, que não pode passar desapercebida, é a sugestão de alteração quanto à competência para processar e julgar os crimes conexos aos eleitorais. A redação atual do dispositivo que define a competência (artigo 35, do Código Eleitoral) afirma que a Justiça Eleitoral julgará os crimes eleitorais “e os comuns que lhe forem conexos”. Pelo projeto, esse trecho será excluído do referido artigo.

Além disso, foi proposta alteração quanto ao artigo 79 do CPP, para acrescer exceção da união dos processos, acrescentando um terceiro inciso que seria “no concurso entre a jurisdição comum e a eleitoral”.

E o motivo dessa alteração pode ser verificada em um recente caso da operação "lava jato". Denúncia oferecida (10/8/2018) em face de diversas pessoas, dentre elas Antônio Palocci, Marcelo Odebrecht, Mônica Moura e João Santana, pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, narrou que a Odebrecht ofereceu vantagens indevidas aos ex-ministros da Fazenda dos governos do PT, com o objetivo de influenciá-los na edição das medidas provisórias 470 e 472, que teriam beneficiado a empreiteira. A promessa de propina, aceita por Guido Mantega, foi de R$ 50 milhões, sendo que o valor teria ficado à disposição dele na “conta geral de propinas do PT” mantida pela Odebrecht. Uma parte desse montante (R$ 15 milhões) teria sido entregue à Mônica Moura e João Santana, que trabalharam como marqueteiros para Dilma Rouseff na campanha de 2014.

A principal discussão quanto ao caso decorreu do fato de que a denúncia fora oferecida exclusivamente pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, ignorando por completo o crime de caixa 2 eleitoral, claramente presente nos fatos.

Com isso, foi manejada reclamação junto ao Supremo Tribunal Federal para, justamente, firmar a competência para julgar o feito. E o entendimento foi nesse sentido. A crítica feita pelo tribunal fora de que “desse cotejo sobressai que os mesmos fatos que conduziram o Supremo Tribunal Federal à conclusão de eventual prática de crime eleitoral e de crimes comuns conexos — que foram determinantes na análise da ação paradigma para o encaminhamento dos termos de colaboração à Justiça Eleitoral —, foram deliberadamente utilizados pelo Ministério Público Federal para denunciar o reclamante junto a autoridade reclamada, sob a roupagem dos crimes comuns de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, o que, a toda evidência, neste exame preliminar, caracterizaria doações eleitorais por meio de Caixa 2”. Em conclusão, foi entendido que, “havendo notícia da prática de crime eleitoral e de crimes comuns conexos, tenho determinado o encaminhamento dos termos de colaboração à Justiça Eleitoral”[12].

A alteração da lei visa, justamente, prevenir que o crime mais bagatelar, de caixa 2 eleitoral, atraia a competência dos mais graves, no caso, a corrupção e a lavagem de dinheiro. Com isso, passará somente o crime eleitoral a ser processado perante a Justiça Eleitoral, enquanto será processado pela Justiça comum os crimes conexos, em autos separados. Em efeitos práticos, citando como exemplo o caso acima, ter-se-ia um processo em trâmite perante a Justiça Federal pelos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, e outro, perante a Justiça Eleitoral, exclusivamente quanto ao crime de caixa 2 eleitoral.


[1] Roberto Delmanto. Leis Penais Especiais Comentadas. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 67.
[2] Alaor Leite; Adriano Teixeira. Financiamento de Partidos políticos, caixa dois eleitoral e corrupção. P. 3210 (livro eletrônico).
[3] Marcos Ramayana. Direito Eleitoral. 16ª Edição. Editora Impetus: Rio de Janeiro, 2018. P. 960.
[4] TSE. HC nº 581. Rel. Min. Cesar Peluso. Julg. em 18/3/08.
[5] TRE-SE. Representação nº 158. Rel. Des. Osório de Araújo Ramos Filho. Julg. em 28/7/16.
[6] Em entrevista concedida à BBC Brasil em 10/3/17, fez distinção. Quando falou sobre candidatos ou dirigentes partidários que pedem recursos, afirmou ser “absolutamente normal”, sendo que a própria legislação assim estabelece. Quanto às doações, afirmou que deve haver uma distinção entre aquelas feitas por “Caixa 1” ou “Caixa 2”; disse que “é normal, em princípio, o pedido”, sendo que “em princípio, a nossa experiência até aqui, a rigor não tem ônus nenhum para os candidatos receber de forma regular. A opção por “Caixa 2” ou “Caixa 1” é um problema talvez das empresas, talvez para que outros não saibam, pois no momento em que se faz a doação por ‘Caixa 1’, aparece nas nossas contas, e aí começa todo esse jogo de pressão e eventuais achaques”. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39227149. Acesso em 4/2/19.
[7] Alaor Leite; Adriano Teixeira. Ob. Cit. P. 3008 (livro eletrônico).
[8] Alaor Leite; Adriano Teixeira. Financiamento de Partidos políticos, caixa dois eleitoral e corrupção. p. 146.
[9] STF. 2ª T. Inq nº 3.982/DF. Rel. Min. Edson Fachin. Julg. em 7/3/17.
[10] STF. APn nº 470. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Julg. em 2/8/12.
[11] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/moro-enviara-projeto-ao-congresso-para-criminalizar-Caixa-2.shtml
[12] STF. Rcl nº 31590/PR. Min. Dias Toffoli. Julg. em 11/9/18.

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