Crime e Castigo

A punição como necessidade: a encruzilhada da jurisdição criminal

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

17 de fevereiro de 2019, 8h02

Spacca
Nem Bello desembargador do TRF-1 e professor da UnB [Spacca]A prisão antes da condenação sempre foi uma realidade no Brasil para as classes menos favorecidas. Crimes de tráfico de entorpecentes e delitos patrimoniais sempre ganharam na jurisprudência tratamento diferenciado quanto à impossibilidade de relaxamento de prisão, ao célebre argumento de que, solto, o acusado poderia voltar a delinquir. Roubos, furtos e latrocínios sempre permitiram o confinamento antecipado. Crimes cometidos pelas classes mais pobres, ditas C e D — geralmente vinculados ao patrimônio e à segurança das classes A e B, mais abastadas — sempre foram fundamento para prisões antecipadas, sob a modalidade de prisão cautelar. O mesmo não se observava, até bem pouco tempo, quando a acusação era de crime de homicídio eventual cometido por integrantes das classes A e B ou corrupção ativa e passiva, estelionatos, crimes financeiros, contra a ordem tributária, contra o patrimônio público ou de lavagem de dinheiro. Por razões sociológicas, ideológicas ou patrimonialistas em relação à compreensão da função do direito penal e do próprio Poder Judiciário, o encarceramento provisório era, e de certa maneira ainda é, contraditoriamente manuseado. Havia, e ainda há, clara seletividade no uso da prisão cautelar.

Paralelamente a isso, a sociedade passou a vivenciar uma crise de segurança mais aguda, que juntamente com a crise financeira tornou a vida da classe média, aqui chamada de B, bem mais difícil. Isto é um dado relevante porque ela é formadora de opinião por si só, e por arrasto das classes C e D. A classe média juntou-se às classes menos favorecidas ou excluídas na convivência diuturna com o desemprego, as agressões à integridade física e o medo. A violência fugiu da periferia e também invadiu os quintais do centro, ameaçando a classe mais abastada: a elite econômica. A violência das favelas dos altiplanos desceu para o asfalto com mais desenvoltura e os delitos que faziam parte da realidade periférica agora ameaçam cada vez mais o centro. Esse conjunto de fatores modifica o modo de viver da elite e da classe média, que passa a conviver com o medo e a incerteza, como em poucos momentos históricos. Com o medo vem a necessidade de encontrar um culpado ou vários responsáveis.

Um terceiro fator perceptível é a onda de operações, apreensões, prisões e processos atingindo agentes políticos e a cúpula empresarial nacional. As megaoperações realizadas pelo Estado para combater delitos de corrupção ou crimes do colarinho branco causam uma sensação de poder — quase uma catarse — no cidadão médio, fazendo-o acreditar que a lei finalmente se aplica a todos e a seletividade punitiva cessa. Isso veio atrelado a uma ojeriza aos agentes políticos, negação da política como atividade necessária e reação contra movimentos, ideias ou partidos — e até direitos — identificados com a esquerda, em qualquer de suas versões. É possível ver, também, uma clara parcialidade ideológica de setores da magistratura e do Ministério Público que já de há muito quebraram o cálice da isonomia no tratamento das partes e da imparcialidade na decisão de questões, pois se deixaram levar pelo fervor ideológico punitivista e passaram a se ver como combatentes.

O quarto elemento constitutivo da predisposição para a punibilidade como movimento da magistratura tem sido a campanha midiática dos meios de comunicação e das redes sociais em apologia ao avanço da luta contra a corrupção, o fim da impunidade e a punição dos pretensos culpados. Observa-se em tudo um forte conteúdo ideológico repressor, claramente presente na mídia, com identificação manifesta de um rol de culpados prévios. Vislumbra-se uma atuação da imprensa politicamente interessada, com informações parciais e mensagens subliminares — e até explícitas — criminalizando opiniões e condutas específicas, e protegendo os que lhe são ideologicamente próximos.

O movimento identifica a política e a esquerda como algozes dos homens de bem — conceito etéreo, ideologicamente preenchido e semanticamente instrumental. Essa onda se vê insuflada pela sociedade virtual das redes sociais e das manifestações organizadas ou desorganizadas, através da internet. Construiu-se, não aleatoriamente, as imagens política = crime e também corrupção = esquerda.

Sentindo-se no país da impunidade, em recessão, suportando uma perspectiva de violência física sem antecedentes, o cidadão comum se vê tragado pela onda do combate ao crime e imerso na campanha da punição para todos os identificados antecipadamente como culpados. A população se vê partícipe do processo de construção de um país melhor e adere ao punitivismo sem refletir sobre ele, vendo o movimento sob a perspectiva da luta do bem contra o mal, como é próprio das massas, e observando o mundo em que vive através da lente do simplório maniqueísmo. A ignorância analítica e a simplicidade do pensar se tornam dominantes.

As consequências mais latentes disso — dentre outras — são duas: a doutrina do homem de bem e a rejeição dos direitos humanos.

O homem médio — e consequentemente o juiz médio — se encastela na sua auto-referenciação e se vê bem intencionado, no lado certo da luta, virtuoso e agredido pelos homens maus, que merecem ser punidos para salvação dos homens de bem. O cidadão paradigmático sonega ICMS, usa nota fiscal fria, registra valor do imóvel a menor para pagar menos imposto, fura fila de banco, estaciona em vaga de deficiente, não titubeia em solicitar e aceitar benefícios públicos injustificáveis, mas vê a si mesmo como um virtuose. Apoia a luta contra a corrupção e se vê combatente contra todo o mal. O efeito manada dá os braços à hipocrisia e domina a blogosfera.

A doutrina do homem de bem separa os que são bons daqueles que são maus, e os bons seremos “eu e os que parecem comigo”, todos juntos de braços dados com a mídia e as redes sociais em defesa do bem maior!

Abre-se espaço para o moralismo, o racismo, o fascismo, a homofobia, o xenofobismo, a esquerdofobia e a reação ao outro que lhe é diferente. O outro é o mal; eu sou o bem; o outro é o erro e eu sou o acerto! E este pensamento se vê turbinado pelo discurso da isenção que se opõe ao partidarismo. “A minha ideia é isenta e imparcial. A ideia do outro é partidária e equivocada”. Não há nem tolerância nem diálogo democrático com respeito às diferenças.

Alguns mais exaltados — e menos analíticos, observadores ou dados a raciocínios apurados — passam a flertar com autoritarismo, ditadura, extermínio e barbárie. Não conhecem a história e não refletem sobre experiências humanas anteriores. É a origem do direito penal do autor. É o fim de um mínimo de fraternidade, liberdade e igualdade. É o retorno atávico à pré-modernidade.

Os Deuses têm sede, como pontuou Anatole France.

A outra consequência — a rejeição dos direitos humanos — é irracional, na medida em que a só possibilidade de se expressar dessa maneira já pressupõe o direito à liberdade e só existe em razão de um feixe de direitos. O fundamento cautelar da prisão, a ampla defesa, o acoplamento prova-condenação, a cadeia recursal e a liberdade como fundamento passam a ser tomadas como impeditivas da verdadeira justiça e da proteção dos homens de bem. As execuções sumárias pela polícia, as manutenções de encarceramentos contrários à lei e as negativas de benefícios previstos na Lei de Execuções Penais são vistas como atos corretos e necessários! Aplicar a lei passa a ser um ato criminosamente equivocado. Neste momento o direito passa a ser um estorvo para a realização dos bons propósitos.

Cumprir a lei quando um homem mau é o réu passa a ser um desrespeito aos homens de bem.

A mídia organizada e desorganizada opera não para reforçar os pilares da racionalidade, mas para potencializar a opção pela barbárie, em busca de atenção e de audiência. Essa atitude movida também por objetivos políticos aumenta o clima de exceção às leis, de negativa da legalidade e de oposição à modernidade.

É nesse instante em que a moralidade invade o direito moderno, que Kafka ressurge do túmulo e o fantasma de Goebbels aparece das catacumbas da história. É nesse momento que nos encontramos. Numa crise de modernidade; num vazio de racionalidade.

Refletir sobre isso e propor superações para a jurisdição criminal brasileira é o caminho mais responsável para uma magistratura que se pensa moderna.

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  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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